Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 687/2021

Data de publicação22 Setembro 2021
ELIhttps://data.dre.pt/eli/actconst/687/2021/09/22/p/dre/pt/html
Data29 Julho 2021
Número da edição185
SeçãoSerie I
ÓrgãoTribunal Constitucional
N.º 185 22 de setembro de 2021 Pág. 3
Diário da República, 1.ª série
TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 687/2021
Sumário: Decide, com referência ao Decreto n.º 167/XIV, da Assembleia da República, publicado
no Diário da Assembleia da República, série II-A, n.º 177, de 29 de julho de 2021, e
enviado ao Presidente da República para promulgação como lei, pronunciar-se pela
inconstitucionalidade das normas constantes do seu artigo 5.º, na parte em que altera o
artigo 17.º da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro (Lei do Cibercrime).
Processo n.º 830/2021
I — Relatório
1 — O Presidente da República vem, ao abrigo do artigo 278.º, n.º 1, da Constituição da Re-
pública Portuguesa, submeter à apreciação deste Tribunal, em processo de fiscalização preventiva
da constitucionalidade, as normas constantes do artigo 5.º — “na parte em que altera o artigo 17.º
da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro” — do Decreto n.º 167/XIV, que «transpõe a Diretiva (UE)
2019/713 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de abril de 2019, relativa ao combate à
fraude e à contrafação de meios de pagamento que não em numerário, alterando o Código Penal, o
Código de Processo Penal, a Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, que aprova a Lei do Cibercrime,
e outros atos legislativos», aprovado pela Assembleia da República (doravante, «AR»), em 20 de
julho de 2021, publicado no Diário da Assembleia da República, Série II -A, n.º 177, de 29 de julho
de 2021, que lhe foi enviado para promulgação como lei e recebido em 4 de agosto de 2021.
2 — Os preceitos ora questionados do Decreto n.º 167/XIV da Assembleia da República têm
o seguinte teor:
«Artigo 5.º
Alteração à Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro
Os artigos 3.º, 6.º, 17.º, 19.º, 20.º, 21.º, 25.º e 30.º da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro,
passam a ter a seguinte redação:
«(...)
Artigo 17.º
Apreensão de mensagens de correio eletrónico ou de natureza semelhante
1 — Quando, no decurso de uma pesquisa informática ou de outro acesso legítimo a um sis-
tema informático, forem encontradas, armazenadas nesse sistema informático ou noutro a que seja
permitido o acesso legítimo a partir do primeiro, mensagens de correio eletrónico ou de natureza
semelhante que sejam necessárias à produção de prova, tendo em vista a descoberta da verdade,
a autoridade judiciária competente autoriza ou ordena por despacho a sua apreensão.
2 — O órgão de polícia criminal pode efetuar as apreensões referidas no número anterior, sem
prévia autorização da autoridade judiciária, no decurso de pesquisa informática legitimamente orde-
nada e executada nos termos do artigo 15.º, bem como quando haja urgência ou perigo na demora,
devendo tal apreensão ser validada pela autoridade judiciária no prazo máximo de 72 horas.
3 — À apreensão de mensagens de correio eletrónico e de natureza semelhante aplica -se o
disposto nos n.os 5 a 8 do artigo anterior.
4 — O Ministério Público apresenta ao juiz, sob pena de nulidade, as mensagens de correio
eletrónico ou de natureza semelhante cuja apreensão tiver ordenado ou validado e que considere
serem de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, ponderando o juiz a sua
junção aos autos tendo em conta os interesses do caso concreto.
5 — Os suportes técnicos que contenham as mensagens apreendidas cuja junção não tenha
sido determinada pelo juiz são guardados em envelope lacrado, à ordem do tribunal, e destruídos
após o trânsito em julgado da decisão que puser termo ao processo.
6 — No que não se encontrar previsto nos números anteriores, é aplicável, com as necessárias
adaptações, o regime da apreensão de correspondência previsto no Código de Processo Penal.»
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Diário da República, 1.ª série
Segundo o requerente, as normas questionadas poderão padecer do vício de inconstitucio-
nalidade material, por violação do direito à inviolabilidade do domicílio e da correspondência, na
interpretação que lhe tem sido dada pelo Tribunal Constitucional, e do direito à utilização da infor-
mática, não respeitando a exigência de proporcionalidade resultante do regime material dos direitos,
liberdades e garantias, conforme decorre da conjugação do artigo 18.º, n.º 2, respetivamente, com
os artigos 34.º, n.º 4, por um lado, e com o artigo 35.º, por outro, todos da Constituição da República
Portuguesa (doravante, CRP).
3 — Os fundamentos apresentados no pedido para sustentar a inconstitucionalidade dos
preceitos impugnados são os seguintes:
«[...]
1.º
Pelo Decreto n.º 167/XIV, a Assembleia da República aprovou a lei relativa ao combate à
fraude e à contrafação de meios de pagamento que não em numerário, alterando o Código Penal,
o Código de Processo Penal, a Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, que aprova a Lei do Ciber-
crime, e outros atos legislativos.
2.º
O Decreto em causa procede à transposição de Diretiva europeia. Contudo, e como se admite
na exposição de motivos da própria proposta de lei, o legislador aproveitou a oportunidade para
alterar normas não diretamente visadas pela Diretiva.
3.º
É o caso da alteração ao artigo 17.º da Lei do Cibercrime. Com efeito, como referido na expo-
sição de motivos: “Noutro plano, e ainda que se trate de um aspeto não respeitante à transposição
da Diretiva (UE) 2019/713, aproveita -se o ensejo para ajustar o artigo 17.º da Lei do Cibercrime,
cujo teor tem gerado conflitos jurisprudenciais que prejudicam a economia processual e geram
dúvidas desnecessárias.
Este ajustamento tem como propósito clarificar o modelo de apreensão de correio eletrónico
e da respetiva validação judicial.
Visa -se, por um lado, esclarecer que a apreensão de mensagens de correio eletrónico ou de
natureza similar está sujeita a um regime autónomo, que vigora em paralelo com o regime da apre-
ensão de correspondência previsto no Código de Processo Penal. Este último regime apenas se
aplica à apreensão de mensagens de correio eletrónico ou de natureza similar a título subsidiário,
e com as necessárias adaptações.
Visa -se, por outro lado, esclarecer que a apreensão de mensagens de correio eletrónico ou
de natureza similar guardadas num determinado dispositivo, embora incidindo sobre dados infor-
máticos de conteúdo especial, não é tecnicamente diferente da apreensão de outro tipo de dados
informáticos. Assim, deve o Ministério Público, após análise do respetivo conteúdo, apresentar ao
juiz as mensagens de correio eletrónico ou de natureza similar cuja apreensão tiver ordenado ou
validado e que considere serem de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova,
ponderando o juiz a sua junção aos autos tendo em conta os interesses do caso concreto.
Esta solução procura replicar, no domínio das mensagens de correio eletrónico ou de natureza
similar, a solução presentemente aplicável aos dados e documentos informáticos cujo conteúdo
possa revelar dados pessoais ou íntimos, pondo em causa a privacidade do respetivo titular ou de
terceiro, nos termos do n.º 3 do artigo 16.º da Lei do Cibercrime”.
4.º
É o seguinte o conteúdo da alteração em causa:
“Artigo 17.º
Apreensão de mensagens de correio eletrónico ou de natureza semelhante
1 — Quando, no decurso de uma pesquisa informática ou de outro acesso legítimo a um sis-
tema informático, forem encontradas, armazenadas nesse sistema informático ou noutro a que seja
permitido o acesso legítimo a partir do primeiro, mensagens de correio eletrónico ou de natureza
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semelhante que sejam necessárias à produção de prova, tendo em vista a descoberta da verdade,
a autoridade judiciária competente autoriza ou ordena por despacho a sua apreensão.
2 — O órgão de polícia criminal pode efetuar as apreensões referidas no número anterior, sem
prévia autorização da autoridade judiciária, no decurso de pesquisa informática legitimamente orde-
nada e executada nos termos do artigo 15.º, bem como quando haja urgência ou perigo na demora,
devendo tal apreensão ser validada pela autoridade judiciária no prazo máximo de 72 horas.
3 — À apreensão de mensagens de correio eletrónico e de natureza semelhante aplica -se o
disposto nos n.os 5 a 8 do artigo anterior.
4 — O Ministério Público apresenta ao juiz, sob pena de nulidade, as mensagens de correio
eletrónico ou de natureza semelhante cuja apreensão tiver ordenado ou validado e que considere
serem de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, ponderando o juiz a sua
junção aos autos tendo em conta os interesses do caso concreto.
5 — Os suportes técnicos que contenham as mensagens apreendidas cuja junção não tenha
sido determinada pelo juiz são guardados em envelope lacrado, à ordem do tribunal, e destruídos
após o trânsito em julgado da decisão que puser termo ao processo.
6 — No que não se encontrar previsto nos números anteriores, é aplicável, com as necessárias
adaptações, o regime da apreensão de correspondência previsto no Código de Processo Penal.”
5.º
Deste modo, como se vê, a alteração em causa não constitui um mero “ajustamento”, mas a
uma mudança substancial no paradigma de acesso ao conteúdo das comunicações eletrónicas,
admitindo -se que esse acesso caiba, em primeira linha, ao Ministério Público, que só posteriormente
o apresenta ao juiz.
6.º
O Tribunal Constitucional tem dedicado atenção recente, numa leitura estrita, ao acesso
por parte de entidades públicas às comunicações, sejam no seu conteúdo, sejam os metadados
(vd. Acórdão TC n.º 464/2019).
7.º
Por outro lado, como bem alerta a Comissão Nacional de Proteção de Dados no seu parecer
(Parecer 2021/74), jurisprudência recente do Tribunal de Justiça da União Europeia, em caso se-
melhante, entendeu que o Ministério Público, por deter a ação penal, não possui a independência
requerida para apreciar a necessidade de acesso ao conteúdo das comunicações, razão pela qual
essa tarefa deve ser cometida ao juiz.
8.º
O regime aprovado parece divergir, por outro lado, do disposto no artigo 179.º do Código do
Processo Penal, no qual a intervenção do juiz ab initio é indispensável. Esta é também a opinião
expressa pela Comissão Nacional de Proteção de Dados no seu parecer.
9.º
Com efeito, é o seguinte o conteúdo do artigo 179.º do Código do Processo Penal:
“Artigo 179.º
Apreensão de correspondência
1 — Sob pena de nulidade, o juiz pode autorizar ou ordenar, por despacho, a apreensão, mesmo
nas estações de correios e de telecomunicações, de cartas, encomendas, valores, telegramas ou
qualquer outra correspondência, quando tiver fundadas razões para crer que:
a) A correspondência foi expedida pelo suspeito ou lhe é dirigida, mesmo que sob nome diverso
ou através de pessoa diversa;
b) Está em causa crime punível com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos; e
c) A diligência se revelará de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a
prova.

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