Acórdão nº 1034/22.0T8LSB.L1-6 de Tribunal da Relação de Lisboa, 2023-02-23

Ano2023
Número Acordão1034/22.0T8LSB.L1-6
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório:
M…, de nacionalidade espanhola, maior, nascido a 13-08-1968, titular do documento de identificação n.º …, válido até 26-10-2022, com domicílio em Rua … Lisboa, apresentou acção declarativa de condenação contra E…, divorciada, maior, NIF …, residente em Rua … Lisboa, pedindo a condenação da ré a pagar ao Autor, a título de danos morais, o valor de €45.000,00, acrescido de juros à taxa legal, desde a citação até integral pagamento, por se entender tal montante adequado e proporcional à intensa gravidade da conduta dolosa praticada pela Ré, tendo em conta a elevada dimensão e extensão dos danos causados.
Alega, em síntese, que no âmbito do matrimónio foi sujeito a um tratamento desumano e degradante por parte da Ré, fruto dos sucessivos ataques à sua pessoa, comportamento que já ocorria quando viviam em Lima e se agravou em Lisboa. Invoca, no essencial, que a Ré não entregou ao Autor o passaporte diplomático, ficando este impedido, em Portugal, de tarefas básicas, como por exemplo, pedir NIF ou abrir uma conta bancária, cancelou o seguro de saúde de que o Autor era também beneficiário, alheou o Autor da vida dos Filhos, não deixava que o Autor participasse nas refeições, insultava com frequência o Autor, usando expressões como “és um terrorista, espião e inútil”, “és mau”, “burro”, “porco”, e fazia-o na presença dos filhos menores. Refere que apresentou queixa contra a A., tendo dado origem ao inquérito proc. nº 752/18.1SYLSB – DIAP – 7ª Secção de Lisboa, o qual foi arquivado, com data de 11/05/2019, por se entender que o Estado Português não tem competência internacional para investigar os factos denunciados,dado a ré ser diplomata e exercer funções como Conselheira na Embaixada de … em Portugal.
No despacho liminar por se antever a possibilidade de conhecer da incompetência internacional notificou-se o Autor para se pronunciar nos termos do art.º 3º nº 3 do Código de Processo Civil.
O autor veio invocar que tendo a ré intentado acção de divórcio e de regulação das responsabilidades parentais, acção esta que correu os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Juízo de Família e Menores de Lisboa, juiz 1, entende que a presente lide está intimamente relacionado com aquele casamento, pois prende-se, pois, com o apuramento da responsabilidade civil por violação dos deveres conjugais, violação essa que configurou a prática de um crime de violência doméstica. Pelo que entende que haverá que considerar o disposto nos termos do art.º 32.º, n.º 3, da Convenção de Viena, no sentido de não poder ser invocada a imunidade de jurisdição no tocante a uma reconvenção directamente ligada à acção principal, concluindo que existe uma conexão objectiva entre as duas lides, elemento característico do pedido reconvencional.
O Tribunal decidiu pela verificação da incompetência internacional e logo, da excepção dilatória de incompetência absoluta deste Tribunal e, em consequência, indeferiu a presente acção.
Inconformado, pugnando pela competência dos Tribunais portugueses e pelo prosseguimento dos autos, veio o Autor recorrer formulando as seguintes conclusões:
«a) O presente recurso vem interposto da sentença proferida no processo nº 1034/22.0T8LSB, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa (Juízo Local Cível de Lisboa - Juiz 22), quanto ao segmento decisório que julgou verificada a excepção dilatória de incompetência absoluta desse Tribunal e, em consequência, indeferiu a presente acção.
b) Invocando que “a Convenção prevê a imunidade de jurisdição penal, civil e administrativa, prevendo as respectivas excepções (artigo 31.º, 1) e a faculdade de renúncia a essa imunidade, que cabe ao Estado acreditante e tem de ser expressa (artigo 32.º). A imunidade de jurisdição de um agente diplomático no Estado acreditador não o isenta da jurisdição do Estado acreditante (artigo 31.º, n.º 4). Face a todo o exposto, concluímos pela verificação de imunidade da jurisdição, o que determina a incompetência internacional dos tribunais portugueses para a tramitação da presente acção”,
c) Afirmando, ainda, que “a incompetência absoluta do Tribunal é uma excepção dilatória insuprível, nos termos conjugados dos artigos 96.º a 99.º, 576.º, 577.º, n.º 1, al. a), 578.º, todos do Código de Processo Civil”.
d) Assentando a sua decisão de indeferimento no mero facto de a Ré ser Agente Diplomática,
e) Fazendo uma incorrecta interpretação da norma do artigo 32º, nº 3, da Convenção de Viena sobre as Relações Diplomáticas, aprovado para adesão pelo Decreto-Lei n.º 48 295 de 27 de Março de 1968,
Vejamos,
f) O Autor/Recorrente intentou a presente ação de condenação contra a Agente Diplomática, sua ex-mulher, ora Recorrida, por violação dos deveres conjugais.
