Acórdão nº 11743/22.8T8LSB.L1-1 de Tribunal da Relação de Lisboa, 2023-02-07

Ano2023
Número Acordão11743/22.8T8LSB.L1-1
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
Acordam os juízes na Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa.


I.RELATÓRIO


JA veio requerer a insolvência da sociedade N …, Lda., alegando, para tanto, ter prestado serviços e fornecido materiais a esta última (referentes à construção de cinco moradias em Lisboa), do que resulta um crédito sobre a segunda de 224.788,88€ - apesar de interpelada para pagar, a requerida ficou a dever ao requerente a quantia de 160.000€ (32.000€ por cada uma das vivendas), à qual acrescem os legais juros de mora (62.988,88€). Mais refere ser-lhe devida uma indemnização a título de custos com a propositura da acção (serviços do respectivo mandatário) que fixa em 1.800€. Defendeu estar a requerida impossibilitada de cumprir pontualmente com as suas obrigações.

Regularmente citada, veio a requerida deduzir oposição, negando a existência do invocado crédito, nunca o requerente lhe tendo prestado serviços de empreitada, serviços esses que foram antes prestados pela firma C … - Construção Civil, Unipessoal, Lda, da qual aquele é sócio e gerente (mais invocando que a factura junta com a petição inicial corresponde a um documento forjado, sem qualquer enquadramento contabilístico e fiscal). Refere, assim, carecer o mesmo da legitimidade processual exigida pelo artigo 20.º do CIRE.

Invoca, ainda, a sua solvabilidade - referiu que, ao contrário do invocado pelo requerente, possui um vasto património (43 imóveis) e não tem obrigações vencidas em situação de incumprimento ou acções pendentes contra si, apresentando uma sólida situação económico-financeira (com um activo manifestamente superior ao passivo).

Por fim, invocando o infundado pedido de declaração de insolvência e o facto de o requerente não ser credor (nunca tendo realizado para a contestante qualquer obra em nome individual), conclui ter o mesmo litigado de má-fé (tanto mais por conhecer, enquanto sócio e gerente da sociedade C … L.da, a situação económica da requerida,), tendo agido com dolo directo.

A instauração da presente acção foi do conhecimento das instituições bancárias e demais agentes económicos do meio empresarial em que a requerida se movimenta, o que prejudica a imagem da mesma, com repercussão na sua actividade.

Nessa medida, peticionou a condenação do requerente no pagamento de uma indemnização de montante não inferior a 50.000€, acrescida das demais despesas que o litígio lhe determine, designadamente os honorários dos seus mandatários em quantia cujo apuramento se remete para execução de sentença, mas em valor não inferior a 2.500€”.

Na data agendada para a audiência de julgamento, o requerente não compareceu, nem se fez representar.
Nessa sequência, ao abrigo do disposto no artigo 35.º, n.º 3 do CIRE e no artigo 277.º, al. d), do CPC, por sentença proferida em 09/06/2022 (exarada na acta de julgamento), pelo tribunal a quo foi a instância declarada extinta e a requerida absolvida do pedido.
Os autos prosseguiram para conhecimento do incidente de litigância de má fé, com inquirição das testemunhas arroladas pela requerida.

Por decisão proferida em 01/07/2022, o tribunal recorrido absolveu o requerente do pedido de condenação como litigante de má fé.

