Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 522/2021

Data de publicação04 Outubro 2021
ELIhttps://data.dre.pt/eli/actconst/522/2021/10/04/p/dre/pt/html
Gazette Issue193
SectionSerie I
ÓrgãoTribunal Constitucional
N.º 193 4 de outubro de 2021 Pág. 7
Diário da República, 1.ª série
TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 522/2021
Sumário: Declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade das normas dos artigos 1.º
e 7.º da Lei n.º 73/2019, de 2 de setembro, e dos artigos 1.º, 3.º e 4.º dos Estatutos da
Casa do Douro, aprovados pela mesma Lei e dela constantes em anexo; consequen-
temente, em face desta declaração de inconstitucionalidade, declara também incons-
titucionais as demais normas da Lei n.º 73/2019 e dos Estatutos da Casa do Douro,
aprovados pela mesma Lei e dela constantes em anexo, globalmente insuscetíveis de
subsistir na ordem jurídica; fixa os efeitos da inconstitucionalidade declarada, com força
obrigatória geral, de modo a que se produzam apenas a partir da publicação oficial do
presente Acórdão.
Processo n.º 834/2019
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
I — Relatório
1 — Um grupo de trinta e oito deputados à Assembleia da República, pertencentes aos Grupos
Parlamentares do Partido Social -Democrata e do Centro Democrático e Social (doravante referidos
como os requerentes), solicitaram ao Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 281.º, n.º 1,
alínea a), e n.º 2, alínea f), da Constituição da República Portuguesa, a apreciação e a declara-
ção da inconstitucionalidade com força obrigatória geral das normas dos artigos 1.º e 7.º da Lei
n.º 73/2019, de 2 de setembro, dos artigos 1.º, 3.º e 4.º dos Estatutos da Casa do Douro, aprovados
pela mesma lei e dela constantes em anexo, e indireta ou consequencialmente das demais normas
do mesmo diploma, insuscetíveis de subsistir autonomamente sem aquelas.
2 — Os requerentes alegam, como fundamento do pedido, que as normas objeto do pedido
violam o disposto nos artigos 46.º, n.º 3, 18.º, n.º 3, e 267.º, n.º 4, da Constituição da República
Portuguesa (doravante CRP ou Constituição) bem como o princípio da igualdade, consagrado no
artigo 13.º da Constituição.
Os fundamentos apresentados no pedido para sustentar a inconstitucionalidade das normas
diretamente impugnadas são, em síntese, os que de seguida se transcrevem.
2.1 — No que diz respeito à violação dos artigos 46.º, n.º 3, 18.º, n.º 3, e 267.º, n.º 4, da Cons-
tituição por violação da liberdade de associação e do princípio da proporcionalidade:
«(...)
1 — É comum a distinção entre uma dimensão positiva e uma dimensão negativa da liber-
dade de associação, entendida como direito individual. Assim, na dimensão positiva da liberdade
de associação inclui -se ‘o direito de fazer parte ou de aderir a qualquer associação, verificados
os pressupostos legais e estatutários, sem privilégios, nem discriminações’. Por seu turno, na
dimensão negativa da mesma liberdade inclui -se ‘o direito de livremente, a todo o tempo, sair de
qualquer associação a que se pertença’, bem como ‘o direito de não ser coagido a inscrever -se
(ou a permanecer) em qualquer associação’. Dito de outro modo, a liberdade associação ‘protege
tanto a admissão a associação já existente, a atividade na e com a associação e a permanência (a
designada liberdade de associação positiva), como correspondentemente o direito de se manter
afastado e sair (a designada liberdade negativa de associação), pelo menos na medida em que se
trate de uma associação de direito privado’.
2 — Poderia, todavia, sustentar -se que tal como a liberdade de associação não envolve, na sua
dimensão positiva, o direito de em conjunto com outros constituir uma associação pública, não en-
volve também, na sua dimensão negativa, o direito de se manter afastado de uma associação pública.
3 — Este entendimento esquece, todavia, o núcleo da liberdade de associação como direito
clássico de defesa perante o Estado e os poderes públicos e, nesse âmbito, não é admissível
qualquer distinção quanto à questão de saber se um privado se pretende manter afastado de uma
associação privada ou de uma associação pública, ainda que a justificação constitucional das res-
trições admitidas à liberdade de associação possa ser diversa nos dois casos.
