Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 10/2023

Data de publicação10 Novembro 2023
ELIhttps://data.dre.pt/eli/acstj/10/2023/11/10/p/dre/pt/html
Gazette Issue218
SectionSerie I
ÓrgãoSupremo Tribunal de Justiça
N.º 218 10 de novembro de 2023 Pág. 83
Diário da República, 1.ª série
SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 10/2023
Sumário: «Na fase de inquérito, compete ao juiz de instrução ordenar ou autorizar a apreensão
de mensagens de correio eletrónico ou de outros registos de comunicações de natureza
semelhante, independentemente de se encontrarem abertas (lidas) ou fechadas (não
lidas), que se afigurem ser de grande interesse para descoberta da verdade ou para a
prova, nos termos do art. 17.º, da Lei n.º 109/2009, de 15/09 (Lei do Cibercrime)».
Proc. n.º 184/12.5TELSB -R.L1 -A.S1
Acordam, no Pleno, das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça
I. Relatório
1O arguido AA veio, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 437.º n.
os
2, 3, 4
e 5 e 438.º n.os 1 e 2, do C.P.P., interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do
acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 27/01/2021, transitado em julgado em 03/02/2022,
que julgou improcedente o seu recurso do despacho proferido, em 23/09/2020, pelo Senhor Juiz
de Instrução do Tribunal Central de Instrução Criminal, com os seguintes fundamentos, que pas-
samos a sintetizar:
O referido acórdão recorrido está em manifesta oposição sobre a mesma questão jurídica
com o acórdão, do mesmo Tribunal da Relação, de 07/03/2018, também transitado em julgado e
publicado na base de dados www.dgsi.pt (acórdão fundamento).
A questão jurídica em causa consistia em saber se a circunstância de uma mensagem de
correio eletrónico se mostrar sinalizada como aberta ou lida, aquando da respetiva apreensão,
afastava a aplicação do regime previsto no art. 17.º da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, ou se,
diferentemente, essa circunstância é irrelevante, aplicando -se o regime da citada norma a todas as
mensagens de correio eletrónico apreendidas, independentemente do facto de as mesmas estarem
sinalizadas como abertas ou lidas ou, ao invés, como fechadas ou não lidas.
Ora, enquanto o acórdão recorrido entendeu que o regime aplicável ao caso dos autos era o
constante do art. 16.º, da Lei do Cibercrime, cabendo ao Ministério público seriar o material apreendido
e determinar ele — e não o JIC — qual o material probatório que considera relevante, dado que os
mails, porque previamente abertos, mais não são que meros documentos digitais, o acórdão funda-
mento, por seu vez, decidiu que as mensagens de correio eletrónico que se encontrem armazenadas,
num sistema informático, independentemente de se encontrem abertas ou fechadas, só podem ser
apreendidas mediante despacho prévio do Juiz de Instrução Criminal, devendo, assim, o juiz a ser a
primeira pessoa a tomar conhecimento do conteúdo da correspondência.
Os acórdãos em questão foram proferidos, no âmbito do mesmo processo de inquérito, e no
domínio da mesma legislação — a Lei n.º 109/2009, de 15/09, -, não tendo havido entre a prolação
dos mesmos qualquer alteração legislativa.
Adiantou, desde logo, que fosse fixada jurisprudência neste sentido:
«Na fase de inquérito, é da competência do juiz de instrução criminal a decisão sobre a apreen-
são e junção aos autos de mensagens de correio eletrónico, mesmo que se encontrem sinalizadas
como abertas ou lidas no momento da restiva apreensão, devendo o juiz de instrução criminal delas
tomar prévio conhecimento, a fim de decidir pela junção aos autos daquelas que se afigurem ser
de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova».
2 — O Ex.mo magistrado do Ministério Público, junto do Tribunal da Relação de Lisboa, res-
pondeu ao recurso interposto, defendendo a rejeição do mesmo, por não se estar perante dois
acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, não se
verificando, deste modo, em sua opinião, oposição de julgados.
N.º 218 10 de novembro de 2023 Pág. 84
Diário da República, 1.ª série
3 — Por sua vez, o Ex.mo Senhor Procurador -Geral Adjunto, neste Supremo Tribunal de Justiça,
emitiu, nos autos, desenvolvido parecer, nos termos dos qual, divergindo da posição assumida pelo
seu Colega do Tribunal da Relação de Lisboa, entendeu, em síntese, que se verificam, in casu, os
pressupostos formais e substanciais do recurso extraordinário em causa, nomeadamente, a oposição
de julgados, pelo que deviam os autos prosseguir (art. 441.º n.º 1, in fine, do C.P.P.).
