Acórdão nº 741/22.1GBABF.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 07 de Novembro de 2023

Magistrado ResponsávelMARIA CLARA FIGUEIREDO
Data da Resolução07 de Novembro de 2023
EmissorTribunal da Relação de Évora

Acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: I - Relatório

Nos presentes autos que correm termos no Juízo de Instrução Criminal de … - Juiz …, do Tribunal Judicial da Comarca de …, com o n.º 741/22.1GBABF, foi proferido despacho de rejeição do requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente AA, identificada nos autos, em virtude de o mesmo ter sido considerado legalmente inadmissível

Inconformada com tal decisão, veio a assistente interpor recurso da mesma, tendo apresentado, após a motivação, as conclusões que passamos a transcrever: “Conclusões: I – O presente recurso tem como objeto o douto despacho de rejeição da abertura de instrução, datado de 25-05-2023, com a referência …, que decidiu que o RAI da ora Recorrente não respeita os princípios do acusatório e do contraditório, posto que não concretiza facticamente a concorrência dos elementos subjetivos dos ilícitos típicos vertidos na respetiva fórmula acusatória, sendo totalmente omisso no que respeita a tal matéria, bem como no que concerne à concorrência da consciência da ilicitude

II – Salvo o devido respeito, não se pode senão discordar de tal decisão, uma vez reputamos vislumbrar o RAI em total conformidade com as exigências normativas previstas nos arts. 287º, n.º 1, al. b), n.º 2 e 283º, n.º 3, als. b) e d) do CPP, não se logrando identificar qualquer omissão ao nível do tipo subjetivo e da consciência da ilicitude

III - No art. 39.º do RAI, após a adução, nos artigos 31.º a 39.º, de factos constitutivos do crime de perseguição, p. e p. pelo art. 154º-A do CP, fica por demais demonstrada a intenção e volição, em sede de tipo, por parte do Arguido, de inferiorizar, amedrontar e perturbar a esfera de autodeterminação existencial da Assistente e, bem assim, de violar a sua esfera de liberdade, a sua honra e a intimidade da vida privada, tendo o dolo, in casu, por referência o específico bem jurídico tutelado pela norma incriminadora

IV - Bastando atentar na expressão “qual manifestação do propósito subjetivo”, consubstanciada numa exteriorização sinonímica da primeira modalidade de dolo – o dolo direto -, que se arvora no conhecimento e vontade de realização do facto típico, conforme o que resulta do art. 14º do CP! V – Releve-se que no art. 53.º do RAI, a Assistente ora Recorrente convoca de forma clarividente, após a factualidade aduzida, a concorrência da intenção e vontade de realização do tipo de ilícito de perseguição, bastando atentar no respetivo conteúdo para apartar dúvidas interpretativas: “53.º - Por outro lado, o Arguido, ao ter atuado como atuou, revelou intenção e consciência de perturbar a esfera de liberdade e de autodeterminação existencial da Assistente, pelo que se dão por verificados o dolo, em sede de tipo subjetivo, e a consciência da ilicitude, em sede de culpabilidade”

VI - No art. 58º do RAI, ficou patente que o Arguido representou e quis – representação e volição constitutivos do dolo de primeiro grau - a proximidade física da vítima Assistente ora Recorrente, na sequência dos factos aduzidos constitutivos de um crime de violação de domicílio, p. e p. pelo art. 190º, n.º 1 do CP, integrado, sociologicamente, no quadro de um episódio de stalking

VII - Resulta clarividente a convocação de elementos de facto que permitem firmar a concorrência dos elementos subjetivos associados aos tipos de crime em mérito, elementos narrados de forma sintética e objetiva, como se pretende no quadro de uma verdadeira acusação

VIII – Pelo que resulta manifesto que o Arguido sabia, face às normas de trato social dominantes e à cultura de liberdade, de respeito pela integridade psicofísica da pessoa e, enfim, pelo respeito transcendental pela dignidade da pessoa humana, que estaria a lesar a esfera de liberdade da Assistente ora Recorrente, bem como a sua possibilidade de autoconformação existencial

IX - Sendo certo que tal asserção se encontra expressamente plasmada no sistema do articulado presente no RAI e, em especial, nos artigos 39.º, 53.º e 58.º X - Encontrando-se, por vias disso, os elementos subjetivos dos tipos incriminadores consignados expressamente no RAI, não se vislumbrando o mínimo de razão na motivação associada à decisão da correspondente rejeição

XI - Estamos em crer, ao contrário do entendimento do Tribunal a quo, que não houve nenhum desrespeito pelos princípios do acusatório e do contraditório, porquanto no RAI estão consignados todos os elementos fáctico-circunstanciais e normativos, que permitem ao Arguido, de forma cabal e fluida, gizar a sua tese contraditória e, por vias disso, construir adequadamente a sua defesa

XII - Antes estando em causa a preterição do princípio da verdade material, sobrelevando uma justiça, senão kafkiana, ao menos exacerbadamente formalista

XIII - Ora, tendo o Assistente o direito de recorrer à abertura de instrução quando afetado por uma decisão de arquivamento, por reputar existirem indícios suficientes da prática de determinado crime e identificado o seu autor, com vista ao questionamento da bondade de tal decisão decorrente do encerramento do Inquérito, XIV - tem-se por violado tal direito, nos termos dos arts. 69º, n.º 2, al. a), 286º e 287º, n. º1 al. b) e n.º 2 do CPP, e dos arts. 20º e 32º, n.º 1 da CRP, vislumbrando-se a decisão Recorrida ferida de nulidade insanável, nos termos do art. 119º, al. d) do CPP, que ora se argui

XV - Pelo que deverá ser a douta decisão Recorrida revogada e substituída por uma outra que admita a abertura de instrução e ordene a realização dos atos probatórios consignados no RAI.” Termina pedindo a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que determine o recebimento do requerimento de abertura de instrução

* O recurso foi admitido

Na 1.ª instância, o Ministério Público, pugnou pela improcedência do recurso e pela consequente manutenção da decisão recorrida, tendo apresentado as seguintes conclusões: “1. A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento; 2. Sendo a instrução requerida pelo assistente, a mesma apenas pode dizer respeito a factos relativamente aos quais o M.ºP.º não tenha deduzido acusação; 3. O requerimento para abertura de instrução apresentado pela assistente deve conter, para além dos requisitos constantes dos arts. 287 n.º 2 e 283 n.º 3 als. b) e c) do CPP, a narração própria de uma acusação, mediante a descrição dos factos concretos susceptíveis de integrar todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo criminal que a assistente imputa ao arguido; 4. O requerimento acusatório formulado pelo assistente delimita o objecto do processo, com a correspondente vinculação temática do tribunal, garantindo a estrutura acusatória do processo e a defesa do arguido que, sabendo concretamente quais os factos e os crimes que lhe são imputados, pode exercer o contraditório; 5. No caso em apreço, a assistente, não fez no RAI a necessária inventariação factual equivalente a uma acusação, limitando-se a enumerar as razões de discordância relativamente ao despacho de arquivamento do M.ºP.º, omitindo a descrição integrar dos factos susceptíveis de preencher o elemento subjectivo dos tipos de crimes que imputa ao arguido; 6. Ao rejeitar o RAI com fundamento na sua inadmissibilidade legal, o Mer.º JIC a quo não violou o disposto nos arts. 286 e 287 n.º 3 do CPP

Em face do exposto, não deverá ser concedido provimento ao recurso, mantendo-se o douto despacho recorrido.” * A Exmª. Procuradora Geral Adjunta neste Tribunal da Relação emitiu parecer, tendo-se pronunciado no sentido da sua improcedência

* Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do CPP, não tendo sido apresentada qualquer resposta

Procedeu-se a exame preliminar

Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir

*** II – Fundamentação

II.I Delimitação do objeto do recurso

Nos termos consignados no artigo 412º nº 1 do CPP, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente na sua motivação, as quais definem os poderes cognitivos do tribunal ad quem, sem prejuízo de poderem ser apreciadas as questões de conhecimento oficioso

Em obediência a tal preceito legal, a motivação do recurso deverá enunciar especificamente os fundamentos do mesmo e deverá terminar pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, nas quais o recorrente resume as razões do seu pedido, de forma a permitir que o tribunal superior apreenda e conheça das razões da sua discordância em relação à decisão recorrida

No presente recurso e considerando as conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, é apenas uma a questão a apreciar e a decidir, a saber: - Saber se o requerimento de abertura de instrução apresentado pela recorrente contém todos os elementos necessários ao seu recebimento e, consequentemente, se deveria ter sido admitido ou se, tal como sustenta a decisão recorrida, se revela legalmente inadmissível em virtude de não conter os factos relativos aos elementos subjetivos dos tipos imputados ao arguido

*** II.II - A decisão recorrida

Decidiu o tribunal recorrido nos seguintes termos: “(…) Requerimento de abertura de instrução apresentado pela Assistente – [ref.ª …, fls. 88 a 108] Dispõe o artigo 286.º, n.º1 do Código de Processo Penal que “a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”, sendo que o assistente a pode requerer, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação (artigo 287.º, n.º 1, al. a) do CPP)

Nos termos do n.º 2 do artigo 287.º do Código de Processo Penal, o requerimento de abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, sendo-lhe...

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