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4 — Não restam, pois, dúvidas que o estabelecimento de uma obrigação de um determinado
grupo de pessoas entrar para uma associação pública consubstancia uma intervenção no âmbito
de proteção da liberdade de associação, consagrada no artigo 46.º da Constituição.
5 — Mas para além disso, a nossa Constituição estabelece limitações específicas às associa-
ções públicas, o que não deixa de trazer implícito o reconhecimento de que estas configuram em
si mesmas uma restrição à liberdade de associação.
6 — Assim, de acordo com o artigo 267.º, n.º 4, da Constituição, ‘as associações públicas só
podem ser constituídas para a satisfação de necessidades específicas, não podem exercer funções
próprias das associações sindicais e têm organização interna baseada no respeito dos direitos dos
seus membros e na formação democrática dos seus órgãos’.
7 — Esta disposição tem sido interpretada no sentido de incluir exigências várias: ‘‘que uma
associação pública não pode visar a generalidade, ou um conjunto muito amplo, dos interesses
de um conjunto delimitado de sujeitos, sem potencial substrato, de forma a deixar espaço para o
exercício multiforme da liberdade de associação; em que esse grupo, e apenas ele, partilhe de
um interesse próprio, ou um conjunto restrito de interesses próprios, conexos entre si; que esse
interesse ou interesses assumam natureza pública, segundo um juízo político -legislativo; que a
sua prossecução pelos próprios titulares, organizados em associação, não contrarie princípios ou
valores constitucionais; e, por fim, que estes requisitos sejam interpretados em termos restritivos
(cf. a expressão ‘só’), de modo a que a criação de associações públicas apenas ocorra em casos
muito limitados, quando a auto -administração seja inequivocamente a forma organizatória adequada
para a realização de uma tarefa pública’’.
8 — Ora, parece claro que as normas questionadas no presente pedido não satisfazem as
exigências mencionadas, pelo menos em dois planos: (i) por um lado, os interesses dos associados,
tal como a própria lei os configura, não assumem qualquer natureza pública; (ii) por outro lado, a
restauração da Casa do Douro como associação pública não releva de uma interpretação restritiva,
mas antes maximalista, da criação de associações públicas.
9 — Com efeito, resulta já com clareza do acima exposto que as atribuições específicas da
Casa do Douro, previstas no artigo 3.º dos respetivos Estatutos, não configuram quaisquer ‘funções
públicas’, podendo ser exercidas pelos privados destinatários da obrigação de se associarem.
10 — Essa conclusão torna -se ainda mais evidente se se tiver presente a evolução das funções
da Casa do Douro e o modo como a mesma foi sendo esvaziada, praticamente desde o momento
em que foi constituída, das funções que podiam justificar a criação de uma associação pública.
11 — Assim, o artigo 10.º do Decreto n.º 21883, publicado no Diário do Governo de 10 de
novembro de 1932, que criou a Casa do Douro, estabelecia o seguinte:
‘À Casa do Douro, independentemente das atribuições próprias às federações de sindicatos,
competem as seguintes:
a) Orientar e fiscalizar a produção vitícola e vinícola em toda a região dos vinhos generosos do
Douro, de forma a garantir a genuinidade do produto e as melhores condições de fabrico, prestando
a necessária assistência técnica aos associados;
b) Fixar os preços mínimos de venda para os vinhos e mostos produzidos na região;
c) Fixar a quantidade de vinho que deve ser beneficiada em cada ano e autorizar a respetiva
beneficiação de harmonia com a qualidade dos mostos;
d) Regularizar o trânsito e a aplicação de aguardentes necessárias à beneficiação dos vinhos;
e) Promover o escoamento anual dos vinhos não beneficiados;
f) Criar e organizar adegas cooperativas, nos termos da legislação em vigor;
g) Intervir no ajustamento dos salários dos trabalhadores rurais, por freguesias, para os diversos
trabalhos agrícolas e assegurar a esses trabalhadores a devida assistência;
h) Inventariar, em livro especial, as propriedades que tenham vinha na região demarcada do
Douro, averbando todas as indicações que bem definam essas propriedades’.
12 — Se se quiser, pois, apurar o que significam verdadeiramente ‘funções públicas’ no contexto
de uma auto -administração dos produtores de vinha na Região Demarcada do Douro basta pois
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ter em atenção as atribuições que acabam de ser enunciadas, pois elas representam o verdadeiro
paradigma das atribuições que justificam a criação de uma associação pública neste âmbito.
