Acórdão nº 0277/22.0BEALM de Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), 2023-06-15

Ano2023
Número Acordão0277/22.0BEALM
ÓrgãoSupremo Tribunal Administrativo - (1 SECÇÃO)
Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

I – RELATÓRIO

1. AA, Autora, interpôs o presente recurso de revista do Ac.TCAS de 9/2/2023 (cfr. fls. 432 e segs. SITAF) que, concedendo provimento ao recurso de apelação da sentença do TAF/Almada, de 23/9/2022 (cfr. fls. 350 e segs. SITAF) - que havia julgado parcialmente procedente a ação administrativa, urgente, de reconhecimento de direito, proposta ao abrigo do art. 48º nº 1 do DL nº 503/99, de 20/11 (“Estabelece o regime jurídico dos acidentes de trabalho e das doenças profissionais ocorridos ao serviço de entidades empregadoras públicas”), reconhecendo à Autora o direito a ser recompensada por 26 dias úteis de férias vencidos e não gozados -, revogou tal sentença e julgou procedente a exceção, invocada pelo Réu “Serviços de Ação Social da Universidade de Lisboa (SASULisboa)”, de intempestividade da prática de ato processual, absolvendo o Réu da instância, ao abrigo do art. 89º nºs 1, 2 e 4, alínea k) do CPTA.

2. Inconformada com este julgamento do TCAS, interpõe a Autora o presente recurso de revista para este Supremo Tribunal Administrativo, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões (cfr. fls. 451 e segs. SITAF):

