Acórdão nº 78/23.9YRCBR.S2 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 13 de Setembro de 2023

Magistrado ResponsávelLOPES DA MOTA
Data da Resolução13 de Setembro de 2023
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça: I. Relatório 1.

AA, com a identificação que consta dos autos, interpõe recurso do acórdão de 29 de junho de 2023 do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido em cumprimento do acórdão de 31 de maio de 2023 deste Supremo Tribunal de Justiça, que declarou a nulidade do anterior acórdão daquele mesmo tribunal de 26 de abril de 2023, e que autoriza a sua extradição para a República Federativa do Brasil para efeitos de cumprimento das penas de 4 meses e 10 dias de detenção no regime aberto e 7 anos, 7 meses e 27 dias de reclusão, em que foi condenado pela 3.ª Vara de Violência Doméstica de .../MG, pela prática de crimes que, verificada a dupla incriminação, correspondem, na lei portuguesa, aos crimes de ofensa à integridade física qualificada, de ofensa à integridade física grave, de violência doméstica e de maus tratos, previstos e punidos pelos artigos 145.º, n.ºs 1, al. c), e 2, 144.º, al. d), 152.º, n.ºs 1, al. e), 2, al. a), e 3, al. a), 152.º-A, n.ºs 1, al. a), e 2, al. a), do Código Penal.

2.

Apresenta recurso com motivação de que extrai as seguintes conclusões: «I. Para justificar um decisão de recusa de extradição AA suscitou, em sede de recurso do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra a 26 de Abril de 2023, as condições degradantes e tortuosas dos Estabelecimentos Prisionais brasileiros, tendo em vista a recusa da sua extradição com base no disposto no art.º 6.º, n.º 1 da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto, para além do disposto no art.º 5.º da DUDH e ainda 3.º da CEDH, para além de aflorar o facto de não ter tido acesso, na sua verdadeira extensão a um processo equitativo no Brasil, nos termos do art.º 20.º, n.º 4 da CRP; II. Face à declaração de nulidade pelo Supremo Tribunal de Justiça do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, foi proferido novo acórdão, contudo em contravenção ao ordenado por este Supremo Tribunal, dado que em momento algum foi mencionado o teor do Relatório do Comité contra a Tortura das Nações Unidas, de abril de 2023, sendo apenas feita alusão à declaração emitida pelas autoridades brasileiras; III. Quatro das seis testemunhas arroladas pelo recorrente são colegas de trabalho e de nacionalidade brasileira, incidindo o objecto do seu depoimento sobre a realidade brasileira, face à assimetria de condições nos estabelecimentos prisionais e ao tratamento desumano existente nos mesmos, quer por parte da administração pública e/ou privada dos EPs, quer advinda dos restantes reclusos, pelo que se impunha a sua inquirição - em cumprimento do disposto no n.º 2 do art.º 56.º da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto – e ter sido realizada audiência para o efeito e não uma tomada de decisão sem observância por todos os meios de prova, não obstante dar credibilidade às declarações do arguido no que diz respeito às questões que o Tribunal presumiu que as testemunhas iriam responder; IV. Estamos perante uma nulidade por omissão de pronúncia no que concerne ao Relatório elaborado pelas Nações Unidas e que era expressamente referido pelo STJ como sendo de referência para aquilatar da viabilidade da extradição ou não e ainda de diligências que foram consideradas como profícuas para a defesa do extraditando, pelo que se requer a declaração de nulidade do acórdão recorrendo, com as legais consequências dos arts. 118.º, 120.º, n.º 2, al. d) e 379.º, n.º 1, al. c), do CPP, subsidiariamente aplicável ao presente caso concreto, devendo ser determinada a audição das testemunhas, nos termos do art.º 56.º da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto; V. O Tribunal a quo não curou de instruir de forma adequada, logo exaustiva, os autos, com o fito de melhor se munir de informação para tomar uma decisão que em nada perigasse os valores e princípios que enformam o ordenamento jurídico português, para além da ordem jurídica internacional, mormente no que tange aos direitos humanos; VI. Num relatório elaborado oficiosamente pelo República Federal do Brasil, é afirmado por uma perita que os estabelecimentos prisionais têm diversas falhas e que há uma inércia generalizada para melhorar as condições dos reclusos, em virtude de o espaço de reclusão não dever servir para estigmatizar e retirar dignidade ao recluso, devendo ao inverso, ter como móbil a ressocialização do agente para que este não venha a reincidir no futuro e para criar condições para este vir a reinserir-se na sociedade de forma profícua para esta e para o agente; VII. O Brazil 2022 Human Rights Report, dá nota da situação deplorável e inaceitável da generalidade do sistema prisional Brasileiro; VIII. É reportado pelas Nações Unidas - e no relatório elaborado pelo Bureau of Democracy, Human Rights and Labor Americano - que existem casos de tortura e tratamentos desumanos, para além da sobrelotação, a qual constitui um problema inegável do sistema prisional brasileiro, circunstância que foi igualmente evidenciada por este Supremo Tribunal ao referir-se ao Relatório elaborado pela Comité do Human Rights Watch, de abril de 2023; IX. São consabidas as condições desumanas dos EPs brasileiros e do tratamento tortuoso a que os condenados e presos preventivos são sujeitos, quer pelos guardas prisionais (há dezenas e dezenas de relatos de brutalidade policial), quer pelos restantes reclusos, por conseguinte, salvo se o Estado Brasileiro tivesse facultado a indicação do EP para onde AA fosse cumprir pena e a garantia das condições desse EP - enquanto excepção ao facto notório e público das condições insalubres, degradantes e “indignificantes” dos EPs a nível federal – a extradição de AA tem de ser rejeitada, por violação do disposto no na al. a) do n.º 1 do art.º 6.º da Lei n.º 144/99; X. Bem sabemos que o princípio da reciprocidade, com assento legislativo no art.º 4.º da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto e no art.º 1.º da Convenção de extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, não deve ser perigado, pois em situações de extradição futura onde os papéis se invertam, a República Federal do Brasil poderá invocar a falta de reciprocidade portuguesa, mas certo é que o princípio não pode ser cego; XI. Não podemos fingir que o Sistema Prisional Brasileiro não padece de graves enfermidades e que tem de ser objecto de um trabalho intenso e imediato e que, por via disso, estão reunidas condições para um pedido de extradição ser negado; XII. Foi junto aos autos pelas autoridades brasileiras um documento que apenas reproduz normas legais, e tal tem dignidade suficiente para afiançar condições diferentes das conhecidas, designadamente porque a 5 de junho de 2023 o Tribunal a quo, quando pede garantias ao Estado requerente, faz questão de requerer a necessária concretização das garantias, e tal, salvo o devido respeito, não é cumprido; XIII. A protecção contra tratamentos desumanos e degradantes é absoluta face ao disposto no art.º 3.º da CEDH, sendo igualmente trazidos à discussão o “artigo 7.º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP) (ONU, Nova Iorque, 1966), que constitui um tratado de âmbito universal, de que a República Portuguesa e a República Federativa do Brasil são Estados-Partes; no artigo 5.º da Convenção Americana dos Direitos Humanos, de que o Brasil é Estado-Parte; no artigo 3.º na Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), ratificada por Portugal; nos artigos 1.º, 2.º, 3.º e 16.º da Convenção contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes (ONU, 1984) e no respetivo Protocolo Facultativo, de 2002, em vigor no Brasile em Portugal; na Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura (1985), em vigor no Brasil, e na Convenção Europeia para a Prevenção da Tortura e Penas ou Tratamentos Desumanos e Degradantes (1987), bem como por soft law como as Regras Mínimas das Nações Unidas para Tratamento de Prisioneiros de 1995 e as “Regras de Nelson Mandela” (2015)8” que traçam essa realidade; XIV. No presente caso concreto as garantias prestadas pelas autoridades brasileiras são vazias de sentido, pois contrariam toda a literatura sobre o assunto, para além de contrariarem ainda os Relatórios elaborados pelas Nações Unidas, onde está inequivocamente assente que o sistema prisional brasileiro não está em condições para assegurar um tratamento que não seja desumano, independentemente de ser afirmado (sem prova) que se dá garantias do contrário; XV. O risco para AA é real e não meramente hipotético, pelo que impendia sobre o Estado Requisitante a obrigação de fazer uma avaliação adequada e séria do risco para poder afirmar que cumpre com os requisitos internacionalmente exigidos para efeitos de extradição; XVI. Acresce ainda que não sendo suficiente uma declaração da envergadura da emitida pelas autoridades brasileiras remetidas aos presentes autos, cabia às autoridades portuguesas proceder a uma avaliação adequada da situação, o que não aconteceu; XVII. Esta ausência de um “proper assessment” poderá determinar a condenação do Estado Português por violação de uma obrigação que recaía sobre si, independentemente das relações diplomáticas existentes, face ao disposto no art.º 3.º da CEDH, pois estamos perante uma norma de ius cogens que não admite derrogação por acautelarem valores e direitos absolutos, neste caso não ser submetido a tratamentos desumanos e degradantes no sistema prisional brasileiro, tal como já abordado na jurisprudência do TJUE; XVIII. A reiteração da garantia genérica que instruiu o pedido de extradição, se nos permitem a ousadia, é apenas “mais do mesmo” (apesar da reprodução de normas em vigor no ordenamento jurídico brasileiro, designadamente o art.º 41.º da Lei das Execuções, art.º 5.º da Constituição Brasileira e genericamente a DUDH) e não cumpre com o que é exigido no direito nacional e internacional, pelo que cumpria ao tribunal recorrido, neste caso o Juízo que julgou os autos no Tribunal da Relação de Coimbra, a recolha de informações sérias e imparciais que...

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