Observado o contraditório, o recorrente veio responder, dizendo que nada tinha a acrescentar,
uma vez que a posição do Senhor Procurador -Geral Adjunto era coincidente com a sua.
4 — Teve lugar a Conferência e, em 06/07/2022, foi proferido acórdão pela 3.ª Secção Criminal,
que julgou observados todos os requisitos formais e substanciais, incluindo a oposição de julgados
entre os dois referenciados acórdãos (recorrido e fundamento) e, em consequência, determinou o
prosseguimento do recurso, nos termos do art. 441.º n.º 1, 2.ª parte, do C.P.P.
5 — Cumprido o disposto no art. 442.º n.º 1, também do C.P.P., vieram o recorrente e o Minis-
tério Público apresentar alegações, tendo o primeiro concluído da seguinte forma (Transcrição):
1 — O presente recurso foi interposto, a 02.03.2022, contra o Acórdão do Tribunal da Relação
de Lisboa, de 27.01.2021 (Acórdão Recorrido), através do qual o Tribunal da Relação de Lisboa
julgou improcedente o recurso apresentado pelo Recorrente contra o Despacho do Mm.º Juiz de
Instrução Criminal do Tribunal Central de Instrução Criminal, de 23.09.2020.
2 — No Acórdão Recorrido, o Tribunal da Relação de Lisboa considerou que “os mails apre-
endidos eram correspondência aberta, e -mails lidos” e, por essa precisa razão, sustentou que “o
regime aplicável ao caso dos autos é o constante do artigo 16.º da Lei do Cibercrime, cabendo ao
MP seriar o material apreendido e determinar ele — e não o JIC — qual o material probatório que
tem por relevante dado que os mails, porque previamente abertos, mais não são do que meros
documentos digitais”.
3 — Verifica -se uma marcada oposição de julgados — e, até mesmo, uma violação do caso
julgado formal — entre o Acórdão Recorrido e o Acórdão Fundamento, sobre a mesma questão
fundamental de direito, que é a seguinte: saber se a circunstância de uma mensagem de correio
eletrónico se mostrar sinalizada como aberta ou lida, aquando da respetiva apreensão, afasta a
aplicação do regime previsto no artigo 17.º da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, ou se, dife-
rentemente, essa circunstância é irrelevante, aplicando -se o regime previsto no artigo 17.º da Lei
n.º 109/2009, de 15 de setembro, a todas as mensagens de correio eletrónico apreendidas, inde-
pendentemente do facto de as mesmas estarem sinalizadas como abertas ou lidas ou, ao invés,
como fechadas ou não lidas.
4 — Os factos subjacentes às decisões finais tomadas em ambos os Acórdãos são, também
eles, idênticos, uma vez que ambos os Acórdãos têm por referência o mesmo processo e o mesmo
inquérito e ambos os Acórdãos têm por referência a apreensão física de mensagens de correio
eletrónico ordenadas pela mesma decisão do Ministério Público.
5 — Ambos os Acórdãos (Recorrido e Fundamento) foram proferidos no domínio da mesma
legislação — a Lei do Cibercrime — uma vez que, no intervalo da sua prolação, não ocorreu qual-
quer modificação legislativa que haja interferido, direta ou indiretamente, na resolução da questão
de direito controvertida.
A DIMENSÃO LEGAL/INFRACONSTITUCIONAL DO OBJETO DO RECURSO
6 — Na redação original do Código de Processo Penal, de 1987, o artigo 190.º consagrava uma
extensão do regime das interceções telefónicas, regulado pelos artigos 187.º a 189.º, prevendo que
o disposto em tais normas era “correspondentemente aplicável às conversações ou comunicações
transmitidas por qualquer meio técnico diferente do telefone”.
7 — Através da Lei n.º 59/98, de 25 agosto, o artigo 190.º do CPP passou a prever a extensão
do regime das interceções telefónicas “designadamente [ao] correio electrónico”.
8 — Em 23.11.2001 foi assinada, em Budapeste, a Convenção do Cibercrime, e é a partir dos
artigos 19.º e 21.º da mesma que se vêm entendendo previstas as orientações do Conselho da
Europa em matéria de apreensão de correio eletrónico, sendo que os Estados Partes decidiram
não tomar posição expressa sobre a relevância ou irrelevância da circunstância de, no momento
da apreensão, a mensagem de correio eletrónico se encontrar sinalizada como aberta ou fechada.

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT