Acórdão nº 512/23 de Tribunal Constitucional (Port, 24 de Julho de 2023

Magistrado ResponsávelCons. Mariana Canotilho
Data da Resolução24 de Julho de 2023
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 512/2023

Processo n.º 525/2023

2.ª Secção

Relatora: Conselheira Mariana Canotilho

Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,

I – Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação do Porto, a Decisão Sumária n.º 485/2023, deste Tribunal Constitucional, não admitiu o recurso de constitucionalidade interposto pelo recorrente A., ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, adiante designada por LTC). Pela referida decisão entendeu-se, nos termos do disposto no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, não conhecer do objeto do recurso, com a seguinte fundamentação:

«(…)

4. Conforme consta do exposto no requerimento de interposição, o presente recurso de constitucionalidade foi apresentado «(…) ao abrigo do disposto nos artigos 70.º, n.º 1, alínea b), n.º 2 e n.º 3, 72.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, 75.º e 75.º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (…)» (cf. fls. 1183).

5. Como se sabe, no sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge‑se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas, e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas diretamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas.

Constitui jurisprudência uniforme do Tribunal Constitucional que o recurso de constitucionalidade, reportado a determinada interpretação normativa, tem de incidir sobre o critério normativo da decisão, sobre uma regra abstratamente enunciada e vocacionada para uma aplicação potencialmente genérica, não podendo destinar-se a pretender sindicar o puro ato de julgamento, enquanto ponderação casuística da singularidade própria e irrepetível do caso concreto, daquilo que representa já uma autónoma valoração ou subsunção do julgador – não existindo no nosso ordenamento jurídico-constitucional a figura do recurso de amparo de queixa constitucional para defesa de direitos fundamentais.

Por outro lado, o recurso previsto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b) da LTC prevê a suscitação da inconstitucionalidade normativa durante o processo. A suscitação atempada de uma questão de constitucionalidade implica, assim, que o recorrente cumpra o ónus de a colocar ao tribunal a quo, enunciando-a de forma expressa, clara e percetível, em ato processual e segundo os requisitos, de forma que criem para o mesmo tribunal um dever de pronúncia sobre a matéria a que tal questão se reporta (cfr. artigo 72.º, n.º 2, da LTC).

Ainda no que respeita aos pressupostos gerais de todos os recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade e da legalidade, o Tribunal Constitucional tem entendido, de forma reiterada, que tais recursos têm sempre caráter ou natureza instrumental, devendo a solução da questão de inconstitucionalidade ou de ilegalidade normativa, submetida à apreciação, poder repercutir-se, de forma útil e efetiva, na decisão proferida pelo tribunal recorrido acerca do caso concreto a dirimir. Ou seja, só haverá interesse processual em apreciar a questão de constitucionalidade suscitada quando o eventual julgamento de inconstitucionalidade for suscetível de se poder projetar ou repercutir, de forma útil e eficaz, na decisão recorrida, de modo a alterar ou modificar, no todo ou em parte, a solução jurídica que se obteve no caso concreto, implicando a respetiva reponderação pelo tribunal a quo.

Por isso, o objeto do recurso de constitucionalidade deve coincidir com a ratio decidendi da decisão recorrida. A utilidade do recurso de constitucionalidade encontra-se liminarmente afastada quando, designadamente, o critério normativo sindicado não coincide com o que foi aplicado pelo tribunal a quo.

Expostos, sumariamente, os pressupostos de que depende o conhecimento do recurso de constitucionalidade interposto nos termos do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, cumpre verificar o seu preenchimento, relativamente às questões colocadas pelo recorrente neste processo.

6. Conforme resulta do exame do requerimento de interposição de recurso constante dos autos, o recorrente pretende sindicar, junto deste Tribunal Constitucional, as seguintes questões de constitucionalidade:

a) «A inconstitucionalidade da interpretação do artigo 125.º, 127.º e 355.º, todos do CPP no sentido da apreciação pelo Tribunal através da utilização de prova que se julga proibida, para fundamentação da sua convicção, o teor do auto de notícia de fls. 5- 7.º; aditamento n.º 1 de fls. 17 do inquérito 672/21.2PAESP; auto de denúncia de fls. 19 que deu origem ao inquérito 673/21.0PAESP; aditamento n.º 1 de fls. 20 do inquérito 673/21.0PAESP; aditamento n.º 4 de fls. 45 ou 74; fls. 62 a 64; fls. 86-93; aditamento n.º 8 de fls. 106; fls. 121-134; aditamento n.º 14 de fls. 179; fls. 210 a 210v; fls. 5- 5vº do Apenso A do Inquérito 673/21.0PAESP;»

b) «A inconstitucionalidade da interpretação do artigo 127.º do CPP no sentido da apreciação pelo Tribunal «a quo» da matéria de facto provada em 12, 15, 17, 18, 19, 20, 34, 35, 37, 38, 39, 41, 43, 44, 46, 47, 48 e 49

c) «A inconstitucionalidade da interpretação do artigo 127.º do CPP no sentido da apreciação pelo Tribunal “a quo” da matéria de facto provada em 20 a 33

d) «A inconstitucionalidade da interpretação do artigo 127.º do CPP no sentido da apreciação pelo Tribunal “a quo” da matéria de facto provada em 53 e 56 a 62.»

e) «A inconstitucionalidade da interpretação dos artigos 40.º, 70.º, 71.º n.ºs 1 e 2 e 77.º n.ºs 1 e 2, todos do CP no sentido de que podem ser valorados na escolha da medida da pena concretamente aplicada e na escolha da pena única em caso de concurso a opção pelo Recorrente do seu "direito à negação" e o mesmo não lograr ser provado e a aplicação ao Recorrente de pena única inferior a 5 anos implica que a mesma não seja suspensa na sua execução

7. Analisando as cinco questões de constitucionalidade enunciadas no requerimento de interposição do recurso, facilmente se conclui que as mesmas não constituem verdadeiras questões de constitucionalidade normativa, pelo que não poderão ser objeto de apreciação.

Vejamos:

7.1. Analisando detalhadamente os termos em que foi formulado o primeiro enunciado sob apreciação (cf. alínea a), supra), facilmente se conclui que o mesmo não integra qualquer critério normativo, dotado de generalidade e abstração, passível de constitui objeto idóneo do presente recurso de constitucionalidade. Tal decorre, desde logo, da inclusão, no enunciado sindicado, das referências aos concretos elementos probatórios carreados para os presentes autos e não de determinado “meio de prova”, abstratamente considerado, ou “meio de obtenção de prova”. Mas não só: integra, ainda, no enunciado sindicado, a sua apreciação sobre a utilização daquela prova, julgando-a proibida. É, como tal, manifesta a discordância do recorrente quanto à alegada apreciação probatória levada a cabo pelo Tribunal da Relação do Porto sobre aqueles elementos, ao invés de procurar sindicar um critério normativo extraído conjuntamente daquele arco normativo (artigos 125.º, 127.º e 355.º, todos do Código de Processo Penal) apreciado e aplicado na decisão recorrida.

7.2. Passando à análise das questões de constitucionalidade enunciadas em segundo, terceiro e quarto lugar – todas reportadas ao artigo 127.º do Código de Processo Penal (cf. alíneas b), c) e d) supra) –, constata-se que as mesmas apresentam um sentido puramente declarativo, como tal, não contêm qualquer densidade normativa. Efetivamente, ao enunciar as questões «(…) no sentido da apreciação pelo Tribunal “a quo” da matéria de facto provada em (…)», verifica-se que as mesmas não constituem critérios de atuação normativa, necessariamente assentes num de três operadores deônticos: permissão, obrigação ou proibição. Na verdade, a apontada ausência de normatividade parece dar lugar, a final, à manifestação de discordância da recorrente quanto às conclusões relativas à matéria de facto extraídas da apreciação probatória levada a cabo pelo Tribunal recorrido. Noutras palavras, constata-se que a mera referência à apreciação de determinados factos pelo Tribunal a quo sugere que a intenção do recorrente se reconduz à obtenção da reapreciação da matéria de facto, ao invés de sindicar um critério normativo extraído do artigo 127.º, do Código de Processo Penal.

A este propósito, pode ler-se, no Acórdão n.º 633/08 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt, bem como os demais arestos deste Tribunal adiante citados), o seguinte:

“(…) sendo o objeto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade constituído por normas jurídicas, que violem preceitos ou princípios constitucionais, não pode sindicar-se, no recurso de constitucionalidade, a decisão judicial em si própria, mesmo quando esta faça aplicação direta de preceitos ou princípios constitucionais, quer no que importa à correção, no plano do direito infraconstitucional, da interpretação normativa a que a mesma chegou, quer no que tange à forma como o critério normativo previamente determinado foi aplicado às circunstâncias específicas do caso concreto (correção do juízo subsuntivo).

Deste modo, é sempre forçoso que, no âmbito dos recursos interpostos para o Tribunal Constitucional, se questione a (in)constitucionalidade de normas, não sendo, assim, admissíveis os recursos que, ao jeito da Verfassungsbeschwerde alemã ou do recurso de amparo espanhol, sindiquem, sub species constitutionis, a concreta aplicação do direito efetuada pelos demais tribunais, em termos de se...

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