Acórdão nº 1019/19.3T9FNC.L1-9 de Tribunal da Relação de Lisboa, 2023-03-09

Ano2023
Número Acordão1019/19.3T9FNC.L1-9
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
Acordaram, em conferência, os Juízes Desembargadores da 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:


I.–RELATÓRIO


Por sentença datada de 29.06.2022 os arguidos A e B foram absolvidos da prática, em coautoria material, de um crime de dano simples, p. e p. pelos artigos 26º e 212º, n.º 1, do CP, pelo qual haviam sido pronunciados.
Foram igualmente absolvidos do pedido cível deduzido pela Assistente/Demandante Cível C.
*

Recurso da decisão

Inconformada, a Assistente interpôs recurso da sentença absolutória, tendo extraído da sua motivação as seguintes CONCLUSÕES (que transcrevemos):
1.ª–O presente recurso versa sobre a totalidade da decisão proferida pelo Tribunal de primeira instância, na medida em que o mesmo, salvo melhor opinião e sempre com o devido respeito, mal andou na apreciação da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, com a consequente seleção da matéria de facto, bem como incorreu em erro de interpretação e aplicação da norma prevista no artigo 35.º, do Código Penal;
2.ª–Com efeito, a matéria de facto dada como provada nos pontos 1. e 2., da matéria de facto da contestação deveria, salvo melhor opinião, ter sido julgada não provada;
Senão vejamos,
3.ª–O tribunal entendeu dar como provado que a assistente havia mandado instalar uma Câmara oculta apontada para a porta da arguida permitindo a visualização de imagens interiores da habitação e pessoas que é frequentavam comentando tais imagens com terceiros;
4.ª–Tais factos resultam, apenas e tão-só, das declarações da própria arguida, apresentadas só em julgamento e sem qualquer outro suporte probatório, quer documental, quer testemunhal, estando mesmo em contradição com o depoimento das testemunhas D e E;
5.ª–Para além de que nos parece óbvio que uma câmara colocada sobre a porta de entrada da Assistente, virada para o patamar do prédio, jamais conseguiria filmar o interior da casa da frente, onde mora a sua filha F;
Por outro lado,
6.ª–A Assistente entende que o tribunal a quo devia ainda ter dado como provados os factos alegados nos artigos 11., 12., 17., 18., 23. e 24., da acusação particular de fls. 275-279, pela sua relevância para a decisão da causa;
7.ª–Factos esses que, na nossa modesta opinião, resultaram provados pelos depoimentos das testemunhas D e E, proferidos na sessão do dia 09/06/2022, assim como pelas declarações que a própria Assistente prestou ao Tribunal, na sessão do dia 15/06/2022;
Dito isto;
8.ª–O crime de dano previsto no artigo 212.º, do Código Penal, é um crime de resultado, sendo objetivamente preenchido com a destruição de coisa alheia, tal como se verificou no caso concreto;
9.ª–Ora, o Tribunal a quo entendeu que apesar de os factos provados consubstanciarem a prática objetiva daquele ilícito criminal, os arguidos teriam atuado sem culpa, ao abrigo de um estado de necessidade desculpante, uma vez que o meio por eles utilizado teria sido o estritamente necessário para impedir a continuação das filmagens, as quais ameaçavam – supostamente – o respetivo direito à intimidade da vida privada;
10.ª–E aqui, a ora Assistente não pode conformar-se com tal entendimento do Tribunal a quo, quer porque não se encontra provado qualquer violação do direito à reserva da vida privada dos arguidos, quer por entender que a estes seria exigível comportamento diferente, segundo as circunstâncias do caso concreto;
11.ª–A assistente entende que os arguidos, ao invés de destruírem, de forma selvagem, a câmara de videovigilância identificada nos autos, podiam e deviam ter dialogado com a Assistente -que era sua mãe e avó - pedindo-lhe que retirasse essa câmara ou até mesmo podiam ter colocado uma fita adesiva em cima da câmara, para impedir a continuação das filmagens;
12.ª–A verdade é que os arguidos nada disso fizeram e não privilegiaram, nem sequer tentaram o diálogo com a sua progenitora, preferindo passar à ação e assim destruir, de forma irreparável (!!), os cabos e a câmara da assistente;
13.ª–E fizeram-no num contexto de pura maldade, sabendo que isso iria causar-lhe ainda mais ansiedade e insegurança, tanto mais que vinham há algum tempo a dar pontapés na porta de casa da Assistente, durante a noite, e a fazer-lhe gestos obscenos, tal como foi testemunhado por E e referido pela própria Assistente, em sede de julgamento;
14.ª–A assistente não se conforma, por isso, com este entendimento do Tribunal a quo, mais a mais quando o mesmo poderá até abrir a caixa de pandora relativamente aos mais diversos sistemas de videovigilância colocados na cidade, pois qualquer cidadão que se sinta lesado ou ofendido no seu direito à intimidade da vida privada poderá, então, destruir qualquer câmara, a coberto de um (inexistente) estado de necessidade desculpante;
15.ª–Com o devido respeito, esta medida de exclusão da culpa não poderia ter sido interpretada da forma como foi no caso concreto, por se tratar de uma medida de exceção prevista na lei penal, para casos muito pontuais, dependentes da prova de que não seria razoável exigir aos arguidos comportamento diferente, o que não sucede no presente caso, dado que os arguidos não só não provaram qualquer comportamento ativo da Assistente que fosse passível de violar o seu direito à reserva da vida privada, como se lhes impunha um dever legal, moral e até mesmo natural de a interpelarem previamente para alterar o posicionamento da câmara ou até mesmo para removê-la, antes de avançarem a vias de facto, dado tratar-se da sua Mãe e Avó;
16.ª–Pelo que deviam os arguidos ter sido condenados pela prática dos dois crimes de dano por que vinham pronunciados, acrescido do pagamento de uma indemnização à Assistente, sobretudo pelos danos não patrimoniais que lhe foram causados, tal como peticionado no pedido cível de fls. 275- 279;
Normas Jurídicas Violadas:
Artigos 35.º, n.º 1, e 212.º, do Código Penal.
Nestes termos e nos demais de direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado totalmente procedente, por provado, alterando-se a matéria de facto provada nos termos supra melhor expostos e, em consequência, condenando-se os arguidos pela prática de dois crimes de dano e ainda no pagamento de uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, em montante a fixar pelo Tribunal com recurso a juízos de equidade, fazendo assim V. Exas. a costumada JUSTIÇA!
*

