Acórdão nº 233/23 de Tribunal Constitucional (Port, 11 de Maio de 2023

Data11 Maio 2023
Órgãohttp://vlex.com/desc1/2000_01,Tribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 233/2023

Processo n.º 172/2023

2.ª Secção

Relator: Conselheiro José Eduardo Figueiredo Dias

Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional

I. Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, A. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, doravante LTC), do acórdão proferido por aquele tribunal em 19 de janeiro de 2023, que julgou improcedente o recurso interposto pelo recorrente-reclamante, confirmando a decisão do Tribunal da Relação do Porto. Esta última, em sede de recurso da decisão absolutória do Tribunal Judicial da Comarca do Porto (Juízo Central Criminal de Vila do Conde – Juiz 3), condenou o arguido pela prática, em autoria material, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. p. pelo artigo 143.º do Código Penal, na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à razão diária de € 7,00 € (sete euros), perfazendo o montante total de € 1.260,00 (mil duzentos e sessenta euros).

2. Pela Decisão Sumária n.º 140/2023, decidiu-se, nos termos do disposto no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, não conhecer do objeto do recurso interposto, pelos seguintes motivos:

«3. Volvendo ao caso dos autos, cumpre referir, em primeiro lugar, que apesar do grande desenvolvimento do requerimento de interposição de recurso, o recorrente não logra enunciar um qualquer critério normativo que possa constituir objeto idóneo do presente recurso. Na verdade, resulta do teor da referida peça processual que a pretensão da recorrente se traduz na sindicância da decisão jurisdicional concreta, na vertente de interpretação do direito infraconstitucional e de apreciação casuística – dimensões que se encontram, legal e constitucionalmente, subtraídas à esfera de competências do Tribunal Constitucional.

Com efeito, o recorrente contesta a reformulação dos factos, levado a cabo pelo Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, o qual terá, em sua opinião, dado como provado um facto distinto daquele pelo qual o arguido vinha acusado. Todavia, nunca consegue abstrair-se das concretas particularidades do caso, insistindo, à exaustão, na diferença entre um «violento pontapé na zona lateral direita da cabeça» e um «pontapé no corpo (…) entre a cintura e a cabeça, o que lhe causou dores» – a modificação dos factos que o mencionado Tribunal da Relação terá levado a cabo, aquando do julgamento do recurso interposto, da decisão absolutória de primeira instância, e que conduziu à sua condenação na citada pena de multa. Terá sido esta «reformulação dos factos», e apenas ela, que conduziu, na opinião do recorrente, à «violação dos princípios do acusatório e da vinculação temática, princípio nemo tenetur se ipsum accusare e principio in dúbio pro reo, consagrados nos arts. 20º e 32º da CRP, bem como do art. 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.».

Em suma, o recorrente insurge-se contra o particular sentido decisório – invocando elementos do caso sub judice na delimitação do objeto do recurso – e não verdadeiramente contra a conceção normativa que lhe subjaz. Por esta razão, não se revela sequer necessário discutir o estatuto jurídico-constitucional de todos os princípios invocados nem, tão-pouco, a questão das possibilidades de invocar preceitos daquela Convenção Europeia neste Tribunal Constitucional.

4. Em todo o caso, não será despiciendo apreciar melhor as diversas questões de constitucionalidade suscitadas, para reforçar a conclusão já adiantada. Depois do périplo pelas especificidades do julgamento a que foi submetido, o recorrente conclui, no seu recurso para o Tribunal Constitucional, com a formulação das questões de constitucionalidade que pretende ver apreciadas (cfr. artigos 50.º a 53.º):

- «a inconstitucionalidade das normas constantes dos arts. 127º, 358º, 379º, n. 1, b) CPP e 143º do CP, quando interpretadas e aplicadas no sentido de que a modificação do quadro factual constante da acusação, em recurso, no âmbito do crime de ofensa à integridade física simples, consagrado no art. 143º do CP, ao abrigo do art. 127º do CPP, mediante a qual se altera a zona do corpo em que ocorreu a agressão de que vinha acusado para uma não referida na acusação, não é suscetivel de desencadear o mecanismo do art. 358º do CPP (violação do principio da vinculação temática e do acusatório)»;

- «a inconstitucionalidade de que a modificação do quadro factual constante da acusação, em recurso, no âmbito do crime de ofensa à integridade física simples, consagrado no art. 143º do CP, ao abrigo do art. 127º do CPP, passando a tratar-se de uma ofensa pela qual não foi exercido o direito de queixa, não é violadora dos arts. 20º e 32º da CRP»;

- «[a] inconstitucionalidade do art. 358º do CPP, quando interpretado no sentido de que, num crime de ofensa à integridade física simples, não releva a zona do corpo agredida constante da acusação, podendo dar-se como provada uma agressão em zona, nunca objeto de acusação ao Arguido, nunca comunicada ao Arguido, mas que vem a ter por consequência a sua condenação»;

- «a inconstitucionalidade da interpretação e aplicação do art. 127º CPP, no sentido de que o julgador não está sujeito a determinados limites que tem de respeitar, nomeadamente, decorrentes da vinculação temática, que permitem ao Arguido a defesa dos seus direitos.».

São estes os enunciados que, no seu entender, configuram a violação dos princípios constitucionais mencionados.

Ora, a «modificação do quadro factual constante da acusação, em recurso, no âmbito do crime de ofensa à integridade física simples (…) mediante a qual se altera a zona do corpo em que ocorreu a agressão de que vinha acusado para uma não referida na acusação», bem como o facto de a modificação de tal quadro factual implicar que passe a «tratar-se de uma ofensa pela qual não foi exercido o direito de queixa» e, ainda, a irrelevância da «zona do corpo agredida constante da acusação, podendo dar-se como provada uma agressão em zona, nunca objeto de acusação ao Arguido, nunca comunicada ao Arguido», e, por último, a alegada circunstância de o julgador não estar «sujeito a determinados limites que tem de respeitar, nomeadamente, decorrentes da vinculação temática, que permitem ao Arguido a defesa dos seus direitos» apontam para a necessidade de tomar em consideração as circunstâncias do caso concreto, sempre delineadas em torno do concreto crime de ofensa à integridade física simples, não resultando em momento algum do requerimento de interposição do recurso a enunciação de uma norma ou interpretação normativa dotadas das necessárias características de generalidade e abstração.

Pelo contrário, está claramente em causa a sindicância da própria decisão, o que se torna evidente por intermédio de uma análise mais pormenorizada do requerimento de interposição do recurso, onde é repetidamente chamado à colação o violento pontapé desferido pelo ora recorrente não na «zona lateral direita da cabeça», mas antes no corpo do assistente, «entre a cintura e a cabeça, o que lhe causou dores» (cfr. artigos 8.º. 9.º, 14.º, 23.º, 33.º e 35.º); ou a zona específica do corpo da vítima onde terá ocorrido a agressão (cfr. artigos 22.º, 26.º 50.º e 52.º); ou, ainda, à alteração, pelo Tribunal da Relação, do «local» concreto onde ocorreu a agressão (cfr. artigos 21.º, 26.º e 32.º).

5. Sucede que, no âmbito do recurso de constitucionalidade, cabe apenas, como se sabe, o escrutínio da constitucionalidade de normas e não de quaisquer outras operações, designadamente o modo como o tribunal recorrido interpretou ou aplicou o direito infraconstitucional.

Na verdade, e como é sabido, o sistema português de fiscalização da constitucionalidade confere ao Tribunal Constitucional competência para exercer um controlo de constitucionalidade de natureza estritamente normativa – que exclui a apreciação da constitucionalidade de decisões, incluindo as decisões administrativas e judiciais – sob pena de inadmissibilidade. Como se afirma no Acórdão n.º 526/98 deste Tribunal, «[a]competência para apreciar a constitucionalidade das decisões judiciais, consideradas em si mesmas - que é própria de sistemas que consagram o recurso de amparo - não a detém, entre nós, o Tribunal Constitucional.».

Em suma, o recorrente insurge-se contra o particular sentido decisório e não verdadeiramente contra uma qualquer conceção normativa que lhe subjaza.

A este propósito, pode ler-se, no Acórdão n.º 633/08 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), o seguinte:

«(…) sendo o objeto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade constituído por normas jurídicas, que violem preceitos ou princípios constitucionais, não pode sindicar-se, no recurso de constitucionalidade, a decisão judicial em si própria, mesmo quando esta faça aplicação direta de preceitos ou princípios constitucionais, quer no que importa à correção, no plano do direito infraconstitucional, da interpretação normativa a que a mesma chegou, quer no que tange à forma como o critério normativo previamente determinado foi aplicado às circunstâncias específicas do caso concreto (correção do juízo subsuntivo).

Deste modo, é sempre forçoso que, no âmbito dos recursos interpostos para o Tribunal Constitucional, se questione a (in)constitucionalidade de normas, não sendo, assim, admissíveis os recursos que, ao jeito da Verfassungsbeschwerde alemã ou do recurso de amparo espanhol, sindiquem, sub species constitutionis, a concreta aplicação do direito efetuada pelos demais tribunais, em termos de se assacar ao ato judicial de “aplicação” a violação (direta) dos parâmetros jurídico-constitucionais. Ou seja, não cabe a...

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