Não se conformando com tal decisão, dela veio a requerida interpor RECURSO, formulando as CONCLUSÕES que aqui se transcrevem:
1º-Ao absolver o requerente do presente processo de insolvência, do pedido da sua condenação como litigante de má-fé, a meritíssima juiz a quo fez uma errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 542º e 543º do Código de Processo Civil.
2º-Na verdade, o mesmo requerente e ora apelado deduz pretensão cuja falta de fundamento não poderia ignorar.
3º- O requerente, de todo indiferente à falta de fundamento do pedido, visou apenas prejudicar a requerida.
4º- Resulta da documentação de natureza contabilística — faturas e recibos -, que as obras a que se reportaria o inventado crédito do requerente, foram efectuadas, faturadas e pagas a uma empresa de nome C … Construção Civil Lda., que não pelo requerente pelo que é inequívoca a ilegitimidade deste.
5º- Não poderia, por outro lado, afirmar que a requerida e ora apelante se encontrava impossibilitada de cumprir a suas obrigações e não dispunha de património imobiliário, para além de um andar sito na freguesia de Benfica, para mais, onerado com três hipotecas, quando lhe era fácil, previamente à apresentação do pedido de insolvência, ter identificado pelos meios usuais, o vasto património imobiliário que a requerida evidenciou documentalmente nos autos.
6º- O requerente ora apelado agiu com dolo directo ao formular o pedido de insolvência da requerida, bem ciente da total ausência de fundamento para o mesmo, visando apenas prejudicá-la.
7º-Ao apresentar tal pedido sem prévia averiguação da real situação económico-financeira e patrimonial da ora apelante, agiu, no mínimo, com dolo eventual, na medida em que não poderia deixar de prever, como possível, que o pedido de insolvência viesse a mostrar-se injustificado.
8º-Em linha com esta postura de má-fé e confirmando-a, encontra-se o facto eloquente da ausência do requerente, das testemunhas e do seu plenipotenciário e ilustre mandatário na audiência de discussão e julgamento, não tendo este último sequer atendido as chamadas que muito louvavelmente o tribunal lhe fez, no longo período de espera, para o início da mesma audiência.
9º- Se dúvidas tivessem subsistido no espírito da meritíssima juiz a quo, relativas ao dolo e ou negligência grave com que o requerente agiu processualmente, bem poderia, ao abrigo do princípio do inquisitório que enforma nos termos do artigo 11° do CIRE, o processo de insolvência, ter pelo menos determinado a comparência do requerente e apelado para o respectivo depoimento de parte requerido pela ora apelante.
10º- Deve, pois, a decisão da meritíssima juiz a quo ser revogada e substituída por outra que condene o requerente como litigante de má fé, em multa a fixar segundo o prudente arbítrio de Vªs Ex.cias e em indemnização que contemple as despesas processuais que o litígio ocasionou à apelante, incluindo os honorários do seu patrono, em montante a liquidar em execução de sentença mas em valor não inferior a € 3 000,00.”

Não consta que tenham sido apresentadas contra-alegações.

O recurso foi admitido como sendo de apelação (autónoma), a subir nos próprios autos e com efeito devolutivo – cfr. artigos 542.º, n.º 3, 644.º, n.º 2[1], al. g), 645.º, n.º 1, al. a) e 647.º, n.º 1, todos do CPC.

Foram colhidos os vistos legais.

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II.DO OBJECTO DO RECURSO

Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente (artigos 635.º, n.º 4 e 639.º do CPC), ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, a questão que se coloca à apreciação deste Tribunal é a de saber se o requerente/apelado actuou como litigante de má-fé, nessa medida devendo ser condenado a esse título.

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III.FUNDAMENTAÇÃO

Fundamentação de facto
As incidências fáctico-processuais relevantes para a decisão do recurso são as que decorrem do relatório supra (que por brevidade aqui se dão por integralmente reproduzidos), sendo que, na decisão recorrida, foi fixada como factualidade provada a seguinte:
a)- Em 9.05.2022, JA veio instaurar processo especial de insolvência contra N … – Sociedade de Construções Lda., nos termos que constam do requerimento inicial, cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
b)- Designado o dia 9.06.2022 para a realização da audiência de julgamento, o requerente não compareceu, nem o seu mandatário.”

Em tal decisão, consignou-se ainda:
“Não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a resolução do presente incidente, nomeadamente que o requerente não tenha prestado serviços para a requerida, que a factura junta aos autos seja uma falsa, que o requerente soubesse, aquando da propositura da presente acção, que a requerida é proprietária de vasto património, bem como não resultaram provados quaisquer concretos danos sofridos pela sociedade requerida com a interposição da acção de insolvência.”

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IV.FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Prescreve o artigo 542.º, n.º 2 do CPC, que diz-se litigante de má-fé quem com dolo ou negligência grave: a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.

Se uma parte litiga com má-fé será a mesma condenada em multa, bem como, caso tenha sido peticionado, numa indemnização à parte contrária – n.º 1 do mesmo artigo.

Esta indemnização será fixada nos termos previstos pelo artigo seguinte.[2]

Para evitar o risco de sofrer tal condenação, deverão as partes litigar com a devida correção, ou seja, no respeito pelos princípios da boa-fé e da verdade material e, ainda, na observância dos deveres de probidade e cooperação expressamente previstos nos arts. 7º e 8º do CPC (em última análise, a má-fé traduz uma violação do dever de cooperação e de boa-fé que a lei processual impõe às partes).
Como se escreveu no acórdão desta Relação de Lisboa de 01/04/2009[3], ainda ao abrigo do anterior CPC, Com o instituto da litigância da má-fé pretende-se acautelar um interesse público de respeito pelo processo, pelo tribunal e pela própria justiça. Pretende-se, pois, assegurar a moralidade e eficácia processual na medida em que com ela se reforça o respeito pelas decisões dos tribunais. Conforme resulta do art. 456.º n.º 2, do C.P.C.,
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