Resposta do Ministério Público
O Ministério Público respondeu ao recurso no sentido da sua improcedência, tendo apresentado as seguintes CONCLUSÕES (que transcrevemos):
1.–A sentença recorrida, salvo melhor opinião, é justa, faz uma correcta apreciação da prova e aplicação do direito, está devidamente fundamentada, não enferma de quaisquer nulidades ou outras irregularidades e, como tal, deve ser mantida.
2.–De forma muito simples, o que está em causa nestes autos e resultou do julgamento é que a assistente instalou uma câmara de vigilância junta da porta do seu apartamento, em zona comum, virada para a porta do apartamento dos arguidos, sem qualquer licenciamento ou autorização, e os arguidos, confrontados com esta câmara (ilegal) em funcionamento, cortaram os fios exteriores da câmara de forma a impedir que continuasse a recolher ilicitamente imagens daquela zona.
3.–Quanto ao recurso sobre a matéria de facto, o recurso não merece qualquer provimento pois a assistente limita-se a indicar os pontos provados n.º 1 e 2 da contestação e vários pontos da “acusação particular”, indicando depois passagens de duas testemunhas, sem fundamentar concretamente em que medida tais excertos impunham objectivamente uma decisão diversa sobre que pontos concretos.
4.–A assistente pretende também, incluir na matéria de facto determinados pontos da acusação particular sobre um episódio que ocorreu em circunstâncias de tempo, modo e lugar completamente diferentes (no dia 09/09/2019), quanto os arguidos vinham pronunciados por um episódio diferente e que ocorreu em Dezembro de 2019.
5.–Pior, é que esses factos que a assistente agora pretende incluir foram arquivados pelo Ministério Público (cfr. despacho de arquivamento de fls. 89) porque a queixa quanto aos mesmos foi apresentada 9 meses depois de terem ocorrido, o que a assistente tinha obrigação de saber.
6.–A decisão da matéria de facto resultou de uma cuidadosa análise da prova produzida, está devidamente fundamentado, está devidamente fundamentada e constitui uma solução plausível face à prova produzida, pelo que o que se situa perfeitamente dentro dos limites do artigo 127.º do CPP.
7.– A assistente, no fundo, pretende um novo julgamento quanto à matéria de facto, apenas porque discorda da convicção do Tribunal, embora não aponte qualquer decisão que seja objectivamente errada face à prova produzida, extravasando o princípio da livre apreciação da prova do artigo 127.º do Código Penal.
8.–Acresce que os factos atinentes ao elemento subjectivo do crime não foram dados como provados, são essenciais para uma eventual condenação e o recurso não incide sobre tais factos, que nunca indicou especificamente.
9.–A sentença recorrida entendeu que os arguidos agiram perante um acto actual e ilícito (câmara de vigilância ilegal a registar imagens da porta da sua casa), violador de liberdade (e direitos de personalidade) dos mesmos, tendo-se limitado ao estritamente necessário para o cessar (cortar os fios externos da câmara de vigilância), invocando aqui um estado de necessidade desculpante.
10.–Efectivamente, não se nos afigura exigível ao homem médio que, perante a colocação de uma câmara não licenciada numa zona comum do prédio e virada para a porta do seu apartamento, e considerando que essa agressão e permanente, pois as imagens são captadas a cada instante, actue de outro modo, frisando aqui que não está em causa uma destruição da câmara (essa sim inadmissível) mas sim o mero corte dos seus fios exteriores.
11.–Acresce que, se se
...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT