Acórdão nº 224/23 de Tribunal Constitucional (Port, 20 de Abril de 2023

Magistrado ResponsávelCons. Afonso Patrão
Data da Resolução20 de Abril de 2023
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 224/2023

Processo n.º 289/2023

3ª Secção

Relator: Conselheiro Afonso Patrão

Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I – Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Coimbra, foi apresentada reclamação por A. do despacho proferido por aquele Tribunal, datado de 28 de fevereiro de 2023, que não admitiu o recurso de constitucionalidade interposto nos presentes autos.

2. O ora reclamante foi condenado, pelo Juízo Central Criminal de Leiria – Juiz 1, na pena de 5 (cinco) anos de prisão, como autor material de um crime de tráfico de produtos estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro.

Inconformado, o arguido (ora reclamante) interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra que, por acórdão datado de 26 de outubro de 2022, negou provimento ao recurso interposto, mantendo o acórdão recorrido.

Sempre inconformado, o arguido apresentou reclamação, em 10 de novembro de 2022, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, arguindo nulidades por omissão de pronúncia, tendo o Tribunal da Relação de Coimbra (TRC) indeferido este requerimento, por acórdão de 11 de janeiro de 2023, improcedendo as questões colocadas pelo arguido/reclamante, por o TRC considerar evidente que o acórdão em reclamação não padecia das invocadas nulidades.

3.1. O reclamante interpôs, então, recurso para o Tribunal Constitucional, em 23 de janeiro de 2023, mediante requerimento formulado nos seguintes termos:

«A., Arguido nos autos à margem referenciados, não se conformando com o douto Acórdão proferido nos autos ali de janeiro de 2023, vem, nos termos do preceituado na alínea b) do número 1 do artigo 70.° e do número 2 do artigo 12.° da Lei n.° 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional, doravante LTC), interpor RECURSO PARA O TRIBUNAL CONSTITUCIONAL (doravante TC)

O que faz nos teimos e com os seguintes fundamentos:

I. Da admissibilidade legal do recurso para o TC e da legitimidade do Recorrentes

O presente recurso para o TC tem por objeto o artigo 21.°, n.° 1, do Decreto-Lei n.° 15/93, de 22 de janeiro quando interpretado no sentido de que a compra de estupefacientes destinados exclusivamente ao consumo consubstancia a prática de um crime de tráfico, aplicado no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11 de janeiro de 2023 que indeferiu o requerimento do ora Recorrente relativo ao acórdão de 26 de outubro de 2022.

Salvo melhor opinião, e com o devido respeito, entendemos que a interpretação dada a esta nonna põe em causa normas constitucionais, nomeadamente os artigos 27.° n.° 1, 28.° e 32.°, n.° 2, da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP).

Impondo-se, por isso, a apreciação da constitucionalidade da interpretação conferida à referida noima no caso concreto.

A inconstitucionalidade da aplicação do direito da forma que foi aplicado, com a interpretação ora em crise dada ao artigo 21.°, foi suscitada durante o processo, nomeadamente na reclamação apresentada ao Tribunal da Relação de Coimbra,

Pelo que, o recurso para o TC é admissível ao abrigo do disposto no artigo 70.°, n.° 1, alínea b) da LTC.

De acordo com o artigo 70.°, n.°s 2 e 5, da LTC, só após a exaustão dos recursos ordinários é admitido o recurso para o Tribunal Constitucional.

É precisamente o caso dos autos, porquanto se verifica a exaustão dos recursos ordinários.

Nos termos do artigo 75.° da LTC, o RecoiTente está em tempo para apresentar o presente recurso.

Estando assim reunidos todos os pressupostos para admissão do recurso para o TC.

II. Do requerimento de interposição de recurso para o TC

O ora Recorrente foi condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.°, n,° 1, do Decreto-Lei n.° 15/93, de 22 de janeiro, e a Tabela Anexa I-C, do mesmo diploma legal.

Tendo a sua condenação em l.a instância sido baseada nas vendas e destino dados aos estupefacientes, não obstante ter sido dado como não provado que este tivesse vendido estupefacientes a terceiros.

Alegada a contradição em sede de Recurso, veio o Tribunal da Relação dar por não escritas as referências a vendas e destinos dados, confirmando a condenação, referindo que "o crime resulta das compras efectuadas. Assim, o destino do produto não vai caracterizar o crime.

Afirmando que o crime de tráfico de estupefacientes se trata de um crime exaurido, que se consuma com um dos primeiros atos, no caso, a compra.

Assim, veio o Recorrente condenado pelo crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo artigo 21.°, n.° 1 do Decreto-Lei n.° 15/93, de 22 de janeiro, e a Tabela Anexa I-C, do mesmo diploma legal, interpretado no sentido de que a mera compra, per si, é ato suficiente para a consumação do crime de tráfico,

Interpretação esta que, conforme já referido na Reclamação apresentada ao Tribunal da Relação de Coimbra, é inconstitucional por violar os princípios constitucionais do direito à liberdade, da presunção de inocência e da subsidiariedade, definidos nos artigos 27.° n.° 1, 28,° e 32.°, n.° 2, da CRP,

Senão vejamos.

O Recorrente é, há largos anos, consumidor de estupefacientes.

O que se confirmou no relatório elaborado pela DGRSP, constante do Acórdão de l.a instância, que refere que "A. revela historial de consumo de estupefacientes, de forma persistente desde o final da adolescência, A situação agrava-se com o respetivo processo de partilhas por morte dopai, tinha o arguido 23 anos, na sequência da herança recebida de cerca de 400.000,00 €, segundo menciona. O arguido identifica o consumo regular de haxixe e, posteriormente, de cocaína em associação à ingestão alcoólica excessiva."

Não se tendo dado como provado o facto de o Requerente ser consumidor devido a nma reiterada omissão de pronuncia quanto a este aspeto, a qual foi repetidamente suscitada

Acrescendo o facto de se tratar de um consumidor, ao facto de não se ter dado como provado que o Recorrente tenha vendido estupefacientes a terceiros.

Tratando-se de um conhecido consumidor, que adquire produto estupefaciente e não o destina à venda a terceiros, só se poderia concluir que o seu destino fosse o consumo.

Aliás, ao dar como não provado que os estupefacientes se destinassem a ser vendidos, é este o único entendimento que o douto Tribunal poderia tomar,

Assim, temos um consumidor que adquire estupefacientes exclusivamente para o seu consumo, condenado por um crime de tráfico de estupefacientes, à revelia da fundamentação mobilizada pelo próprio Tribunal da Relação ao justificar esta condenação.

Vem o Tribunal da Relação de Coimbra doutamente mobilizar o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16-04-2009, disponível em www.pgdl.pt, o qual refere que "A infracção do artigo 21.° do DL 15/93, de 22-01, constitui o que a doutrina tem apelidado de crime "exaurido ", "excutido " ou "de empreendimento ", em que o resultado típico se alcança logo com aqidlo que surge, por regra, como realização inicial do iter criminis, tendo em conta um processo normal de actuação, envolvendo droga que se não destine exclusivamente a consumo [negrito nosso]

Sendo aposição do Supremo Tribunal de Justiça, no sentido de que a aplicação do artigo 21.° do Decreto- Lei 15/93, de 22 de janeiro, se limita aos casos em que o produto estupefaciente não se destine exclusivamente ao consumo, aquela que melhor se coaduna com os princípios constitucionais da liberdade, presunção de inocência e subsidiariedade.

Mais, a condenação de um consumidor como traficante esvazia de sentido a existência de um crime de consumo, previsto e punido pelo artigo 40.° do Decreto-Lei 15/93, de 22 de janeiro, e a própria despenalização do consumo de estupefacientes.

No mesmo sentido já se pronunciou o Tribunal da Relação de Lisboa em Acórdão de 10-03-2022 (Proc.º 41/21, 4PDAMD.L1-9), disponível em www.dgsi.pt o qual, referindo-se ao crime de tráfico de estupefacientes, decide que "pratica o crime quem, sem autorização legal, relativamente aos produtos constantes das tabelas I a IV ( cfr, n.º 4 do art.º 21.º) e fora dos casos previstos no art.º 40.º, isto é, sem ser para consumo pessoal exclusivo, executar qualquer das açôes elencadas no n.º 1".

Continuando o referido aresto no sentido de que "Como refere F. Gama Lobo em ajiotação ao referido tipo legal(12), é o destino específico que o agente dá ou dará à droga que traça o perfil do crime; sendo outro o fim, não há lugar à aplicação deste artigo ".

Sendo a interpretação do artigo 21.° do Decreto-Lei 15/93, de 22 de janeiro no sentido de que este se aplica ao consumidor que adquire produto estupefaciente para consumo a mais prejudicial e inconstitucional por violação dos princípios constitucionais da liberdade, presunção de inocência e subsidiariedade, definido nos artigos 27.° n.° 1, 28.° e 32.° n.° 2, da CRP.

Assim, é notório que a interpretação do artigo supra mencionado é feita ao arrepio de princípios absolutamente essenciais na ordem jurídica constitucional.

Conforme já referido na Reclamação para o Tribunal da Relação de Coimbra.

Limitando-se este douto Tribunal a referir novamente que o crime de tráfico de estupefacientes se trata de um crime exaurido, que se consuma com os primeiros atos e assim justificar a não violação dos referidos preceitos constitucionais,

Ora, salvo o devido respeito, que é muito, não pode o Recorrente conformar-se com tal apreciação, A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça é clara.

Existem diversas decisões em diferentes Relações no mesmo sentido, conforme é exemplo a supra citada decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferida em 2022.

O consumidor que adquire estupefacientes para consumo deve ser punido por um crime de consumo, não havendo lugar à aplicação do crime de tráfico de...

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