Acórdão nº 506/23 de Tribunal Constitucional (Port, 11 de Julho de 2023

Magistrado ResponsávelCons. Presidente
Data da Resolução11 de Julho de 2023
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 506/2023

Processo n.º 495/2022

Plenário

Aos 11 dias do mês de julho de dois mil e vinte e três, achando-se presentes o Conselheiro Presidente José João Abrantes e os Conselheiros José Teles Pereira, António Ascensão Ramos, João Carlos Loureiro, José Eduardo Figueiredo Dias, Maria Benedita Urbano (videoconferência), Gonçalo de Almeida Ribeiro, Mariana Canotilho, Joana Fernandes Costa, Afonso Patrão, Rui Guerra da Fonseca e Carlos Medeiros de Carvalho, foram trazidos à conferência os presentes autos.

Após debate e votação, e apurada a decisão do Tribunal, foi pelo Exmo. Conselheiro Presidente ditado o seguinte:

I. Relatório

1. Através de mensagem eletrónica datada de 3 de maio de 2022, depois ratificada pelo Presidente e por uma Vogal executiva do respetivo Conselho de Administração – cf. fls. 2 dos autos –, veio a A., SA (doravante, designada apenas por «A.») suscitar, junto deste Tribunal, a questão de saber se os gestores públicos que exerçam funções não executivas se encontram sujeitos às obrigações emergentes da Lei n.º 52/2019, de 31 de julho, e «(…) designadamente, se lhes é aplicável a obrigatoriedade de envio ao Tribunal Constitucional da declaração única de rendimentos, património, interesses, incompatibilidades e impedimentos», em face do disposto no artigo 3.º, n.º 1, alínea a), da referida Lei.

Nos termos daquele preceito legal, «são considerados titulares de altos cargos públicos» – sujeitos, portanto, ao regime jurídico plasmado na Lei n.º 52/2019, de 31 de julho – «a) Gestores públicos e membros de órgão de administração de sociedade anónima de capitais públicos, que exerçam funções executivas». Como se vê, esta disposição legal estabeleceu, pelo menos literalmente, uma bipartição entre «gestores públicos» e «membros de órgãos de administração de sociedade anónima de capitais públicos», aditando, depois, um inciso final com alcance excludente do âmbito de aplicação da Lei n.º 52/2019, na medida em que faz depender tal aplicação do desempenho de funções executivas.

Sucede que, quer pela sua formulação literal, quer pelo seu posicionamento no final da alínea ora em apreço, não é claro se esse inciso respeita também aos «gestores públicos» ou apenas aos «membros de órgãos de administração de sociedade anónima de capitais públicos», como não é sequer claro, como adiante se verá, qual o sentido e o exato recorte conceptual desta aparente bipartição entre «gestores públicos» e «membros de órgãos de administração de sociedade anónima de capitais públicos».

A dúvida suscitada afigura-se, portanto, inegavelmente pertinente e de significativo alcance prático, dependendo do seu cabal esclarecimento a delimitação do âmbito subjetivo de aplicação da Lei n.º 52/2019 adentro do sector empresarial público.

2. A Lei n.º 52/2019, de 31 de julho, instituiu um novo regime unificado de exercício de funções pelos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos (artigo 1.º), tendo revogado os regimes anteriores (artigo 24.º), constantes, respetivamente, da Lei n.º 4/83, de 2 de abril (controlo público da riqueza), e da Lei n.º 64/93, de 26 de agosto (incompatibilidades e impedimentos).

No que respeita aos deveres declarativos a que os titulares de cargos políticos et al. se encontram adstritos, foram várias e relevantes as novidades introduzidas pela Lei n.º 52/2019, delas se destacando a reunião das anteriores declarações de património, rendimentos e cargos sociais (Lei n.º 4/83) e de inexistência de incompatibilidades ou impedimentos (Lei n.º 64/93) numa declaração única de rendimentos, património, interesses, incompatibilidades e impedimentos (artigo 13.º). Esta declaração única já não deverá ser apresentada no Tribunal Constitucional ou na Procuradoria-Geral da República, conforme os casos, mas sim, e por via eletrónica, junto da Entidade para a Transparência (artigo 13.º, n.º 1, em conjugação com o disposto no artigo 20.º e na Lei Orgânica n.º 4/2019, de 13 de setembro). A esta entidade cabe, inter alia, a análise e fiscalização das declarações (artigo 20.º).

A Lei Orgânica n.º 4/2019, além de ter criado a Entidade para a Transparência, procedeu ainda à nona alteração à Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC). Visou-se adaptar este diploma ao regime instituído pela Lei n.º 52/2019 e, sobretudo, às novas competências da Entidade para a Transparência.

3. Todavia, enquanto a Entidade para a Transparência não tiver sido instalada e não estiver em funcionamento a plataforma eletrónica para a entrega da declaração única, esta deverá ser entregue, em papel, no Tribunal Constitucional (artigo 25.º, n.º 1, da Lei n.º 52/2019, bem como artigo 5.º, n.ºs 1 e 2, da Lei Orgânica n.º 4/2019).

Coerentemente, o n.º 1 do artigo 5.º da Lei Orgânica n.º 4/2019 determina ainda que, até à instalação da Entidade para a Transparência, as declarações únicas são «escrutinadas nos termos do regime anterior».

Conforme se decidiu, inter alia, no Acórdão n.º 419/2020, a aplicação do regime anterior apenas se justifica relativamente aos elementos institucionais – em que se preveja a intervenção da Entidade para a Transparência – e procedimentais – associados à plataforma informática – do regime contido na Lei n.º 52/2019. É o caso do processo contemplado no artigo 109.º, n.º 2, da LTC, na redação que lhe foi dada pela Lei Orgânica n.º 1/2018, de 19 de abril, tendente à determinação, num caso concreto, do dever de apresentação da declaração, que a matéria dos autos convoca.

4. Da instrução do processo, e com interesse direto para a decisão da causa, ressaltam, no essencial, os seguintes factos:

a) A A. é uma sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, criada através do Decreto-Lei n.º 209/2000, de 2 de setembro, tendo o respetivo capital social sido sempre, direta ou indiretamente, detido pela B., SGPS, SA, a qual, por sua vez, foi sempre integralmente detida pelo Estado, enquanto acionista único;

b) A estrutura de governação societária da A. não compreende uma comissão executiva ou um administrador-delegado;

c) Os dois administradores não executivos, relativamente aos quais a dúvida acima enunciada respeitaria em concreto, foram identificados como sendo C. e D., que cessaram funções a 30 de abril de 2022, mas deram a sua anuência ao pedido de esclarecimento de dúvidas apresentado, em nome da A., em 3 de maio de 2022;

d) Os dois administradores C. e D. apresentaram, neste Tribunal, a respetivas declarações de rendimentos, património e cargos sociais em 24 de outubro de 2019 e 14 de novembro de 2019, respetivamente, relativas ao início de funções, bem como as declarações relativas à cessação de funções em 30 de abril de 2022;

e) Tanto quanto resulta dos autos, não foram ainda designados novos administradores com funções não executivas para integrarem o Conselho de Administração da A..

5. Tendo sido concedida vista ao Ministério Público, o Senhor Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se no sentido de que «(…) o cargo de “gestor público”, com a função “vogal não executivo”, do conselho de administração da A., SA, não é de subsumir no termo legal “gestores públicos”, com a menção “que exerçam funções não executivas”, constante de previsão da alínea a), n.º 1, do artigo 3.º (Altos cargos públicos), da Lei n.º 52/2019, de 13 de julho, e, portanto, os respetivos titulares não estão vinculados, a esse título, às obrigações declarativas estabelecidas no diploma legal em causa (…)».

6. Ainda antes de analisarmos a matéria concretamente em apreço nos autos, cabe recordar, a título prévio, que o objeto ou cerne deste meio processual é a existência de dúvida sobre «a existência, no caso, do dever de declaração», dúvida esta a dissipar mediante decisão do Tribunal Constitucional, em sessão plenária, nos termos do artigo 109.º, n.º 2, da LTC, na redação anterior à Lei Orgânica n.º 4/2019.

Trata-se de um meio processual afim da ação de simples apreciação, o que justifica, aliás, como também é próprio de qualquer intervenção jurisdicional de simples apreciação, que a dúvida a dilucidar seja pertinente, especialmente relevante ou qualificada, porque à atividade judiciária não compete, por via de regra e como é consabido, uma intervenção com escopo limitado a declarar o Direito.

Não se segue daqui, porém, que o desencadeamento deste meio processual tenha exclusivamente em vista a tutela ou o interesse individual dos declarantes ou potenciais declarantes, o que facilmente se comprova, desde logo, através da aferição da pertinência da dúvida suscitada, a apreciar não apenas perante as particularidades do caso concreto, mas também – senão, sobretudo – em face do interesse objetivo ou público na prolação de uma decisão judicial que contribua para a segurança na aplicação da lei, num domínio onde confluem relevantes interesses públicos associados à transparência e probidade no exercício de funções públicas, por um lado, e a correspondente restrição de direitos fundamentais, com destaque para a compressão da reserva da vida privada, por outro.

Assim sendo, nenhum cabimento teria a invocação in casu de uma eventual inutilidade superveniente da lide, em virtude da apresentação pelos indivíduos em causa da declaração relativa ao termo de funções. É que, a nenhum título, a lide se torna, por isso, inútil: (i) preserva utilidade quanto a esses indivíduos – que teriam direito a ver destruídas e subtraídas ao escrutínio público as respetivas declarações, do mesmo passo que ficariam isentos do dever de entrega da declaração a que se refere o artigo 14.º, n.º 4, da Lei n.º 52/2019 –, (ii) preserva utilidade para a A. – além do mais, porque também ela se acha obrigada a deveres declarativos (cf. artigos 13.º, n.º 5, 14.º, n.º 5, e 18.º, n.º 4, da mesma lei) – e, mais amplamente, (iii) preserva utilidade da perspetiva do interesse público na segurança na...

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