g) Não obstante, foi a Ré que intentou, em Portugal, a ação de divórcio, que correu os respetivos termos a final.
h) Insurge-se agora o Recorrente com a decisão levada a cabo pelo tribunal a quo, decidindo (mal) este tribunal ao conferir imunidade de jurisdição à Ré e não conhecendo, consequentemente, da ação.
i) Ora, como consta nas alegações de Recurso, nesta matéria rege o disposto na Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, aprovado para adesão pelo Decreto-Lei n.º 48295 de 27 de Março de 1968.
j) Neste normativo, prevê-se a excepção à imunidade diplomática dos seus agentes nalgumas circunstâncias.
k) Desde logo, o n.º 3 do artigo 32.º da Convenção dispõe, sem margem para dúvidas, que “se um agente diplomático ou uma pessoa que goza de imunidade de jurisdição nos termos do artigo 37.º inicia uma acção judicial, não lhe será permitido invocar a imunidade de jurisdição no tocante a uma reconvenção directamente ligada à acção principal”.
Aqui chegados,
l) Conforme se disse, foi a Ré/Recorrida que instaurou em Portugal a acção de divórcio e de regulação das responsabilidades parentais, acção esta que correu os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo de Família e Menores de Lisboa, juiz 1, sob o número de processo 27280/18.2T8LSB, e se encontra finda, com o decretamento do divórcio e homologação de um acordo para o exercício das responsabilidades parentais.
m) Pelo que, como se vê, o direito que o Autor pretende exercer na presente lide está intimamente relacionado com aquele casamento: prende-se, pois, com o apuramento da responsabilidade civil por violação dos deveres conjugais, violação essa que configurou a prática de um crime de violência doméstica.
n) Aliás, em face de anteriores regimes, o pedido deduzido nesta acção poderia ser conhecido naquela, o que é um indício muito forte de que se trata de uma [reconvenção] ligada à acção principal, para efeitos do preenchimento da excepção prevista no art.º 32.º, n.º 3, da Convenção de Viena.
o) Por outras palavras, o peticionado na presente acção está inteiramente ligado com a acção de divórcio primeiramente intentada pela Agente Diplomática, Ré/Recorrida.
p) No que ao n.º 3 do artigo 32.º diz respeito, ainda que a convenção não explicite o que se entende por “reconvenção directamente ligada à acção principal”, não se poderá entender que tal expressão se reconduz à reconvenção prevista no direito processual civil português, na medida em que a reconvenção é um pedido deduzido pelo Réu contra o Autor na contestação, logo, dizer-se “directamente ligada à acção principal” seria uma contradição nos seus próprios termos.
q) Assim, deverá entender-se a sobredita reconvenção, nos termos da Convenção, como qualquer pedido dirigido contra o Agente que goza da imunidade de jurisdição, relacionado com uma acção (principal) iniciada por este no Estado acreditador. Com efeito, admitir o contrário, seria admitir um verdadeiro abuso de direito.
r) Ora, em face do exposto, tendo em conta que a Recorrida iniciou em Portugal o processo de divórcio, deverá entender-se que a mesma está agora impedida de invocar a imunidade de jurisdição para a presente acção, que está directamente relacionada àquela acção (principal).
s) Com efeito, não fosse o casamento dissolvido em Portugal e a presente lide seria impossível. Pelo que existe uma conexão objectiva entre as duas lides, elemento característico do pedido reconvencional.
t) Destarte, mal andou o Tribunal a quo ao pronunciar-se pela imunidade da jurisdição, determinando a incompetência internacional dos tribunais portugueses para a tramitação da acção.
u) Pelo que, não pode o Recorrente concordar com tal decisão, na medida em que contraria amplamente o preceito normativo previsto no n.º 3, do art.º 32.º da Convenção, prevendo este que não poderá o Agente Diplomático, em caso algum, gozar da imunidade de jurisdição numa acção que esteja ligada a uma acção por si interposta – como o caso dos autos.
v) Ademais, este tem sido exactamente o raciocínio levado a cabo pela jurisprudência, no sentido de serem os tribunais portugueses competentes internacionalmente.
w) A Jurisprudência Portuguesa conhece da sua competência para julgar acções em que um Agente Diplomático intervenha, por sua iniciativa, judicialmente no Estado acreditador, impedindo-lhe, por via disso, gozar, posteriormente, da imunidade diplomática na referida ação ou noutra directamente ligada.
x) De sublinhar, ainda, que a imunidade de jurisdição do Estado e dos seus bens, geralmente aceite como um princípio do direito internacional consuetudinário (par in parem non habet jurisdictionem), integrado no Direito Interno por força do art.º 8, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, foi objecto de uma Convenção internacional, a Convenção das Nações Unidas sobre as Imunidades Jurisdicionais dos Estados e dos seus Bens, aberta à assinatura em Nova York em 17 de Janeiro de 2005, que ainda não entrou em vigor – Portugal ratificou já esta Convenção, aprovada pela Resolução da Assembleia da Republica n.º
...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT