Acórdão nº 1819/21.4T9STB.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 25 de Maio de 2023

Magistrado ResponsávelMOREIRA DAS NEVES
Data da Resolução25 de Maio de 2023
EmissorTribunal da Relação de Évora

I – Relatório 1. No 2.º Juízo (1) Local Criminal de …, do Tribunal Judicial da comarca de …, procedeu-se a julgamento em processo comum, com tribunal singular, de AA, nascido a …1965, com os demais sinais dos autos, a quem a acusação imputava a autoria, na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto no artigo 152.º, § 1.º, al. b), § 2.º, al. a), § 4.º e § 6.º do Código Penal (CP)

BB, ofendida, constituída assistente, formulou pedido civil (PIC), peticionando a condenação do arguido/demandado no pagamento de uma indemnização de 2 500€, a título de danos não patrimoniais sofridos, decorrentes da conduta perpetrada daquele sobre a sua pessoa

A final o tribunal proferiu sentença na qual condenou o arguido como autor de um crime de violência doméstica agravado, previsto no artigo 152.º, § 1.º, al. b) e c), § 2.º, al. a) e § 4 CP, na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por 2 anos e 6 meses, sujeitando-o a um regime de prova, assente num plano de reinserção social que integre as vertentes da inserção socioprofissional e de sujeição a um acompanhamento especializado ao nível da problemática da violência doméstica; e na condição de pagar a indemnização fixada à ofendida, no prazo de 2 anos; mais o condenando na pena acessória de proibição de contactos com a ofendida durante o período de 2 anos (com exceção dos contatos estritamente necessários aos assuntos do filho comum)

Mais o condenando no pagamento à assistente/demandante civil de uma indemnização no valor de 1 700€, a título de danos não patrimoniais causados, acrescida esta de juros moratórios «vencidos e vincendos, calculados desde a data da notificação do pedido e até efetivo e integral pagamento»

Inconformado com a decisão recorreu o arguido, rematando a motivação do recurso com as seguintes conclusões: «1. O arguido foi julgado, vindo a ser condenado pelo tribunal ora recorrido pela prática em autoria material e sob a forma consumada, de 1 crime de violência doméstica, p. e p. nos art.ºs 152.º, ns.º 1, als. b) e c) e 2, al. a), do CP

  1. Porém, entende-se que, tendo em conta os factos dados como provados, o Tribunal deveria ter concluído pela ausência da verificação dos elementos do tipo do crime de violência doméstica

  2. De facto, entende a Jurisprudência que “a conduta típica do crime de violência doméstica inclui, para além da agressão física (mais ou menos violenta, reiterada ou não), a agressão verbal, a agressão emocional (p. ex., coagindo a vítima a praticar atos contra a sua vontade), a agressão sexual, a agressão económica (p. ex., impedindo-a de gerir os seus proventos) e a agressão às liberdades (de decisão, de ação, de movimentação, etc.), as quais, analisadas no contexto específico em que são produzidas e face ao tipo de relacionamento concreto estabelecido entre o agressor e a vítima, indiciam uma situação de maus tratos, ou seja, um tratamento cruel, degradante ou desumano da vítima.” 4. Ora, a conduta do arguido, consubstanciada nos factos dados como provados, embora penalmente relevante, não representa uma situação de maus tratos da qual resulte, ou seja suscetível de resultar, sérios riscos para a integridade física e psíquica da vítima, que em nenhum dos casos teve necessidade de recorrer a assistência médica ou hospitalar

  3. Aliás, os dois episódios ocorridos em dois momentos, mediados por cerca de dois anos de diferença entre si, não transcendem a proteção oferecida pelos crimes de ofensas à integridade física simples e de injúrias (sem prejuízo das necessárias condições objetivas de procedibilidade)

  4. Face à relativa baixa gravidade da conduta do recorrente e grande dispersão temporal, não resulta que tivesse sido intenção do arguido maltratar física e psicologicamente assistente, causando-lhe medo e inquietação e lesando-a na sua dignidade pessoal e enquanto mulher

    Deste modo, 7. Verifica-se, manifestamente erro na aplicação do direito: o arguido foi condenado por crime de violência doméstica quando dos factos provados resultou não se mostrarem preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do tipo

  5. De facto, para que se possa considerar que existe crime de violência doméstica, para além de se verificar esse preenchimento, deve ficar demonstrado o ascendente físico ou psicológico do agressor sobre aquele ou aquela que, não é um mero ofendido, mas uma verdadeira vítima

  6. Assim, não são todas as ofensas corporais entre cônjuges que ali cabem, mas só aquelas que se revistam de uma certa gravidade, só aquelas que, fundamentalmente, traduzam crueldade, ou insensibilidade, ou até vingança desnecessária, da parte do agente e que, relativamente à vítima, se traduzam em sofrimento e humilhação

  7. Importa que a agressão em sentido lato constitua uma situação de "maus tratos". E estes só se verificam quando a ação do agente concretiza atos violentos que, pela sua imagem global e pela gravidade da situação concreta são tipificados como crime pela sua perigosidade típica para a saúde e bem-estar físico e psíquico da vítima

  8. Para que o crime se verifique, é essencial que fique demonstrado que a conduta ilícita “atingiu o âmago da dignidade da pessoa ou o livre desenvolvimento da sua personalidade”, de molde a poder concluir-se que, com tal atuação, o agressor tratou a vítima como mera “coisa” ou “objeto” e não como sua igual, como pessoa livre, titular de direitos que está obrigado a respeitar”, o que no caso não se verificou

  9. Assim, não resulta do elenco dos factos provados uma atuação, por banda do arguido, que houvesse causado lesões graves, intoleráveis ou pesadas na assistente, ou que revelem desprezo e desconsideração pela ex-companheira

  10. Do exposto se conclui que o Tribunal a quo, na avaliação da prova, apesar do esforço na fundamentação, errou na qualificação jurídica dos factos ao condenar o arguido pelo crime de violência doméstica, donde, inexistindo os elementos objetivo e subjetivo do crime, o arguido terá de ser absolvido da prática deste crime, com todas as consequências legais daí advenientes, o que ora se requer

    Por cautela de patrocínio 14. Se a posição assumida pelo recorrente não tiver acolhimento por V. Exas., sempre se dirá que a condenação sofrida pelo arguido é excessiva, atento o disposto nos art.ºs 40.º e 70º do CP

  11. O Douto Acórdão recorrido não sopesou, como deveria, as condições pessoais do arguido, vertidas no Relatório Social, mormente, as atinentes aos motivos que conduziram aos episódios a que se reportam os autos, ou seja, o consumo, por banda do casal, de produtos estupefacientes e a atual abstinência do recorrente

  12. Assim, e em abstrato, aduz-se que há que atender ao princípio de que as penas devem ter uma função ressocializadora. 17. Aliás, a aplicação de penas, conforme dispõe o art.º 40º do CP, visa não só a proteção de bens jurídicos mas também a reintegração do agente na sociedade

  13. Donde, a manter-se qualquer condenação, esta deverá ser reduzida e substituída por outra que cumpra as finalidades da punição

  14. O que se não verificou em primeira instância, violando, deste modo, a teoria do fim das penas, pilar do nosso direito penal, na vertente da ressocialização

  15. De facto, o Tribunal a quo não só aplicou uma pena de prisão pesada ao arguido como sujeitou a sua suspensão ao pagamento da quantia de 1750,00 € à assistente, bem sabendo que o recorrente não tem condições económicas e financeiras de a pagar

  16. Ora, atenta a prova produzida quanto às condições sociais do arguido, tal condição é manifestamente impossível de cumprir

  17. Nos termos do n.º 2 do art.º 51º do CP, os deveres impostos como condição para a suspensão da pena “… não podem, em caso algum, representar para o condenado, obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir”

  18. O arguido encontra-se desempregado, com 57 anos de idade, sem formação que lhe permita, no atual mercado de trabalho, conseguir emprego

  19. E também é certo que o arguido não tem condições para obter qualquer empréstimo junto de qualquer instituição financeira que lhe permita cumprir a condição

  20. E, se as condições de vida do arguido se alterarem a assistente sempre poderá executar o património do recorrente! 26. Assim, a manterem-se os termos da condição imposta, mostra-se violado o direito fundamental da igualdade perante a Lei, consignado no art.º 13º da CRP, segundo o qual ninguém pode ser prejudicado em razão da sua situação económica

  21. Ora, à aplicação desta condição, subjaz o preconceito de que quem tiver capacidade económica vê a execução da pena de prisão suspensa e, quem a não tiver, cumpre pena de prisão efetiva

  22. A aplicar-se o art.º 51º do CPP no sentido em que se pode aplicar condição para a suspensão da pena absolutamente impossível de cumprir, tal entendimento é materialmente inconstitucional, por violação do artigo 2º, 13º e 18º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidade que expressamente se argui

  23. A manter-se a condição da suspensão da pena de prisão, e não foi isso que o Tribunal a quo pretendeu, o arguido cumprirá efetivamente a pena em que foi condenado 30. Donde, se mostra violado, também, o disposto no art.º 51º do CPP

  24. Afastada que fosse a violação dos citados normativos, e afastando-se a aplicação da condição para a suspensão da pena de prisão, o Douto Tribunal decidir-se-ia como pugnado, o que ora se requer

    Por fim, 32. Quanto à reparação arbitrada a favor da vítima, e caso se não entenda pela absolvição do recorrente, o montante arbitrado é claramente desproporcional, atentos os critérios definidos na Lei Civil

  25. O Douto Tribunal desconsiderou as circunstâncias de vida do arguido, violando o princípio da equidade, bem sabendo, porquanto resultou provado, que o arguido é pobre e vive com ajuda de familiares próximos

  26. Não resulta de qualquer elemento ou prova produzida nos autos que a assistente tenha ficado com sequelas permanentes, quer seja a nível físico quer seja a nível psicológico 35. Assim, e atentos os critérios consignados no art.º 496º do CC, que no caso...

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