Acórdão nº 201/23 de Tribunal Constitucional (Port, 18 de Abril de 2023

Magistrado ResponsávelCons. Assunção Raimundo
Data da Resolução18 de Abril de 2023
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 201/2023

Processo n.º 759/22

2.ª Secção

Relatora: Conselheira Assunção Raimundo

Acordam, em Conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional

I – Relatório

1. Nos presentes autos vindos do Tribunal da Relação de Coimbra, em que é recorrente A., foi a mesma condenada, em primeira instância, pela prática, em coautoria, de um crime de lenocínio, previsto e punido nos termos do artigo 169.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão efetiva.

Inconformada, a arguida interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra que, por acórdão de 2 de fevereiro de 2022, julgou parcialmente procedente o recurso, condenando a recorrente pela prática, em coautoria, de um crime de lenocínio previsto e punido nos termos do artigo 169.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo e sujeita a regime de prova mediante plano de reinserção social a elaborar pela DGRSP.

Notificada do teor do referido acórdão, veio a recorrente suscitar perante o Tribunal recorrido a sua nulidade, alegando contradição insanável entre fundamentação e decisão.

Por acórdão proferido em 4 de maio de 2022, foi indeferida a nulidade suscitada pela recorrente.

Notificada do teor do referido acórdão, veio o recorrente interpor o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (adiante, Lei do Tribunal Constitucional ou LTC).

Pela Decisão Sumária n.º 41/2023, proferida 20 de janeiro de 2023, foi decidido não tomar conhecimento do objeto do recurso respeitante às questões I, II, III, IV e V, formuladas pela recorrente e decidiu-se, igualmente, não julgar inconstitucional a norma incriminatória de lenocínio simples, prevista no artigo 169.º, n.º 1 do Código Penal, com os seguintes fundamentos:

«(…)

4. Como decorre da leitura conjugada do disposto nos artigos 70.º, n.º 1 e 75.º-A, n.º 1 e 2 da LTC, o recurso de constitucionalidade deve ser interposto, além do mais, através de requerimento de que conste a identificação precisa da decisão recorrida.

Neste caso, no requerimento de interposição do recurso não é indicada, com exatidão, a decisão recorrida, sendo certo que, havendo dois acórdãos prolatados pelo Tribunal da Relação de Coimbra, seria devida essa indicação. Não obstante, e uma vez que a recorrente refere “como fundamento do recurso aponta-se o entendimento sufragado nos doutos acórdãos recorridos, que apreciaram o recurso, a concluir pela não verificação das inconstitucionalidades apontadas (…)”, e uma vez que apenas houve um acórdão a apreciar as inconstitucionalidades invocadas – o acórdão proferido em 02/02/2022 - concluir-se-á que a mesma pretende sindicar o acórdão datado de 2 de fevereiro de 2022, que se considera a decisão recorrida.

5. O recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, tem necessariamente natureza normativa, só podendo incidir sobre a apreciação da constitucionalidade de normas ou interpretações normativas efetivamente aplicadas na decisão recorrida, por não ter sido consagrado, no nosso ordenamento jurídico-constitucional, a figura do «recurso de amparo», que permitiria a reapreciação de decisões judiciais proferidas, para, de forma autónoma, defender direitos fundamentais violados ou ameaçados.

Assim, a abertura da via de recurso para o Tribunal Constitucional pressupõe que a questão, sob apreciação, adquira relevância normativa, por transcender a casuística – o caso concreto submetido a julgamento nas instâncias –, e os seus contornos subsuntivos, de aplicação do direito aos factos apurados. Por outro lado, o caráter instrumental dos recursos de fiscalização concreta de constitucionalidade em relação ao processo-base exige que haja ocorrido efetiva aplicação, na decisão recorrida, da norma ou interpretação normativa cuja constitucionalidade é sindicada, isto é, é imprescindível que esse critério normativo constitua a ratio decidendi ou fundamento jurídico da decisão recorrida, porquanto, só assim, um eventual juízo de inconstitucionalidade poderá determinar a sua reforma (cf. artigo 80.º, n.º 2 da LTC).

Caso a norma sindicada seja lateral à decisão sob análise, o objecto do recurso para o Tribunal Constitucional não estará devidamente enquadrado com a temática processual subjacente, não será apto a interferir com os fundamentos normativos da decisão e, como tal, não terá impacto no desfecho da causa, sendo inútil. À semelhança de tais casos, quando o recurso incida sobre uma interpretação normativa, é necessário que a fonte de Direito que orienta a decisão recorrida seja a sindicada, mas também que o Tribunal “a quo” haja aplicado essa exata interpretação como ratio decidendi. Também aqui, caso se conclua que a norma foi compreendida e aplicada de outra forma, o recurso por inconstitucionalidade é inútil, porque inidóneo para obter qualquer alteração de sentido da decisão proferida no processo-base.

As considerações expendidas supra adquirem relevância no caso sub iudicio, já que o recurso interposto, quanto às questões atinentes à interpretação do artigo 426.º A, n.º 1 do CPP desrespeita frontalmente a natureza e o objecto necessário do sistema de recurso para o Tribunal Constitucional, na vertente que acima abordámos.

A recorrente invoca a inconstitucionalidade da interpretação reportada ao artigo 426.º A, n.º 1 do CPP em duas vertentes: i) quando interpretado no sentido de "tendo sido decretado reenvio do processo para novo julgamento, apenas relativamente a concretas questões delimitadas na douta decisão proferida e por se verificarem os vícios do artigo 410º n.º 2 alíneas b) e c) do CPP, a competência para tal novo julgamento não competirá ao colectivo que havia julgado o processo em primeira instância e poderá ser realizado por colectivo totalmente diverso não obstante não se tratar de juízo de anulação/nulidade nem de reenvio para repetição integral"; ii) quando interpretado no sentido segundo o qual "tendo sido decretado reenvio do processo para novo julgamento, apenas relativamente a concretas questões delimitadas na douta decisão proferida e por se verificarem os vícios do artigo 410º n.º 2 alíneas b) e c) do CPP, não é de conceder possibilidade de pronúncia e eventual sanação dos vícios apontados em tal douta decisão superior ao colectivo que compôs o Tribunal de primeira instância, cabendo a apreciação do rumo a tomar ao novo Tribunal e colectivo diverso".

Contudo, compulsado o teor da decisão recorrida (acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra), verifica-se que a mesma não aplicou a norma com o sentido normativo extraído pela recorrente, já que entendeu que, após o processo ter sido remetido à 1.ª instância, foi dado cumprimento ao acórdão da Relação de 18/12/2019, tendo o julgamento sido efectuado pelo mesmo tribunal que efectuou o anterior julgamento (a mesma entidade orgânica), ainda que com diferente composição. Acrescente-se, ainda, que a decisão de 1.ª instância que procedeu à sanação dos vícios das alíneas b) e c) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, cumprindo o acórdão supra referido, em relação à recorrente, manteve intocada a anterior decisão de 1.ª instância.

Nestes termos e face ao exposto, verifica-se que, caso o Tribunal julgasse a inconstitucionalidade, em abstracto, do artigo 426.º A, n.º 1 do CPP nas duas interpretações normativas enunciadas pela recorrente, ainda assim, tal decisão não teria o condão de alterar a sentença recorrida, sendo inútil para o processo-base, porquanto não houve aplicação pelo tribunal da Relação de Coimbra, como ratio decidendi, das interpretações normativas cuja constitucionalidade é questionada pelo recorrente, nem a aplicação de tal norma teve qualquer reflexo no concreto caso da recorrente, já que a remessa do processo à 1.ª instância, para dar cumprimento ao acórdão da Relação de 18/12/2019, não visava alterar qualquer circunstância, factualidade ou decisão respeitantes à recorrente, tendo, quanto à mesma, mantido os termos da decisão anterior.

Também as interpretações normativas invocadas pela recorrente, respeitantes ao artigo 169.º, enunciadas nos pontos III, IV e V do requerimento de recurso padecem de idêntico problema. A mesma invoca a inconstitucionalidade das interpretações normativas daquele preceito legal, em três dimensões distintas:

i) Quando interpretado no sentido de que “(...) constitui crime de lenocínio a livre prática de relações sexuais, fora da via pública e em reserva da respectiva intimidade, ainda que a troco de dinheiro, sempre e quando a mesma seja levada a cabo entre maiores, de sexos distintos, radicando numa vontade e desejo livres e esclarecidos de ambas as pessoas sem qualquer coacção, violência ou ameaça grave, constrangimento, ardil ou manobra fraudulenta, abuso de autoridade ou aproveitamento de incapacidade psíquica, especial vulnerabilidade da vítima, carência social ou dependência económica";

ii) Quando interpretado no sentido de que “o crime de lenocínio basta-se com a existência de actos de cariz sexual, levados a cabo de forma livre entre maiores e em local livremente escolhido, sem qualquer controlo ou ingerência de terceiros, pelo preço peticionado livremente pela mulher e aceite pelo cliente, traduzindo-se num comportamento instantâneo (...)”;

iii) E, ainda, quando interpretado no sentido de que “Consubstancia crime de lenocínio a mera prática de relações de natureza sexual entre maiores quando inexista qualquer preterição da sua liberdade e autodeterminação sexual bem como instrução, vigilância ou qualquer outra espécie de controlo a exercer por quaisquer terceiros, tendo a mulher domínio pleno da sua actuação, acção e tratamento condigno e condizente com a sua condição humana, ao nível de cordialidade, simpatia, liberdade e autodeterminação sexual, inexistindo...

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