13 — Todavia, a partir deste ponto inicial, o legislador foi procedendo a um gradual e impará-
vel esvaziamento das funções exercidas pela Casa do Douro até atingir, como ponto mais baixo,
a situação atual, correspondente às designadas ‘funções públicas’ previstas nos atuais Estatutos
da Casa do Douro.
14 — Esse esvaziamento teve como contraponto a criação do Instituto do Vinho do Porto,
logo em 1936, a que depois sucedeu o Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto, mediante a fusão
da Comissão Interprofissional da Região Demarcada do Douro com o Instituto do Vinho do Porto,
operada pelo Decreto -Lei n.º 278/2003, de 6 de novembro.
15 — Assim, entre as atribuições do Instituto do Vinho do Porto contam -se a de ‘[f]ixar a quan-
tidade de vinho que deve ser beneficiada em cada ano na região demarcada de vinhos generosos
do Douro’, como consignava logo o artigo 2.º, alínea d), do Decreto -Lei n.º 26914, de 22 de agosto
de 1936.
16 — A evolução legislativa demonstra, com efeito, que, à medida que o Governo foi criando
organismos com competências próprias no domínio do controlo da qualidade e quantidade dos
vinhos do Douro e do Porto, se foram esvaziando as funções da Casa do Douro, ao ponto de não
subsistirem quaisquer funções relevantes atribuídas a esta última.
17 — Neste contexto, compreende -se que a aprovação de qualquer diploma redefinindo os
estatutos da Casa do Douro tenha sido normalmente acompanhada de um diploma redefinindo
a orgânica dos institutos públicos que realmente prosseguem funções públicas no setor: assim
aconteceu, a título de exemplo, com os Decretos -Leis n.os 75/95 e 76/95, ambos de 19 de abril, e
com os Decretos -Leis n.os 277/2003 e 278/2003, ambos de 6 de novembro.
18 — Parece, pois, claro que as disposições em crise no presente pedido não observam os
limites quanto à criação de associações públicas impostos pelo artigo 267.º, n.º 4, da Constituição.
19 — Para além disso, afigura -se também claro que as normas em crise no presente pedido
não observam os limites às restrições à liberdade de associação, entendida na sua dimensão
negativa de direito de não ser obrigado a tornar -se membro de uma associação, consagrada no
artigo 46.º da Constituição.
20 — De resto, as exigências de proporcionalidade que aqui devem ser observadas estão
também subjacentes ao disposto no artigo 267.º, n.º 4, da Constituição, quando submete a criação
de associações públicas a um requisito de necessidade (‘as associações públicas só podem ser
constituídas...’).
21 — Como é sobejamente conhecido, o princípio da proporcionalidade subdivide -se em três
subprincípios: o subprincípio da adequação, respeitante à eficácia da medida restritiva para atingir
fim visado; o subprincípio da necessidade, relativo ao despiste das medidas excessivas para atingir
fim visado, isto é, medidas que não se revelam, na prossecução de tal fim, o menos gravosas pos-
síveis para os direitos afetados; o subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito, que exige
que os ganhos para o bem constitucional que justifica a restrição sejam superiores às perdas para
o bem constitucional objeto de restrição.
22 — Ora, facilmente se compreende que a restauração da Casa do Douro como associação
pública não se apresenta sequer como instrumento idóneo a prosseguir as atribuições específicas
previstas no artigo 3.º dos respetivos Estatutos, aprovados como anexo da Lei n.º 73/2019.
23 — Se o que está em causa é a mera representação genérica dos interesses de todos os
viticultores da Região Demarcada do Douro, sem que se prevejam quaisquer funções específicas
capazes de conformar a produção e a comercialização dos vinhos produzidos na Região do Douro,
não pode deixar de se considerar que tais viticultores serão certamente as pessoas indicadas para
ajuizar dos modos mais adequados para o efeito de levar a cabo tal representação de interesses
através da constituição de associações de direito privado.
24 — Ainda que se pretenda assegurar a existência de um ente coletivo representativo de
todos os viticultores — o que, aliás, sempre seria um fim de duvidosa constitucionalidade à luz da
própria liberdade de associação, na sua dimensão negativa — a verdade é que essa função é já
desempenhada pelo conselho interprofissional, previsto no artigo 6.º da Lei Orgânica do Instituto
dos Vinhos do Douro e do Porto, aprovada pelo Decreto -Lei n.º 278/2003, de 6 de novembro.

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