Acórdão nº 2402/19.0T8PNF.P2.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 12 de Dezembro de 2023

Magistrado ResponsávelMARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Data da Resolução12 de Dezembro de 2023
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça: 1. AA instaurou uma acção contra Fidelidade – Companhia de Seguros, SA., pedindo a sua condenação no pagamento de € 54 046,20, acrescidos de juros contados “à taxa legal de 4% desde a citação até integral liquidação”.

Invocou, para o efeito, a celebração de um contrato de seguro de danos e a ocorrência de um sinistro abrangido pelo contrato, “um aluimento de terras que levou ao desabamento do muro de protecção de terras na parte traseira da sua moradia”, do qual resultaram diversas consequências que descreve, nomeadamente na sua moradia e na de um vizinho.

A ré contestou. Por entre o mais, alegou que o sinistro não estava abrangido pelo âmbito do seguro contratado e que não pode verificar os danos porque, quando se deslocou ao local, já tinham sido realizadas obras que o impediram. Impugnou ainda o montante dos danos reclamados, que considerou excessivo.

Em resposta à contestação, o autor alegou que o seguro que subscreveu (e que corresponde à apólice que juntou com a petição inicial, e não à que a ré apresentou com a contestação) abrange o aluimento de terras, que nunca lhe foram dadas a conhecer as condições gerais que a ré juntou com a contestação e que teve que proceder de imediato à construção de um novo muro, “sob pena de a sua habitação se desmoronar”.

A acção foi julgada totalmente improcedente pela sentença de fls. 98, por se ter entendido que os danos não estão cobertos pelo contrato de seguro: “Deste modo, porque não são resultantes de um aluimento em consequência de um fenómeno geológico, mas sim resultantes de fenómenos meteorológicos, os danos daí resultantes – referidos nos pontos 5, 8 a 11 dos factos provados, não se encontram abrangidos pelo contrato de seguro celebrado entre o Autor e a Ré, pelo que esta não é responsável pelos prejuízos sofridos pelo Autor.” Para assim decidir, o tribunal de 1.ª instância, procurando determinar “qual a causa da queda do muro de protecção de terras situado na parte traseira da moradia”, considerou que o aluimento de terras ocorreu “por excesso de carga hidroestática no terreno, devido ao acumular da chuva, que levou ao desabamento do muro de protecção de terras na parte traseira da moradia”, não tendo, portanto, sido “provocado por um qualquer fenómeno geológico, mas por causas climatéricas, neste caso, pelo acumular da chuva”; e que “qualquer declaratário normal (…) compreenderia, com facilidade, que um aluimento resultante de um «fenómeno geológico» – como está escrito nas condições gerais do contrato – não poderia significar que abrangia os aluimentos resultantes de «fenómenos meteorológicos»”; que o muro não consta do contrato como objecto seguro; que, por isso, o seguro não abrange danos resultantes da queda do muro (sejam danos do autor, sejam danos de terceiro).

  1. Esta sentença foi revogada pelo acórdão do Tribunal da Relação do Porto de fls. 118, que condenou a ré a pagar ao autor a quantia de € 54 046,20, acrescida de juros legais, desde a citação até integral pagamento.

    A Relação, em síntese “considerando o sentido “vulgar e correntemente” dado às coberturas contratadas, como aquelas supra identificadas, bem como a definição contratual do conceito de sinistro (em IV da Cláusula 1ª, das Condições Gerais da referida Apólice) – “A verificação, total ou parcial, do evento que desencadeia o accionamento das coberturas do risco previstas no contrato” – e o assente em 5, 8 a 11, somos levados a concluir ser obrigação contratual da Ré ressarcir o A. pelos apurados danos, nos moldes peticionados”, excluindo o sentido sustentado pela ré, por não ter ficado provada, nem a comunicação, nem a explicação das cláusulas que previam significados diversos dos correntes.

    A ré interpôs recurso de revista.

    Pelo acórdão de fls. 146, o Supremo Tribunal de Justiça concedeu a revista, anulou o acórdão recorrido e determinou que o processo regressasse ao Tribunal da Relação do Porto, “a fim de ser ampliada a matéria de facto, nos termos” que definiu, “e proferida decisão de direito, se possível, pelos mesmos juízes que proferiram o acórdão recorrido.”.

    A matéria de facto que vinha então provada era a seguinte: 1 - O Autor celebrou com a Ré, com efeitos a partir de 11/12/2016, o seguro de Multiriscos Múltiplos Habitação sobre o imóvel, sito na morada Viela ..., nº 69, em ..., com a apólice com nº MR......61, com as condições particulares e condições gerais e especiais juntas a fls. 26 a 52 e cujo conteúdo se tem aqui como integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais.

    2 - Tendo sido contratado o “Plano Base”, com as coberturas, capitais seguros/limites de indemnização e franquias que constam da apólice.

    3 - Sendo o capital garantido pela apólice no valor máximo de € 186.430,12.

  2. - O período de validade da referida apólice era de 11/12/2018 a 11/12/2019.

  3. - No dia 25 de abril de 2019, ocorreu um aluimento de terras, por excesso de carga hidrostática no terreno, devido ao acumular da chuva, que levou ao desabamento do muro de proteção de terras na parte traseira da moradia a que se alude no ponto 1, o que, consequentemente, afetou os alicerces da casa, abertura de fissuras várias nas paredes, rompimentos de tubos de água e saneamento.

  4. - O Autor participou a ocorrência à Ré no dia 26 de abril de 2019.

  5. - A Ré recusou o sinistro, o que comunicou ao Autor, por carta datada de 06/05/2019, junta a fls. 53 v. e cujo conteúdo aqui se tem como integramente reproduzido para os devidos efeitos legais.

  6. - A queda do muro e os danos a que se aludem no ponto 5 implicaram a realização dos trabalhos descritos no documento junto a fls. 10 v. a 11, que aqui se dá por integralmente reproduzido, no valor de € 14.600,10 ( IVA incluído ).

  7. - Sendo, ainda, necessário proceder à remoção de terras/limpeza de caminho e terrenos vizinhos afetados e efetuar a construção de muro em pedra junto à habitação do Autor, nos termos constantes dos documentos 4 a 12, juntos com a p.i., que aqui se dão por integralmente reproduzidos, no valor de € 32.472,00 (IVA incluído).

  8. - O vizinho do Autor, BB, residente na Rua da ..., nº383, ..., ..., sofreu igualmente danos na sua habitação, devido ao aluimento de terras proveniente do terreno onde se situa a moradia do Autor.

  9. - No prédio do vizinho do Autor é necessário realizar os trabalhos descritos no documento 13, junto com a p.i., que aqui se dá por integralmente reproduzido, no valor de € 6.974,10 ( IVA incluído ).

  10. Para assim decidir, o Supremo Tribunal de Justiça pronunciou-se nestes termos (que se transcrevem, por se tratar de fundamentação relevante para o presente acórdão): «3. Está em causa neste recurso determinar se o sinistro que ocorreu, e que se encontra descrito no ponto 5 dos factos provados – “um aluimento de terras, por excesso de carga hidrostática no terreno, devido ao acumular da chuva, que levou ao desabamento do muro de proteção de terras na parte traseira da moradia a que se alude no ponto 1, o que, consequentemente, afetou os alicerces da casa, abertura de fissuras várias nas paredes, rompimentos de tubos de água e saneamento” e provocou danos na casa do seu vizinho – está ou não abrangido no contrato de seguro em causa neste processo, descrito nos pontos 1 a 4 dos factos provados.

  11. Tendo sido celebrado já na vigência do Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, é-lhe aplicável o Regime Jurídico do Contrato de Seguro (RJCS) aprovado por este diploma.

    É-lhe igualmente aplicável, na medida em que não o contrarie, o regime definido pelo Decreto-Lei n.º 446/85, de 15 de Outubro (Lei das Cláusulas Contratuais Gerais, LCCG), como aliás se diz expressamente no artigo 3.º do referido Regime Jurídico.

    Com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 72/2008, o contrato de seguro deixou de ser qualificado como um contrato formal, no sentido de ser condição de validade a adopção de determinada forma (artigo 220,º do Código Civil) – escrita, de acordo com o artigo 426,º do Código Comercial (cfr. acórdão deste Supremo Tribunal de 30 de Setembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. n.º 414/06.2TBPBL.C1.S ou de 4 de Dezembro de 2014.

    www.dgsi.pt, proc. n.º 23/12.7TBESP.P1.S1); a formalização na apólice que o n.º 2 do artigo 32.º do RJCS impõe ao segurador passou antes a ser considerada como requisito de prova .

    Da apólice, necessariamente um “instrumento escrito” (n.º 2 do citado artigo 32.º), deve constar “todo o conteúdo acordado pelas partes, nomeadamente as condições gerais, especiais e particulares aplicáveis” (n.º 1 do artigo 37.º); “no mínimo”, têm de constar os dados enumerados no n.º 2, entre os quais figuram, naturalmente, “os riscos cobertos”, fundamento último da celebração do contrato.

    Aplicam-se assim à sua interpretação as normas definidas pelo Código Civil para a interpretação dos negócios jurídicos em geral (artigo 236.º e segs), para as quais, aliás, remete o artigo 10.º da LCCG. Merecem especial referência as regras relativas à interpretação das “cláusulas...

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