Acórdão nº 1802/20.7GBABF.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 09 de Maio de 2023
Magistrado Responsável | MARIA CLARA FIGUEIREDO |
Data da Resolução | 09 de Maio de 2023 |
Emissor | Tribunal da Relação de Évora |
Acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: I - Relatório
Nos presentes autos de processo comum singular que correm termos no Juízo Local Criminal de …- J…, do Tribunal Judicial da Comarca de …, com o n.º 1802/20.7GBABF.E1, foi o arguido AA, responsável de área comercial, filho de BB e de CC, divorciado, nascido em …1972, natural de …, domicílio: Rua …, …, condenado de seguinte forma: - Pela prática de um crime de perseguição previsto e punido no artigo 154.º-A, n.º 1 do Código Penal, na pena de p. e p. pelo artigo 154.º-A, n.º 1 do Código Penal, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa
- Pela prática de um crime de crime de gravações e fotografias ilícitas, p. e p. pelos artigos 199º n.ºs 1 e 2, alínea b) e 197.º alínea b) do Código Penal, na pena de 105 (cento e cinco) dias de multa
- Em cúmulo jurídico (1), das penas parcelares, foi condenado na pena única de 160 (cento e sessenta) dias de multa, à razão diária de 7,00 € (sete euros), perfazendo a quantia de 1 120,00 € (mil, cento e vinte euros)
* Inconformado com tal decisão, veio o arguido interpor recurso da mesma, tendo apresentado, após a motivação, as conclusões que passamos a transcrever: “1. O arguido AA foi condenado pela prática, em autoria material, de um crime de perseguição, p. e p. pelo artigo 154.º- A, n.º 1 do Código Penal na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa
-
E pela prática, em autoria material, de um crime de gravações e fotografias ilícitas, p. e p. pelos artigos 199.º, n.º 1 e 2, alínea b) e 197.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal, na pena de 105 (cento e cinco) dias de multa
-
Perfazendo, em acumulação material, uma pena unitária de 160 (cento e sessenta dias) de multa à razão diária de € 7,00 (sete euros), totalizando a quantia de € 1.120,00 (mil cento e vinte euros)
-
Consideramos que andou mal o Tribunal a quo quando na leitura da súmula sentença em crise manifestou que o preenchimento dos elementos objetivos no crime de perseguição se encontrava “muito na fronteira”
-
Tal viola o preceito ínsito no artigo 32.º, n.º 1, 2.ª parte da Constituição da República Portuguesa, porquanto existe uma orientação vinculativa para o julgador, ou seja, o princípio insofismável de in dubio pro reo
-
Ao considerar que o preenchimento dos elementos objetivos estavam na fronteira deveria ter, em nossa opinião, absolvido o arguido do crime de perseguição, uma vez que não está em crise a qualificação jurídica, nem a fundamentação de direito
-
A dinâmica da relação entre Arguido e Assistente não foi devidamente valorada, uma vez que não atendeu também à conduta da Assistente que em muito contribuiu para a atuação do Arguido, nomeadamente quanto ao término de uma relação análoga à dos cônjuges por carta manuscrita, sem que tenha havido qualquer explicação para o sucedido
-
Considerando, ainda, o Arguido que é credor de montantes advindos de prestação de serviços no estabelecimento comercial da Assistente
-
Adicionalmente, a conduta do Arguido não preencheu diversos elementos objetivos, mormente o da reiteração, uma vez que na douta sentença é estabelecido um hiato temporal de frequência de visitas entre 19 a 53 dias, o que permite considerar que no limite mais baixo poderemos enquadrar a conduta do arguido como apenas de frustração e desânimo, sem que isso reflita qualquer comportamento desviante
-
Ademais, o Arguido também procurou reaver os montantes que lhe eram devidos, exercendo, para tal, alguma pressão, tal qual fazem as empresas de recuperação de crédito, sem que para isso incorram em ilícitos criminais
-
No que respeita à adequação do ato, o mesmo não é apto a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, porquanto o Arguido limitou-se a deslocar-se ao estabelecimento comercial explorado pela Assistente, dirigindo-lhe palavras corteses ou deixando-lhe flores, nunca tendo ameaçado a mesma, demonstrado atos de violência ou telefonado insistentemente
-
E deslocou-se lá até ao dia em que a Assistente contactou/contratou um “amigo” para a ameaçar o Arguido, data em que este deixou de se deslocar lá
-
Tal facto demonstra não só que o principal problema existente entre os dois era de índole financeira, tendo a Assistente recorrido à ameaça para afastar o Arguido
-
Ao invés de recorrer às autoridades policiais e/ou judicias como seria expetável
-
Não foi dado como provado que a Assistente tenha alterado o seu modo de vida, tenha padecido de alguma enfermidade, tenha deixado de dormir, de frequentar espaços públicos, de conduzir sozinha, isto é, que tenha exibido comportamentos condizentes com alguém que se sentia como vítima
-
Se é verdade que o crime de perseguição é abstrato, não é menos verdade que este tem de ser analisado e interpretado casuisticamente, tendo em consideração, neste caso específico, a dinâmica da relação e o seu término
-
Além de que deverá ter em consideração a emoção humana na sua vertente mais pura, a de que há sentimentos que demoram mais tempo a ser compreendidos, sem que tal configure qualquer conduta ilícita
-
No que concerne ao crime de gravações e fotografias ilícitas, mais concretamente, aos seus números 1 e 2, alínea b, o Arguido é a considerar que não se encontra preenchido o elemento objetivo da “contra vontade”
-
Porquanto a norma não prevê qualquer presunção de consentimento de utilização de fotografia em áreas não comerciais
-
A interpretação da norma é feita com recurso ao artigo 79.º do Código Civil que carece, em nossa opinião, não só de uma revisão, como de uma interpretação atualista
-
Sendo que, no caso em crise, a fotografia é lícita
-
O Arguido é a considerar que a sentença a quo não valorou devidamente o contexto do circunstancialismo que conduziu à captação da referida imagem/vídeo
-
Uma vez que a imagem da Assistente em topless foi captada numa praia pública, onde havia a presença de mais pessoas
-
A Assistente não tinha expetativa de privacidade quando circulou em topless
-
A Assistente permitiu que o Arguido tirasse a referida fotografia, tendo permitido também que o mesmo a mantivesse
-
A Assistente não advertiu o Arguido que este não a podia utilizar
-
A fotografia/vídeo foi captada através de um smartphone que, por sua vez, através de um sistema operativo, realiza um upload para a cloud
-
Adicionalmente, tanto a Assistente como o Arguido mantêm páginas no Facebook onde publicam fotografias, histórias, comentários, entre outros, para uma comunidade de estranhos
-
O Arguido publicou nessa mesma plataforma o vídeo que achava ser uma fotografia, como sempre o fez e como a Assistente sempre o conheceu
-
O Arguido considerou que não precisava do consentimento, porquanto a fotografia tinha sido tirada naquele contexto específico
-
Tendo retirado a fotografia imediatamente após ter sido informado que a Assistente não se queria ver exposta
-
A questão de privacidade no novo paradigma digital é complexa, uma vez que o utilizador abdica ab initio de qualquer privacidade quando expõe a sua vida para terceiros
-
O utilizador das novas tecnologias tem de se saber proteger das novas ferramentas digitais, pois uma vez captada uma fotografia num smartphone esta nunca mais deixa de existir
-
Destarte, a norma incriminadora não prevê o consentimento presumido, porquanto a norma tem de ser interpretada num contexto atual onde, Assistente e Arguido, abdicaram da sua privacidade quando decidiram captar uma fotografia num espaço público em topless, em formato digital e guardado num cloud
-
Pelo exposto o Arguido é a considerar que não se encontram preenchidos os elementos objetivos dos crimes de perseguição e de gravações e fotografias ilícitas.” Termina pedindo a revogação da sentença e a sua absolvição total
* O recurso foi admitido
Na 1.ª instância, o Ministério Público respondeu ao recurso, tendo pugnado pela sua improcedência e pela consequente manutenção da decisão recorrida, face à inexistência de erro de julgamento quanto à matéria de direito ou de qualquer violação do princípio do “in dubio pro reo” invocados pelo recorrente, não tendo apresentado conclusões
* Devidamente notificada da apresentação do recurso, não apresentou a assistente contra-alegações
* A Exmª. Procuradora Geral Adjunta neste Tribunal da Relação emitiu parecer, tendo-se pronunciado no sentido da improcedência do recurso
* Procedeu-se a exame preliminar
Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do CPP, não tendo sido apresentada qualquer resposta
Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir
*** II – Fundamentação
II.I Delimitação do objeto do recurso
Nos termos consignados no artigo 412º nº 1 do CPP e atendendo à Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95 de 19.10.95, publicado no DR I-A de 28/12/95, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente na sua motivação, as quais definem os poderes cognitivos do tribunal ad quem, sem prejuízo de poderem ser apreciadas as questões de conhecimento oficioso
Em obediência a tal preceito legal, a motivação do recurso deverá enunciar especificamente os fundamentos do mesmo e deverá terminar pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, nas quais o recorrente resume as razões do seu pedido, de forma a permitir que o tribunal superior apreenda e conheça das razões da sua discordância em relação à decisão recorrida
No presente recurso e considerando as conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, são as seguintes as questões a apreciar e a decidir:
-
Determinar se ocorreu erro de julgamento da matéria de direito por errada qualificação jurídica dos factos, ou seja, em virtude de os factos provados não integrarem os elementos objetivos e subjetivos dos crimes de perseguição e de fotografias ilícitas pelos quais o arguido foi condenado
-
Da alegada violação do princípio “in dubio pro reo”. * II.II - A decisão recorrida. Realizada a audiência final, foi proferida...
-
Para continuar a ler
PEÇA SUA AVALIAÇÃO