Acórdão nº 385/23 de Tribunal Constitucional (Port, 07 de Junho de 2023

Magistrado ResponsávelCons. Afonso Patrão
Data da Resolução07 de Junho de 2023
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 385/2023

Processo n.º 315/2021

3.ª Secção

Relator: Conselheiro Afonso Patrão

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I. Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do CAAD - Centro de Arbitragem Administrativa, a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigos 70.º, n.º 1, alínea i), 75.º, 75.º-A e 76.º, n.º 1 da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional, adiante designada «LTC»), da decisão proferida pelo Tribunal Arbitral, em 22 de fevereiro de 2021.

Trata-se, no processo a quo, de um pedido de pronúncia arbitral proposto pela ora recorrida A., Lda, com vista à anulação parcial do ato de liquidação de Imposto sobre os Veículos (ISV), invocando que o regime do artigo 11.º do Código do ISV viola o disposto no artigo 110.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE).

O Tribunal Arbitral julgou o pedido procedente, anulando parcialmente o ato de liquidação de ISV, por entender que o regime jurídico do artigo 11.º do Código do ISV não está em conformidade com o direito da União Europeia, designadamente com o disposto no artigo 110.º do TFUE.

2. Perante tal decisão, a recorrente apresentou requerimento de interposição de recurso, ao abrigo da alínea i) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, no qual delimitou o objeto que pretende ver apreciado da seguinte forma:

«(…), tendo a liquidação sido efetuada por força da aplicação dos artigos 7.º e 11.º do CISV, e tendo o tribunal a quo invocado a sua desaplicação com fundamento em norma do TFUE, pretende-se com o presente recurso ver apreciada a eventual contrariedade destes artigos com o artigo 110.º do TFUE.

(…)»

3. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal, o relator originário notificou as partes para, querendo, alegarem, advertindo-as de que: «a) O objeto material deverá restringir-se à norma do artigo 11.º do Código do ISV, por ter sido essa a única cuja aplicação foi recusada pela decisão recorrida; b) Poderá não se conhecer do recurso por, atenta a especificidade do direito da União Europeia, nomeadamente o respetivo caracter supranacional e unitário constitucionalmente reconhecido (artigos 7.º, n.º 6, e 8.º, n.ºs 3 e 4, ambos da Constituição) – e de que são corolários o primado do direito da União Europeia, seja originário ou derivado, e, nem assim, o correspondente meio próprio de tutela consistente no reenvio prejudicial -, eventualmente se vir a considerar que: i) os tratados correspondente ao direito originário não deverem ser considerados “convenções internacionais” para efeitos do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea i), da LTC; e/ou ii) que a incompatibilidade entre uma norma legal e uma norma de direito originário da União Europeia não constituir uma “questão jurídico-internacional” para efeitos do disposto no artigo 71.º, n.º 2, da LTC.»

4. A recorrente apresentou as suas alegações, que concluiu da seguinte forma:

« III – Das conclusões

Da admissibilidade do recurso

A. Nos termos do n.º 1 do artigo 25.º (Fundamentos do recurso da decisão arbitral) do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), o recurso para o Tribunal Constitucional deve fundamentar-se exclusivamente em duas situações, a de recusa da decisão do tribunal arbitral em a aplicar norma que reputa como inconstitucional ou na aplicação, pelo mesmo tribunal, de norma cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada no âmbito do processo.

B. No caso vertente, embora o tribunal arbitral não tenha expressamente declarado a inconstitucionalidade da norma que desaplicou, no caso, o artigo 11.º do Código do imposto sobre os Veículos na redação que lhe foi dada pela Lei do Orçamento para 2017 (Lei n.º 42/2016, de 28.12.2016), veio afastar a aplicação desta norma, constante de ato legislativo, com fundamento na sua ilegalidade, invocando, para o efeito, a sua violação com o artigo 110.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE), aplicável por força do n.º 4 do artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).

C. Nas situações em que o tribunal arbitral se escusa a aplicar norma constante de ato legislativo, invocando a desconformidade, ainda que não imediata, de norma interna com o n.º 4 do artigo 8.º da CRP, que consagra a receção pela Constituição do direito da União Europeia, a AT não dispõe de meio recursório que lhe permita reagir de tal decisão, embora, conforme resulta do artigo 70.º, n.º 1, alínea i) da Lei do TC, se encontre prevista a possibilidade de recurso para o TC das decisões dos tribunais que recusem a aplicação de norma constante de ato legislativo com fundamento na sua contrariedade com uma convenção internacional.

D. E a Lei do TC não restringe, nem alude, a que decisões se refere, nem aos tribunais que as proferem, pelo que, constituindo aquela uma lei de valor reforçado, não pode deixar de se entender que esta Lei de Organização, Funcionamento e Processo do TC se trata de lei “formal ou procedimental” nos termos do n.º 3 do artigo 112.º da CRP.

E. E que, decorrendo a força específica da lei de valor reforçado de normas constitucionais, verifica-se uma ofensa inconstitucional, ainda que indireta, da lei ordinária contrária à lei de valor reforçado.

F. Entendimento que é corroborado por esse Alto Tribunal no Acórdão 262/2015 que refere, designadamente, que: (…)Uma vez que a norma extraída da conjugação dos n.ºs 1 e 4 do art. 25.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, emitido pelo Governo, dispõe em matéria de reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República, conclui-se que padece de inconstitucionalidade orgânica já que contraria o disposto no art. 164.º, alínea c) (reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República), não sendo, igualmente, respeitado o art. 166.º, n.º 2 (forma de lei orgânica), da CRP. (…) Ainda assim, sublinha-se que a norma extraída da conjugação dos n.ºs 1 e 4 do art. 25.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que está contida num ato legislativo, contraria a norma prevista no art. 76.º, n.º 1, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo no Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro), consagrada em ato legislativo de valor reforçado que reveste a forma especial de lei orgânica, conforme determinam os arts. 112.º, n.º 3, 166.º, n.º 2, e 164.º, alínea c), da CRP. Integrando a norma do art. 76.º, n.º 1, da LTC, um tal ato legislativo de valor reforçado, esta apenas poderia ser modificada ou substituída por um outro ato legislativo que revestisse a mesma forma de lei orgânica, o que não aconteceu. Pelo que a norma do RJAT que se aprecia sempre seria ilegal, por violação de lei de valor reforçado.

G. Não se pode aceitar que o n.º 1 do artigo 25.º do RJAT, violando uma lei de valor reforçado, aplique um regime restritivo em matéria de recurso que resulta claramente incompatível com o regime que se encontra previsto na LTC para o Tribunal Constitucional, pugnando-se, consequentemente, pela admissibilidade de recurso ao abrigo da alínea i) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.

H. Afirmando o Prof. Dr. Luís de Menezes Leitão, em comentário ao Acórdão citado que:

salienta-se, no entanto, que esta norma apenas corresponde às alíneas a) e b) do n.º 1 do art. 70.º da LTC, não admitindo assim o RJAT o recurso com base nas restantes alíneas desse artigo. Como se tornou claro que o RJAT não pode alterar os pressupostos do recurso para o Tribunal Constitucional, terá que se considerar admissível o recurso também com base nestas alíneas, sob pena de inconstitucionalidade (2). Desta vez o Tribunal Constitucional não se pronunciou sobre esta questão, mas a resposta não poderá deixar de ser a mesma.”, urgindo, pois, compatibilizar as normas e os meios recursivos previstos no RJAT, desde já, no concernente à possibilidade de recorrer ao abrigo da alínea i) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.

I. O facto de estar em causa um regime de arbitragem, ao qual a AT se vinculou, não se pode defender que se está perante um tribunal de exceção que não permite os mesmos meios de defesa admitidos no âmbito dos tribunais judiciais estatais, porquanto, os princípios da simplificação e informalidade processuais inerentes ao processo arbitral, consagrados no artigo 29.º, n.º 2, do RJAT, não podem colidir com os direitos consagrados na Constituição, designadamente com o direito de defesa, o direito à tutela jurisdicional efetiva.

J. O recurso à arbitragem tributária por parte do Requerente para impugnação da liquidação de um imposto, coloca a administração fiscal, ora Recorrente, numa situação em que vê coartado o seu direito de reação perante a prolação de uma decisão arbitral desfavorável, atendendo aos limitados/parcos meios de recurso e, concretamente, quanto ao recurso de decisão que desaplica norma nacional com fundamento em violação de princípio de direito da União Europeia.

K. O RJAT prevê tão somente três tipos de reações recursórias, sendo eles o recurso para o Tribunal Constitucional, limitado às alíneas a) e b), do n.º 1, do artigo 70.º da LTC, o recurso para uniformização de jurisprudência e a impugnação arbitral, com base nas nulidades elencadas no artigo 28.º, n.º 1 do RJAT, não existindo o clássico recurso de facto e de direito, em princípio a interpor para o Tribunal Central Administrativo.

L. Aderindo à posição do Requerente de pronúncia arbitral, a decisão arbitral pugnou pela violação de um princípio/norma do TFUE, e ao prever, o RJAT, que o recurso para o Tribunal Constitucional só pode ter como fundamento as alíneas a) e b) do artigo 70.º da Lei do TC, vingando tal interpretação, verifica-se uma violação do princípio do livre acesso aos tribunais.

M. Atento o artigo 20.º da CRP (o princípio da tutela jurisdicional efetiva), conjugado com o artigo 209.º, n.º 2, conclui-se que não resulta...

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