Acórdão nº 198/23 de Tribunal Constitucional (Port, 18 de Abril de 2023

Magistrado ResponsávelCons. Mariana Canotilho
Data da Resolução18 de Abril de 2023
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 198/2023

Processo n.º 1095/2020

Plenário

Relatora: Conselheira Mariana Canotilho

Acordam em Plenário do Tribunal Constitucional:

I. Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Centro de Arbitragem Administrativa – Área Tributária (CAAD), em que é recorrente o Ministério Público e recorridos A. e B., foi interposto recurso, ao abrigo da alínea i) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), da decisão arbitral proferida por aquele tribunal, em 19 de novembro de 2020, que julgou totalmente procedentes os pedidos arbitrais formulados, determinando a anulação das liquidações de IRS dos ora recorridos.

2. No que releva para o presente caso, a decisão recorrida assentou, em síntese, nos seguintes factos e fundamentos:

«(...) tais rendimentos de mais-valias, quando auferidos por sujeitos passivos residentes, são sujeitos a englobamento com outros rendimentos auferidos no mesmo ano e sobre a totalidade dos mesmos incidem as taxas gerais previstas no artigo 68.º do Código do IRS.

Diversamente, se esses rendimentos forem auferidos por titulares não residentes em território português, são sujeitos a tributação autónoma, incidente à taxa especial de 28% sobre a totalidade das mais-valias, nos termos do artigo 72.º, n.º 1, alínea a), do mesmo Código, salvo opção expressa pelo englobamento de todos os seus rendimentos.

Como se diz no acórdão arbitral de 16-10-2019, no processo n.º 208/2019-T (replicado no acórdão de 06-06-2020, no processo 846/2019-T):

-“A assinalada desigualdade de tratamento fiscal no que respeita à tributação de mais-valias entre os sujeitos passivos residentes e não residentes foi submetida à apreciação do Tribunal de Justiça da União Europeia, por via de um pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Supremo Tribunal Administrativo (Ac. de 28-09-2006, Proc. 439/06).

- Respondendo à questão colocada, o Tribunal de Justiça, em acórdão de 11-10-2007, proferido no Proc. C-443/06 (Hollmann), declarou que ‘O artigo 56.º CE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional, como a que está em causa no litígio no processo principal, que sujeita as mais-valias resultantes da alienação de um bem imóvel situado num Estado-Membro, no caso vertente em Portugal, quando essa alienação é efectuada por um residente noutro Estado-Membro, a uma carga fiscal superior à que incidiria, em relação a este mesmo tipo de operação, sobre as mais valias realizadas por um residente do Estado onde está situado esse bem imóvel.’

- Na sequência da referida decisão, o Supremo Tribunal Administrativo, em acórdão de 16-01-2008, proferido naquele Processo 439/06, veio igualmente a decidir que ‘O n.º 2 do artigo 43.º do Código do IRS, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 109-B/2001, de 27 de Dezembro, que limita a incidência de imposto a 50% das mais-valias realizadas apenas para residentes em Portugal, viola o disposto no art. 56.º do Tratado que Institui a Comunidade Europeia, ao excluir dessa limitação as mais-valias que tenham sido realizadas por um residente noutro Estado membro da União Europeia’.”

E, diga-se, essa tem sido a orientação que tem sido invariavelmente seguida pelo STA (designadamente nos acórdãos de 22-03-2011- Proc. 01031/10, de 10-10-2012, Proc. 0522/12, de 30-04-2013, Proc. 01374/12, de 18-11-2015, Proc. 0699/15, de 03-02-2016, Proc. 01172/14 e, mais recentemente, de 20-02-2019 – Proc. 0901/11, onde se diz:

- “Por imperativo constitucional as disposições do Tratado que rege a União Europeia prevalecem sobre as normas de direito ordinário nacional, nos termos definidos pelos órgãos de direito da União, desde que respeitem os princípios fundamentais do Estado de direito democrático. Nos termos do art. 8.º, n.º 4, da CRP ‘as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático’-

- Tendo Portugal competência para legislar quanto ao imposto sobre o rendimento, por tal não ser matéria de competência exclusiva da EU, não pode incluir nessa regulamentação normas que, em concreto, sejam violadoras dos Tratados, na interpretação que deles faça, como fez, o Tribunal de Justiça da EU.

- O acto impugnado, que aplicou o referido art. 43.º, n.º 2, do CIRS, incompatível com o referido art. 56.º do Tratado que instituiu a Comunidade Europeia, enferma de vício de violação deste último normativo’.

(...)

Em conclusão, não havendo motivo para alterar o entendimento jurisprudencial invocado, no sentido de que ocorre violação da liberdade fundamental de circulação de capitais do Direito da União Europeia, incompatível com o artigo 56.º do tratado que instituiu a Comunidade Europeia, pelo regime resultante da conjugação do artigo 43.º, n.º 2 e do artigo 72.º do CIRS, quer na sua versão anterior às alterações introduzidas pela Lei n.º 67-A/2007, de 31 de dezembro, quer na sua versão posterior, de que resulta o tratamento diferenciado entre residentes e não residentes, temos de concluir que as liquidações impugnadas enfermam de vício de violação de lei que se consubstancia na sua ilegalidade.

Não subsistindo quaisquer dúvidas quanto à aplicação das normas em causa, conclui-se pela desnecessidade de reenvio prejudicial.»

3. O recorrente foi notificado para apresentar alegações, nos termos do artigo 79.º, n.º 2, da LTC, e para se pronunciar, querendo, sobre o eventual não conhecimento do recurso, por falta de competência do Tribunal Constitucional para apreciar a questão suscitada, em virtude de o direito da União Europeia não configurar uma “convenção internacional”, para efeitos da alínea i) do n.º 1 do artigo 70.º, da LTC. Pronunciou-se, sustentando, em síntese, o seguinte:

a) Questão do âmbito do recurso

1.ª) As previsões legais (pois este remédio processual não está previsto no texto constitucional) agora a considerar, em matéria do recurso por “contrariedade,” são as constantes do artigo 70.º (Decisões de que pode recorrer-se), n.º 1, alínea i), primeira parte, 71.º (Âmbito do recurso), n.º 2, 75.º-A (Interposição do recurso), n.º 4, 79.º-D (Recurso para o plenário), n.º 7, e 80.º (Efeitos da decisão), n.º 5, todos da LOFTC.

2.ª) Quanto à letra da lei, na medida em que fiscalizar a “contrariedade” de uma norma constante de acto legislativo com uma convenção internacional, é realizar um controlo de normas jurídicas, decorrente de um conflito normativo, tal modo de fiscalização integra, em essência, o âmbito do poder jurisdicional tipicamente exercido pelo Tribunal Constitucional.

3.ª) A letra da lei, neste ou nos demais preceitos legais em causa, não consagra qualquer exceção ou restrição a esse específico modo de exercício, pelo Tribunal Constitucional, do poder jurisdicional, ou seja, o controlo de normas jurídicas, decorrente de um conflito normativo.

4.ª) Quanto à unidade da lei, os enunciados das previsões legais em causa, em matéria das decisões positivas recorríveis para o Tribunal Constitucional, constam do mesmo normativo e são literalmente correspondentes (que “recusem a aplicação de norma jurídica, com fundamento…”), para todos os casos, de “inconstitucionalidade”, “ilegalidade” e, finalmente”, de “contrariedade”, salvo a natural mutação de termos.

5.ª) O recurso de fiscalização concreta, com fundamento em “inconstitucionalidade” ou “ilegalidade”, tem por objeto dirimir um conflito de normas, similarmente, o recurso por “contrariedade” terá por objeto o conflito de entre a norma convencional e legal, scl., a questão de julgar se existe ou não, no caso, tal contradição.

6.ª) Quanto à história jurisprudencial, este tipo de recurso por “contrariedade”, teve causa próxima numa clivagem, que dividiu o Tribunal Constitucional, pelas suas antigas 1.ª e 2.ª secções, as quais vinham tirando julgados opostos quanto à questão da eventual antinomia entre a lei interna posterior e normas convencionais anteriores.

7.ª) É assim de presumir que, conhecendo os termos da pretérita clivagem jurisprudencial, com a consagração do tipo de recurso em causa, o legislador tenha querido sufragar a linha jurisprudencial segundo a qual o Tribunal Constitucional era competente para conhecer desse conflito de normas, embora não já como “inconstitucionalidade”, como ditava tal jurisprudência, mas como “contrariedade” (o que tem implicações relevantes, nomeadamente ao processo de “repetição de julgados”).

8.ª) Há que distinguir entre a questão da “contrariedade” e as questões jurídicas constitucionais e internacionais relevantes para o efeito, como sejam a “validade”, “vigência” e “valor hierárquico” da convenção internacional, mas, do ponto de vista do método judiciário, apenas no caso de haver contradição entre a norma convencional e a legal será pertinente conhecer depois de tais questões.

9.ª) Quanto aos trabalhos preparatórios da Lei n.º 85/89, de 7 de setembro, na apresentação do projecto de lei n.º 424/V, não foi mencionado este novo tipo de recurso.

10.ª) No debate, na generalidade, apenas um deputado aludiu à “(...) intervenção do Tribunal Constitucional na melindrosa questão do relacionamento entre a ordem interna e a ordem internacional, entre actos normativos produzidos em Portugal e actos de Direito Internacional que sobre eles devam [de]ter primazia”, sem, todavia, notar especialidade quanto ao tipo de poder jurisdicional ali implicado.

11.ª) Na votação de todos preceitos em causa não foi assinalada qualquer especialidade do recurso por “contrariedade”, muito em particular não foi referido que o respetivo objeto não integrava a decisão sobre o conflito entre a norma convencional e a norma legal.

12.ª) Nestes trabalhos preparatórios...

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