Acórdão nº 11/16.4GBADV.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 2024-03-19

Ano2024
Número Acordão11/16.4GBADV.E1
ÓrgãoTribunal da Relação de Évora



Acordam, em conferência, na 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação do Évora


I. RELATÓRIO

No processo de inquérito que, com o n.º 11/16.4GBADV, correu termos pelo Departamento de Investigação e Ação Penal [1.ª Secção de Faro] da Procuradoria da República de Faro, com origem em queixa apresentada por (A), o Ministério Público, em despacho que proferiu a 14 de abril de 2021, decidiu «o arquivamento dos autos, nos termos do artigo 277.º, n.º 2 do Código Penal, por não se terem recolhido indícios suficientes da prática dos crimes de ofensa à integridade física negligente, de intervenções médico-cirúrgicas e/ou de homicídio negligente
(A), devidamente identificado nos autos e neles constituído Assistente, requereu a abertura da instrução.
E distribuído que foi o processo – ao Juízo de Instrução Criminal de Faro [Juiz 2] da Comarca de Faro –, por decisão judicial datada de 17 de novembro de 2023, foi proferida decisão instrutória de não pronúncia
- dos Arguidos (B) e (C) pela prática de um crime de homicídio por negligência grosseira, previsto e punível pelo artigo 137.º, n.º 2, do Código Penal;
- do Hospital Particular do Algarve, Grupo HPA Saúde, pela prática de um crime de exposição ou abandono, previsto e punível pelo artigo 138.º do Código Penal.
Inconformado com esta decisão, o Assistente dela interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões [transcrição]:
«I- A decisão recorrida enferma de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão; e entre a própria fundamentação, o que resulta do próprio texto por ele mesmo e conjugado com as regras da experiência, assim incorrendo no vício da al. b) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, em ambas as vertentes.
II- Os factos indiciados em sede de instrução, no texto de fls. 4 a 8, e listados como factos indiciados de 1 a 38, mostram uma realidade factual que aponta necessariamente para que os arguidos incorreram na responsabilidade que lhes é imputada pelo Assistente. Maxime, e só como exemplo, o Facto Indiciado 34, ainda que se trate de uma conclusão: havia uma exigibilidade de cumprimento de deveres de cuidado, neste caso concreto, que estavam ao alcance e dentro do poder de capacidade individual dos arguidos enquanto médicos.
III- Os factos e essa mesma conclusão estão no texto da decisão, nessas páginas e pontos, para as quais por economia processual se remete, dando-as por reproduzidas para todos os legais efeitos. Ora, estes factos assim indiciados chocam de modo frontal e inconciliável, com os Factos Não Indiciados, onde se diz em jeito aliás conclusivo, mais que factual, precisamente o contrário.
IV- Ou seja, na al. a) desses não indiciados factos, que ao não ter havido diagnóstico e terapêutica precoces contribuiu para o agravamento do estado de saúde da paciente com o resultado morte, que era evitável. Facto / conclusão este que perante toda a matéria factual indiciada e as conclusões que dela resultam, se torna absolutamente incompreensível; e é inconciliavelmente contraditório com tudo o que está indiciado de 7 a 38, especialmente com o indiciado nos pontos 16 a 25, 26, e em 33, 35 a 37.
V- Pois que num lado e noutro dizem-se coisas absolutamente inconciliáveis, as quais não podem conviver por totalmente contraditórias de modo insanável, no mesmo texto. A simples leitura, sem mais e sem necessidade de aduzir qualquer outra explicação, demonstra hialinamente essa absoluta contradição.
VI- Do mesmo vício comunga a alínea b) dos Factos Não Indiciados. Tudo quanto se indicou no texto, de 1 a 38 como Factos Indiciados, demonstra que os arguidos agiram de forma consciente e que sabiam, pois não ignoravam e assim o aceitaram, do resultado morte que poderia advir dessa sua conduta de não prestar os cuidados atempados podendo e devendo fazê-lo.
VII- É patente a contradição insanável; coexistem uma coisa e o seu contrário no mesmo texto da decisão; e isto decorre do texto, com influência decisiva na decisão, que por isso mesmo não foi conforme ao direito. Insanável contradição que se estende também à fundamentação ao cotejá-la com a decisão de Não Pronúncia. Verifica-se, pois, o vício previsto na al. b) do n.º 2 do art.º 410.º do CPP, nas suas duas vertentes, o que se deixa alegado para todos os legais efeitos, devendo neste recurso declarar-se a existência de tal vício.
VIII- A decisão contém também erro notório na apreciação da prova, erro que resulta do próprio texto pela sua simples leitura, assim incorrendo no vício da al. c) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP. Pois toda a prova indiciária, produzida em sede de instrução (páginas 8 a 14 da decisão), conduz necessariamente à conclusão de que os arguidos tinham de ser pronunciados pelos crimes que o assistente lhes imputa.
IX- Quer a prova resultante das conclusões tiradas na perícia médico-legal, quer a prova testemunhal, apontam sem qualquer obscuridade para uma terapêutica e um prognóstico tardios, e afirmam com base científica que a serem mais precoces teriam evitado o resultado morte, embora a morte seja sempre um desfecho possível (neste acrescentamos nós, como em qualquer outro caso) – texto da decisão, pág. 11 e 12.
X- Porém, considerando a prova testemunhal e a perícia, concluiu o Tribunal a fls. 12, que não teve dúvidas de que os arguidos (…), ao se depararem com os sintomas apresentados pela paciente, pelo menos ao 5.º dia do pós-operatório, ou seja, dia 17-02-2016, deveriam ter agido de modo diferente recorrendo a exames e procedimentos médicos que só ocorreram no dia seguinte (…) – cf. pág. 12; Mas espantosamente, daqui retira, logo no parágrafo seguinte da mesma pág. 12 que apesar de se considerar que os arguidos (…) deveriam ter diligenciado antecipadamente pelo diagnóstico e respetiva terapêutica, não pode o Tribunal afirmar, que não o tendo feito, a omissão dos arguidos contribuiu para o agravamento do estado de saúde da paciente com o resultado morte que era evitável. E com base neste raciocínio concluiu pela Não Pronúncia dos arguidos, em evidente e notório erro na apreciação da prova.
XI- Ora, parece-nos que a Mma. JIC apreciou de modo totalmente incorreto as provas no seu conjunto, pois da afirmação de que a deiscência é complicação grave e que pode causar a morte, deu por irrelevante que o diagnóstico e a terapêutica tinham sido tardias, com base em que (pensamento exposto na decisão), a morte sempre poderia ocorrer. Quando o raciocínio e a conclusão têm de ser exatamente opostos.
XII- Em defesa da vida humana os cuidados médicos devem ser prestados a tempo, sob diagnósticos corretos e precoces sempre que possível, ainda que em situações em que a possibilidade da morte seja uma hipótese. Se assim não fosse, deixar-se-iam morrer todos os doentes com qualquer infeção grave ou patologia que envolvesse risco de morte, argumentando que a possibilidade de morte sempre existiria.
XIII- A leitura do Parecer Médico-Legal tem que ser feita nos seguintes termos: embora a deiscência seja uma complicação grave que pode causar a morte, uma abordagem que tivesse sido atempada, com diagnóstico precoce e terapêutica também precoce da fístula, teria contribuído, significativamente para a melhoria do prognóstico da doente e para a redução do risco morte.
XIV- A palavra significativamente marca aqui toda a diferença entre o raciocínio exposto na Decisão, que conduziu à Não Pronúncia; e entre o raciocínio que aqui apresentamos, que a nosso ver sempre demonstrará negligência no tratamento, falta de comportamento correto e atempado e, portanto, o não cumprimento das leges artis que os médicos arguidos, no caso concreto, deveriam ter observado. E bem assim, responsabilidade do HPA na ocorrência da morte da vítima.
XV- Porque havia uma exigibilidade de cumprimento de deveres de cuidado, neste caso concreto, que estavam ao alcance e dentro do poder de capacidade individual dos arguidos enquanto médicos.
XVI- O que a Decisão reconhece ao dar como indiciado que ao terem efetuado à paciente aquela intervenção cirúrgica, os arguidos não podiam desconhecer a probabilidade de na fístula vir a ocorrer a deiscência que acabou por se verificar; e por isso, fosse sua obrigação, dentro das suas capacidades e deveres profissionais, anteciparem essa probabilidade, estarem atentos a ela e avançarem com diagnóstico precoce e terapêutica adequada. O que não sucedeu.
XVII- Deste modo foi a prova apreciada com erro notório, vício que levou também a uma decisão a nosso ver, contrária à que deveria ter sido tomada; e vício constante na alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, que aqui se deixa alegado para todos os legais efeitos.
XVIII- Por tudo o que se deixa alegado, também a decisão faz uma errada apreciação da prova produzida e disponível ao Tribunal, com violação do art.º 127.º do CPP uma vez que não se aplicaram ao caso concreto e no que interessa as regras da experiência, bem como não se valorou a prova científica que resulta da perícia médica realizada pelo Conselho Médico Legal do Instituto Nacional de Medicina Legal.
XIX- Ainda que seja a Mma. JIC a entidade competente para apreciar a prova, sempre essa apreciação se tem que conformar com as regras de experiência comum, conforme determina o artigo 127.º do CPP. Artigo que deste modo foi violado, o que deve ser declarado na decisão que se proferir neste recurso.
Termos em que se alega e conclui, devendo o presente recurso proceder por provado, revogando-se a decisão recorrida, e substituindo-a por outra que pronuncie os arguidos pelos crimes que lhes foram imputados pelo Assistente na Acusação Particular anexa ao RAI, a qual deverá assim seguir para julgamento, acompanhada do PIC que lhe está anexo.
Assim se fazendo JUSTIÇA»

O recurso foi admitido.

Respondeu o Ministério Público, junto do Tribunal recorrido, formulando as seguintes conclusões [transcrição]:
«- Face ao teor do parecer do Conselho Médico-Legal do
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