Acórdão nº 2548/21.4T8ACB.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 24 de Outubro de 2023

Magistrado ResponsávelHENRIQUE ANTUNES
Data da Resolução24 de Outubro de 2023
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Relator: Henrique Antunes 1.º Adjunto: Falcão Magalhães 2.ª Adjunta: Teresa Albuquerque Apelações em processo comum e especial (2013) Proc. n.° 2548/21.4T8ACB.C1 Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra: 1.

Relatório.

Os réus AA e cônjuge, BB, apelaram da sentença da Sra. Juíza de Direito do Juízo Local Cível da Comarca ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, que julgando parcialmente procedente a acção declarativa de condenação, com processo comum, que contra eles foi proposta por CC os condenou a pagar a este a importância de € 28.500,00, acrescida dos respectivos juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal dos juros civis sucessivamente em vigor, actualmente fixada em 4%, contados da data da citação até efectivo e integral pagamento, pedindo a sua revogação.

Os apelantes remataram a sua alegação com as conclusões, bem numerosas e latitudinárias, seguintes: (…).

Conforme referido nestas alegações de recurso, a douta decisão de recurso efectuou uma errada interpretação dos factos, que impunha decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto dada como provada e também uma errada aplicação do direito, nomeadamente dos artigos 445.° a 450.°, todos do Código de Processo Civil.

O autor, na resposta ao recurso, concluiu pela sua improcedência.

2.

Factos relevantes para o conhecimento do objecto do recurso.

O Tribunal de que provém o recurso decidiu a matéria de facto nestes termos: 2.1.

Factos provados.

1) Autor e réus mantiveram uma relação comercial, terminada por altura de inícios do ano de 2016, no desenvolvimento da qual o autor comprava aos réus suínos que estes criavam. (acordo) 2) Nesse período, nos meses de Novembro e Dezembro do ano de 2015, o autor entregou aos réus, a solicitação destes, as seguintes quantias monetárias, cuja soma ascende ao valor global de €28.500,00, através de 4 cheques: - €5.000,00, em 02/11/2015, através do cheque n.° ...11, sacado sobre o «Banco 1...», agência de ...; - €7.000,00, em 19/11/2015, através do cheque n.° ...99, sacado sobre o «Banco 1...», agência de ...; - €10.000,00, em 25/11/2015, através do cheque n.° ...93, sacado sobre o «Banco 1...», agência de ...; - €6.500,00, em 03/12/2015, através do cheque n.° ...90, sacado sobre o «Banco 1...», agência de ....

3) Os réus obrigaram-se a restituir ao autor as referidas quantias quando lhes fosse possível.

4) O teor objectivo do documento n.° 5 junto com a petição inicial, original a fls. 58 e 59, intitulado «DECLARAÇÃO DE CONFISSÃO DE DÍVIDA», datado de 30/10/2019, aqui dado por integralmente 5) Os réus foram citados para os termos da acção a 16/12/2021, data das assinaturas dos avisos de recepção juntos a fls. 16 e 17.

2.2.

Factos não provados.

Os demais alegados na petição inicial e na contestação, os irrelevantes, os repetidos, os conclusivos, os que encerrem conceitos de Direito e os que se encontrem em contradição ou além dos dados como provados, designadamente: - O autor interpelou os réus para restituição das quantias referidas nos factos provados no início de Abril de 2016.

- Os cheques mencionados nos factos provados destinaram-se a liquidar as contas entre autores e réus relativas aos fornecimentos de suínos.

- O réu facultou ao autor documentos em branco, nomeadamente guias de transporte e declarações, de forma a que este pudesse justificar transporte de animais sem que estivessem emitidas as guias ou facturas.

- O documento intitulado «DECLARAÇÃO DE CONFISSÃO DE DÍVIDA», datado de 30/10/2019, trata-se de uma montagem sobre um papel onde poderia constar a assinatura do réu ou a utilização de outro documento para a respectiva montagem.

- A assinatura constante do documento intitulado «DECLARAÇÃO DE CONFISSÃO DE DÍVIDA», datado de 30/10/2019, como sendo pertencente ao réu, não foi aí aposta pelo próprio punho deste, na data que nele figura e na presença da entidade que procedeu ao reconhecimento da assinatura.

2.3.

Motivação da decisão da matéria de facto.

A Sra. Juíza de Direito adiantou, para justificar o julgamento referido em 2.1. e 2.2., a motivação seguinte: (…).

3.

Fundamentos.

3.1.

Delimitação do âmbito objectivo do recurso.

O âmbito objetivo do recurso é delimitado pelo objecto da acção, pelos casos julgados formados na instância de que provém, pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, e pelo recorrente, ele mesmo, designadamente nas conclusões da sua alegação (art.° 635.° n.°s 2, 1^ parte, 3 a 5, do CPC).

Maneira que, considerando o conteúdo da decisão impugnada e das alegações das partes, a questão concreta controversa colocada à atenção desta Relação é a de saber se aquela decisão deve ser revogada e logo substituída por outra que absolva os impugnantes da totalidade do pedido.

Como decorre da sentença impugnada e da alegação do recurso, a controvérsia gravita em torno da conclusão de quatro contratos que realizam um função de troca - e de troca de dinheiro por dinheiro: o contrato de mútuo gratuito, que é o contrato pelo qual o mutuante entrega, ou se obriga a entregar, ao mutuário, uma determinada quantia em dinheiro, obrigando-se o mutuário a restituir tanto do mesmo género e qualidade (art.°s 1142.° e 1145.°, n.° 1, do Código Civil)[1].

O mútuo tem sido considerado um contrato real quoad constitutionem, portanto, como um contrato cuja verificação depende da tradição da coisa que constitui o seu objecto mediato[2]. Trata-se de uma concepção em clara regressão: de todo o modo, não haverá dificuldades em admitir, ao lado do mútuo típico real - que é aquele que surge regulado no Código Civil - mútuos meramente consensuais[3].

Assentando-se, todavia, na natureza real quoad constitutionem do contrato de mútuo, segue-se, como corolário que pode recusar-se, a exigência, para a sua verificação da traditio - e a acceptio - da coisa mutuada.

Relativamente à sua formação, o contrato de mútuo está sujeito às regras gerais (art.° 224.° e ss. do Código Civil). Se, porém, o contrato for real quoad constitutionem, é necessária a tradição da quantia mutuada para o mutuário para que se considere efectivamente constituído: ainda que as partes tenham acordado sobre todas as condições do contrato, antes da traditio, não há mútuo.

Como claro sintoma de alguma inércia legislativa, sem que nisso se veja algum interesse digno de tutela, o contrato de mútuo regulado no Código Civil continua a ser caracterizado, à semelhança de outras legislações europeias, seguindo a vetusta tradição romanista, como um negócio real quoad constitutionem, exigindo-se, para a sua conclusão, além do consenso das partes, a entrega duma coisa[4].

Isso não significa, todavia, que a entrega possa ser considerada um acto de forma do contrato de mútuo, até porque aquela ocorre posteriormente ao acordo das partes; a entrega é aqui parte integrante do próprio regulamento de interesses que integra o conteúdo do contrato de mútuo, constituindo uma mera antecipação do seu momento executivo, que assegura a concretização do negócio previamente acordado, da coisa não é um acto devido em execução do contrato, nem um elemento condicionador da sua eficácia, integra-se na facti species contratual, não constituindo uma condição da respectiva validade, devendo antes ser considerada como um elemento do mútuo legalmente típico, desencadeando, quando se verifique, a aplicação da regime correspondente[5].

Na generalidade dos casos, a tradição consiste na entrega ou colocação à disposição, por um dos contraentes - o mutuante - de uma coisa que é o objecto mediato do contrato, ou que a representa, e na correspondente recepção pelo outro contraente; essa tradição, embora seja requisito do contrato, tanto pode acrescer ao acordo contratual, formado nos termos gerais, como constituir acto significativo do próprio acordo. E não se julga mesmo necessário que a entrega da coisa objecto mediato do contrato seja feita ou mutuário, podendo sê-lo, a indicação do último, a terceiro. É que o ocorre, v.g., com o subtipo mais frequente de mútuo oneroso de dinheiro - o mútuo bancário, que é um mútuo de escopo - em que o mutuante não entrega a quantia mutuada ao mutuário, mas, por indicação deste, a terceiro - v.g., o vendedor da habitação adquirida com a quantia mutuada.

Exigindo-se para a conclusão do contrato de mútuo real, além do consenso das partes, a tradição duma coisa, se esta entrega não tiver lugar, então o contrato não se considera concluído. A não conclusão do contrato, por ausência de entrega da coisa mutuada pode dar lugar a consequências jurídicas várias - v.g., a uma responsabilidade in contraendo - mas devendo ter-se por certo que o contrato não foi concluído, não parece que o problema da sua invalidade se coloque seja qual for o vício que se invoque para a cominar: a discussão sobre a validade ou invalidade de um qualquer contrato, supõe, em boa lógica, que esse contrato se mostra perfeito, no sentido de concluído ou celebrado. Assim, bem pode duvidar-se que a falta de entrega da coisa mutuada tenha por consequência jurídica a nulidade do contrato de mútuo por falta de objecto, parecendo mais exacto que o caso é antes de não conclusão desse mesmo contrato.

Concluindo-se pela nulidade do contrato, a respectiva declaração, por força do seu carácter retroactivo, dá lugar a uma relação de liquidação: tudo o que tiver sido prestado em execução do negócio declarado nulo deve ser restituído, ou, se a restituição em espécie não for possível, o respectivo valor (art.° 289.° do Código Civil).

Efectivamente, a decisão impugnada vinculou os apelantes ao dever de realizar o apelado uma prestação pecuniária com fundamento na nulidade, por falta de forma, de quatro contratos de mútuo que, sendo de valor superior € 2 500,00 não foram concluídos por documento assinado pelo mutuário (art.°s 220°, 285.°, 286.°, 289.°. n.° 1, e 1143.° do Código Civil).

E é essa a ratio decidendi da sentença apelada, o fundamento conspícuo da condenação dos apelantes naquela prestação, e não a confissão de declaração de dívida...

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