Acórdão nº 0824/11.3BEPRT de Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), 14 de Setembro de 2023

Magistrado ResponsávelSÃO PEDRO
Data da Resolução14 de Setembro de 2023
EmissorSupremo Tribunal Administrativo (Portugal)

Acordam na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo 1. Relatório 1.1.

A.... S.A., e B..., S.A ..., vêm, nos termos do art.º 150º do CPTA, recorrer do acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, datado de 30 de Abril de 2020, que negou provimento ao recurso por si interposto da sentença proferida no TAF do Porto, proferido na ACÇÃO ADMINISTRATIVA intentada contra o INFARMED – AUTORIDADE NACIONAL DO MEDICAMENTO e PRODUTOS DE SAÚDE IP.

1.2. Na referida acção administrativa foi deduzido pedido de anulação contra o INFARMED - AUTORIDADE NACIONAL DO MEDICAMENTO E PRODUTOS DE SAÚDE, IP: - (i) dos actos praticados pelo R., consubstanciados, respectivamente, no cancelamento do alvará n.º ...64, datado de 17/03/2009, atribuído para funcionamento da C... e no subsequente encerramento da mesma, - (ii) a anulação do ato praticado pelo R. de declaração de extinção, por inutilidade superveniente, do procedimento de transferência da C..., - (iii) a condenação do R. ao averbamento no alvará da C... da transmissão das participações sociais representativas do capital social da A. A..., - (iv) a condenação do R. ao averbamento no alvará da C... da transferência de localização da mesma farmácia e - (v) a condenação do R. a reparar os danos provocados, às AA. em consequência da prática dos actos administrativos ilegais acima mencionados e da omissão das condutas a que se achava legalmente vinculado.

1.3. O Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto julgou totalmente improcedente a acção administrativa de anulação dos actos do INFARMED – que (i) ordenaram o cancelamento do alvará e o encerramento de uma farmácia; e (ii) por via da inutilidade decorrente do acto anterior, extinguiu o procedimento de transferência da localização da farmácia em causa - e (iii) os consequentes pedidos condenatórios/indemnizatórios.

1.4. Interposto recurso para o Tribunal Central Administrativo Norte, este negou provimento ao recurso jurisdicional, confirmando a sentença recorrida.

1.5. Deste acórdão foi interposto o presente recurso de revista.

1.6. Na sua motivação de recurso as Recorrentes – A... e B... – concluíram, assim, quanto ao mérito: “(…) (II) Quanto aos fundamentos do Recurso: E.

A propriedade da C..., sita na Av. ..., freguesia ..., concelho ..., distrito ..., estava averbada no alvará nº ...64, em nome da A..., aqui Recorrente, cujo único acionista era o farmacêutico AA.

F.

A Recorrente A... submeteu ao Recorrido Infarmed um pedido de averbamento da transmissão da totalidade das ações representativas do seu capital social da A... a favor da B..., também aqui Recorrente.

G.

A Recorrente A... requereu, também, que se procedesse ao averbamento no respetivo alvará da nova localização solicitada para a C..., conforme já havia sido autorizada por decisão do Recorrido Infarmed (em concreto por despacho da Exma. Senhora Diretora de Direcção, datado de 21 de Maio de 2010, determinando o averbamento no alvará da transferência das instalações).

H.

O Recorrido Infarmed indeferiu o pedido apresentado pelas Recorrentes com o fundamento de que todas as sociedades comerciais que participem, direta ou indiretamente, no capital social da sociedade comercial A... teriam necessariamente de ter o seu capital social representado por ações nominativas.

I.

Através da referida decisão, o Recorrido Infarmed defendeu que a norma do n.º 2 do artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 307/2007, de 31 de agosto – «Nas sociedades comerciais em que o capital social é representado por ações, estas são obrigatoriamente nominativas» – se estendia, na sua aplicação, igualmente a todos os acionistas, diretos ou indiretos, da Recorrente A....

J.

Na pendência da presente ação, é, então, publicada a Lei n.º 16/2013, que, entre o mais, veio alterar a redação do n.º 2 do artigo 14.º do Decreto-Lei, precisamente no sentido de acrescentar que a obrigatoriedade de serem nominativas as ações representativas do capital social de sociedades proprietárias de farmácias se aplica igualmente às sociedades que participem, direta ou indiretamente, no capital daquelas mesmas sociedades – sociedades proprietárias de farmácias.

K.

Da Lei n.º 16/2013 constava ainda a seguinte cláusula de retroatividade: «o diploma dispõe transitoriamente nos seguintes termos: aos processos pendentes em juízo à data da entrada em vigor da presente lei (01.03.2013) aplicar-se-ão, com as devidas adaptações, as normas dela constantes de modo a garantir o efeito do n.º 1 do artigo 53.º do Decreto-Lei n.º 307/2007, de 31 de agosto».

L.

Com base na aplicação retroativa da referida Lei Nova, o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto e o Tribunal Central Administrativo Norte “validaram” a atuação do Recorrido e negaram provimento à pretensão das Recorrentes.

M.