«a) QUANTO À QUESTÃO DA NULIDADE DO ACÓRDÃO POR VIOLAÇÃO DO CONTRADITÓRIO
1ª – O acórdão recorrido negou explicitamente razão ao R. no tocante à interpretação que este fez quanto à natureza da sua resposta à A. datada de 08 de abril de 2021 (transcrita no ponto 21 da matéria de facto provada) e considerou que tal resposta consubstancia um ato administrativo, pelo que negou razão ao Réu quando este invoca que a ação foi proposta para além do prazo de um ano que a A. tinha para fazer valer o seu direito. Ou seja,
2ª – Afastando os fundamentos de facto e de direito que o R. havia invocado para sustentar a sua exceção, e baseando-se noutros fundamentos, quer de facto quer de direito, suscitou, apreciou e decidiu – oficiosamente –, considerar que tal alegado ato administrativo deveria ter sido impugnado pela A. no prazo de três meses e que, tendo-o sido depois desse prazo, o fez quando o seu direito de ação já havia caducado. Assim,
3ª – Este entendimento do TCA Sul consubstancia nos presentes autos uma questão nova que não havia sido levada ao recurso de apelação do Réu e que apenas foi suscitada oficiosamente pelo Tribunal.
4ª – A qual não tendo sido, previamente, objeto de notificação às partes para se pronunciarem, apresenta-se no Acórdão recorrido como uma decisão-surpresa que viola o princípio do contraditório. Na verdade,
5ª – Sobre esta matéria da violação do princípio do contraditório conexionada com a proibição de decisões-surpresa, a Recorrente sustenta-se na jurisprudência constante e pacífica deste Supremo Tribunal Administrativo.
6ª – Ora, com base neste entendimento de o objeto da ação constituir um ato administrativo de autoridade impugnável nos termos do CPTA, o Tribunal a quo suscitou ex novo uma nova exceção, substancialmente diferente da alegada e configurada pelo Réu no seu recurso.
7ª – E é substancialmente diferente porque:
a) a exceção invocada e configurada pelo Réu/Recorrente no seu recurso foi a de ter decorrido mais de um ano, previsto no art.º 48º da LAS, sobre as datas em que o direito a férias se substanciaram na esfera jurídica da Autora e por a comunicação reproduzida no ponto 21 do probatório ser em seu entender uma mera informação sem efeitos jurídicos;
b) enquanto a exceção suscitada, configurada e decidida pelo TCA Sul no acórdão recorrido, da caducidade do direito de agir decorrente do facto de a ação não ter sido proposta no prazo de três meses a contar da data da notificação daquele ato, escora-se na qualificação daquela comunicação como um ato administrativo de autoridade e no entendimento de que este ato só podia ser impugnado no prazo de três meses.
Logo,
8ª – O TCA Sul negou razão aos fundamentos de facto e de direito invocados no recurso do Réu para sustentar a intempestividade da ação – indeferindo-a – e com outros e novos fundamentos fácticos e jurídicos suscitou, configurou e decidiu a questão da caducidade do direito de agir. Pelo que,
9ª – Se trata uma nova exceção – que, embora de conhecimento oficioso –, não podia ser decidida «sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre ela[s] se pronunciarem» conforme determina o n.º 3 do art.º 3º do CPC. Mas,
10ª – Tendo sido decidida sem que as partes fossem ouvidas e porque se trata de uma irregularidade que influiu no exame e decisão da causa, ocorreu a nulidade prevista no n.º 1 do art.º 195º do CPC.
11ª – Tanto mais que a aqui Recorrente, não teve a oportunidade de alegar o que aqui se alega sobre o modo como o TCA Sul conheceu e configurou tal exceção, o que seria «suscetível de influir no exame ou na decisão da causa» como afirmado por este Supremo Tribunal Administrativo no seu Acórdão de 04/02/2016, Proc. n.º 0205/15, supracitado. Por outro lado,
12ª – Também o assim decidido pelo TCA Sul viola a proibição das decisões-surpresa e o princípio da contraditório que as previne e evita (plasmado desde logo no n.º 3 do art.º 3º do CPC) como afirmado por este Alto Tribunal na sua jurisprudência constante, designadamente na acima citada.
13ª – Pelo que, em suma, sendo nulo o acórdão recorrido como se demonstra, não pode o mesmo subsistir e, assim, deve este Supremo Tribunal declarar a sua nulidade e ordenar a baixa dos autos ao Tribunal a quo para que sejam ouvidas as partes sobre a exceção em causa seguindo-se os demais termos.
b) OS ERROS DE JULGAMENTO
14ª – Para além do que antecede, o acórdão recorrido sofre também de erro de julgamento nos seguintes aspetos essenciais:
a) Quando qualifica a comunicação transcrita no ponto 21. do probatório como um ato administrativo que «comporta em si uma decisão autoritária» - cfr. pág. 8 do acórdão;
b) Quando considera que «o pedido impugnação deste ato e consequente reconhecimento do direito a férias, pese embora, o seu concreto reconhecimento pressuponha, no caso em apreço, a pré-existência de uma situação de acidente em serviço, cai fora do âmbito de aplicação do prazo de caducidade de 1 ano, previsto no n.º 1 do art. 48.º da LAS, pois que não diz respeito ao reconhecimento de direitos que decorrem desta mesma LAS» - idem.
c) A MUDANÇA DE PARADIGMA
15ª – Com a entrada em vigor LVCR a 1 de janeiro de 2009, derruiu o paradigma de vínculo unilateral, em que o ente público atua em posição de supremacia, de forma autoritária, que passou a reservá-lo para os casos em que estejam em causa funções que toquem os poderes soberanos do Estado ou impliquem o exercício de poderes de autoridade. Na verdade,
16ª - Segundo a LVCR o paradigma das relações jurídicas de emprego público alterou-se, passando o suprimento das necessidades perenes a ser feito através das figuras da nomeação e também do contrato de trabalho em funções públicas.
17ª - Ora, o vínculo de nomeação passou a aplicar-se apenas quando esteja em causa o exercício de funções de autoridade ou de soberania, enquanto o contrato de trabalho em funções públicas passou a aplicar-se às restantes situações, afinal as de maior expressão quantitativa no universo da Função Pública, designadamente porque os trabalhadores até aí nomeados definitivamente, viram a sua nomeação convertida em contrato de trabalho em funções públicas, situação que ocorreu, de igual modo, com os trabalhadores titulares de outros vínculos.
18ª - A partir da entrada em vigor, em 1 de janeiro de 2009, do regime do contrato de trabalho em funções públicas regulado pela Lei n.º 59/2008 [atualmente regulado pela LTFP], este passou a ser o vínculo regra.
19ª - E, neste contexto, a LVCR enfatizou que o contrato de trabalho em funções públicas é um vínculo bilateral.
20ª - Se a natureza bilateral do vínculo é, já de si, incompatível com a prática de atos unilaterais e autoritários, o facto de os "créditos" serem reclamáveis no prazo de um ano a contar do dia seguinte ao da extinção do vínculo, desqualifica os atos praticados pela Administração em execução do contrato de trabalho em funções públicas como "ato administrativo" e qualifica-os como "declaração contratual".
21ª - Nesta conformidade, num litígio onde está em causa o cumprimento pelo demandado de uma obrigação legal, imperativamente fixada na lei, designadamente o dever de cumprir uma obrigação legal, significa invocar e questionar uma conduta da Administração Pública num contexto em que esta se encontra despojada de poder público de autoridade e se mostra inserida nas chamadas relações paritárias.
22ª - E, assim, quando a Administração Pública não disponha na matéria em causa de nenhum espaço de discricionariedade, por se encontrar estritamente vinculada ao cumprimento da lei, não há lugar à prolação de ato administrativo constitutivo mas apenas à prática de atos e operações materiais de aplicação de disposições legais ou, segundo a doutrina mais abalizada, à «realização de simples atuações ou atos reais».
23ª - Pois não se podem ressuscitar poderes de autoridade onde eles já não existem.
24ª - Aliás, ainda no anterior modelo processual dualista, a jurisprudência administrativa era unânime que, quando a Administração incorria em incumprimento de uma obrigação legal decorrente diretamente da lei, a impugnação dessa sua atuação não estava sujeita a prazo, a não ser o prazo de prescrição que decorresse da extinção do vínculo jurídico-laboral.
d) O 1º ERRO DE JULGAMENTO
25ª -Tendo em conta a doutrina e a jurisprudência supracitadas, revela-se evidente e é imperioso concluir que a comunicação reproduzida no ponto 21. do probatório não consubstancia um ato administrativo de autoridade, mas apenas uma mera declaração interpretativa do contrato. Ou,
26ª - De outro modo dito, estando-se na presença de uma relação jurídica de natureza paritária e de uma...

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