É entendimento unânime dos tribunais judiciais superiores que para que uma lei nova possa ser realmente interpretativa: a) a solução do direito anterior tem de ser controvertida ou pelo menos incerta; e b) a solução definida pela nova lei tem de se situar dentro dos quadros da controvérsia, de tal forma que o julgador ou o intérprete a ela poderiam chegar sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação da lei.

N.

É evidente que não é esse o caso dos autos, tanto que o legislador teve de consagrar expressamente a aplicação da nova lei aos processos pendentes em juízo.

O.

Em primeiro lugar, na redação primitiva do n.º 2 do artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 307/2007, o legislador não procedia a qualquer distinção entre propriedade direta e propriedade indireta, não fazendo, por isso, qualquer referência gramatical a esta situação jurídica, com vista a comtemplá-la expressamente na hipótese normativa.

P.

Em segundo lugar, o âmbito de incidência objetivo da norma do n.º 2 do artigo 14.º era claro e perfeitamente delimitado: se sociedades comerciais fossem proprietárias diretas de farmácias, com vista ao controlo do limite fixado no artigo 15.º do mesmo diploma (ou seja, que cada proprietário só poderia deter, no máximo, 4 farmácias), o seu capital social tinha que ser forçosamente representado por ações nominativas.

Q.

Em terceiro lugar, foi o próprio legislador que, na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 67/XII, reconheceu expressamente que se pretendia estender a referida obrigação “também” às ações das sociedades que participem direta ou indiretamente no capital social da sociedade comercial proprietária da Farmácia.

R.

Em face da redação primitiva do n.º 2 do artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 137/2007, é objetivo e factual que a solução contemplada da lei nova – independentemente de concretizar, ou não, a intenção e/ou a vontade do legislador – se situa fora dos quadros da controvérsia ou da incerteza suscitados pela interpretação da redação primitiva da norma (e isto na medida em que, insiste-se, nem sequer se suscitavam quaisquer dúvidas ou incertezas a este propósito específico).

S.

A lei nova é decididamente inovadora e não meramente interpretativa, não beneficiando do efeito retroativo típico desta última, conforme decorre do artigo 13.º do Código Civil.

T.

Ainda que assim tenha sido determinado pelo legislador nacional, a nova Lei n.º 16/2013 não poderia aplicar-se retroativamente ao caso dos autos, sob pena de violação dos mais elementares princípios constitucionais.

U.

As convenientes e cirúrgicas modificações introduzidas pela Lei n.º 16/2013 consubstanciam modificações legislativas que ferem, no seu cerne, o artigo 18.º da CRP, mais especificamente os seus n.os 2 e 3, pelo que toca aos limites a observar pelas leis restritivas de direitos fundamentais e o próprio art.º 2.º da mesma CRP – Princípio do Estado de Direito Democrático –, muito em particular na sua dimensão de proteção da confiança perante intervenções, também de matriz legislativa, dos poderes públicos.

V.

Na verdade, do que se trata é de aferir das condições de validade de um negócio jurídico de aquisição de participações sociais à luz de uma norma que não estava em vigor à data da respetiva celebração, em clara e intolerável ofensa aos princípios da proibição do arbítrio e da proteção da confiança, da proporcionalidade e da certeza e segurança jurídicas, com desvios inadmissíveis à regra tempus regit actum.

W.

Desconhece-se, por a lei não indicar ou sequer indiciar, qualquer razão de interesse público ponderosa que justifique este alargamento desmesurado do conceito de proprietário/explorador/gestor indireto e tudo agravado pela circunstância da aplicação dos preceitos em causa às ações pendentes em juízo.

X.

Acompanhando de perto as conclusões ínsitas nos Pareceres do Exmo. Senhor. Professor Doutor J.J. Gomes Canotilho: a) o regime da Lei n.º 16/2013 revela-se materialmente inconstitucional por violação do princípio da proporcionalidade; b) a aplicação retroativa das normas da citada lei, por se tratar de uma lei restritiva de direitos, liberdades e garantias, importa a violação da garantia de não retroatividade das leis restritivas (cfr. artigo 18.º da CRP); c) a aplicação retroativa das referidas normas terá ainda como consequência a efetiva e plena destruição (retroativa) de direitos cuja génese e exercício ocorreram ao abrigo de um regime legal cuja constitucionalidade nunca foi posta em causa, o que se traduz numa violação clara dos princípios ínsitos na norma do n.º 3 do artigo 18.º da CRP; d) configurando-se como uma lei de carácter restritivo, a sua referência aos processos judiciais em curso, dificilmente permitirá a “passagem” do seu regime no teste do requisito da generalidade e da abstração, e bem assim, da não violação do princípio da separação de poderes.

Y.

Em razão de tudo quanto antecede, e atenta a manifesta inconstitucionalidade da aplicação retroativa da Lei n.º 16/2013, impunha-se ao Tribunal a quo julgar o caso dos autos exclusivamente por referência ao quadro-legal vigente à data da prática dos atos impugnados, designadamente, por referência à primitiva redação do Decreto-Lei n.º 307/2007.

Z.

Se o...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT