Acórdão nº 5003/19.9T9PTM.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 18 de Abril de 2023

Magistrado ResponsávelMOREIRA DAS NEVES
Data da Resolução18 de Abril de 2023
EmissorTribunal da Relação de Évora

I – Relatório a. No 1.º Juízo (1) Local de …, do Tribunal Judicial da comarca de … foi o presente distribuído como processo comum, da competência do tribunal singular.

A acusação do Ministério Público imputava ao arguido AA, com os demais sinais dos autos, a prática de um crime de especulação, previsto no artigo 35.º, § 1.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de janeiro, ex vi, artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de outubro.

No controlo liminar do processo, efetuado nos termos previstos no artigo 311.º do Código de Processo Penal (CPP), o tribunal considerou que a acusação era manifestamente infundada, por os factos nela imputados ao arguido não constituírem crime, pelo que a rejeitou (artigo 311.º, § 1.º, 2.º, al. a) e § 3.º, al. d) CPP).

  1. Inconformado com essa decisão dela vem o Ministério Público recorrer, finalizando a respetiva motivação com as seguintes conclusões (transcrição): «1.º Vem o presente recurso interposto da, aliás, douta decisão proferida nos autos no dia 21.10.2022, na medida em que foi rejeitada a acusação deduzida pelo Ministério Publico por ser manifestamente infundada, ao abrigo do disposto no art. 311º, nº1, nº 2, al. a) e nº 3, al. d), do C.P.P., uma vez que, no seu entender, os factos descritos nessa acusação não integram, hoje, a prática de qualquer crime; 2.º Discorda-se dessa douta decisão, porque temos para nós que os factos constantes da acusação continuam ainda hoje a integrar a prática de um crime de especulação; 3.º Seguimos aqui as doutas razões aduzidas pelo Ex.mo Senhor Juiz Conselheiro Dr. Maia Costa, constantes do Acórdão por ele proferido em 18.04.2007, disponível in www.dgsi.pt, que aqui se dão por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais; 4.º De facto, o art. 60.º, da Lei nº 6/2006, de 27 de fevereiro, operou apenas a revogação do regime do próprio contrato de arrendamento urbano, onde não se inclui o referido art. 14.º, quer formal, quer teleologicamente; 5.º Por outro lado, é “de rejeitar o argumento de que a norma penal inserida num diploma preambular que aprova uma lei civil siga necessariamente o destino desse diploma civil”; 6.º Por ultimo, a incriminação resultante do referido art. 14.º, que “visa proteger bens jurídicos de natureza vincadamente social e publica” (são hoje muito correntes, especialmente nesta zona do …, as situações ilegais que se mostram descritas na peça acusatória), não se mostra violadora do princípio da intervenção mínima do direito penal.

    7.º Termos em que, decidindo como decidiu, o M.mo Juiz recorrido não fez uma interpretação correta do disposto pelo art. 60º, da Lei nº 2006 de 27 de fevereiro.

    Termos em que deverá dar-se provimento ao presente recurso, revogando-se, consequentemente, a douta decisão ora recorrida, devendo a mesma ser substituída por outra douta decisão que receba a acusação deduzida pelo Ministério Publico, e designe data para realização da audiência de discussão e julgamento.

    Com o que se fará inteira JUSTIÇA!» c) O arguido não respondeu ao recurso.

  2. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ministério Público junto desta instância emitiu entendimento no sentido da procedência do recurso.

  3. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, o arguido nada acrescentou.

    Efetuado exame preliminar e nada obstando ao prosseguimento do recurso foram os autos à conferência.

    Cumpre apreciar e decidir.

    II – Fundamentação 1. Objeto do recurso O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 412.º, § 1.º CPP) (2).

    De acordo com as conclusões do recorrente, verificamos que a única questão aportada ao conhecimento desta instância de recurso é a de saber se a acusação deduzida pelo Ministério Público não é manifestamente infundada.

    1. O despacho recorrido O Mm.o Juiz a quem os autos foram distribuídos para julgamento na 1.º instância proferiu o seguinte despacho liminar (311.º CPP): «I. Da rejeição da acusação pública de fls. 167 a 169 A fls. 167 a 169 o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido AA, melhor id. nos autos, imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de especulação, previsto e punido pelo art. 35.º, n.º 1 do D.L. n.º 28/24, de 20 de janeiro ex vi do art. 14.º do D.L. n.º 321-B/90, de 15 de outubro.

      Na acusação pública são imputados ao arguido os seguintes factos: “1. O arguido na qualidade de possuidor de um apartamento sito no …n.º…, em …, conhecida como antiga …, o qual não se encontra inscrito na AT, nem descrito na Conservatória do Registo Predial, deu o mesmo de arrendamento a BB.

      Arrendamento esse, no valor de 200,00€ mensais e nunca reduzido a escrito e que perdurou de agosto de 2018 a dezembro de 2019, cujo pagamento era efetuado tempestivamente pelo ofendido ao arguido em numerário.

    2. Pagou o ofendido, igualmente no início do contrato o valor de 400,00€, relativamente a caução.

    3. Em dezembro de 2019 em virtude da mudança da fechadura do apartamento e corte de água e luz por parte do arguido, o ofendido deixou de ter acesso ao locado.

    4. Apesar das várias insistências por parte do ofendido, o arguido nunca entregou qualquer recibo relativamente às rendas mensais por si pagas.

    5. Não existem registos na AT de quaisquer recibos de arrendamento emitidos, nem declarados rendimentos prediais referentes aos anos de 2018 e 2019.

    6. O arguido bem sabia que, em consequência da relação contratual arrendatícia que o vinculava ao ofendido, era obrigado a emitir e a entregar-lhe o recibo de renda correspondente aos respetivos montantes pagos por aquele e que, com a sua recusa, apesar das várias solicitações do ofendido, no cumprimento dessa obrigação legal decorrente de relações negociais, o arguido pôs em crise o papel do Estado na regulação da atividade económica, resultado que quis e alcançou.

    7. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, com total conhecimento de que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.” Cumpre apreciar e decidir.

      Estabelecia o art. 14.º do D.L. n.º 321-B/90, de 15 de outubro [que aprovou o Regime de Arrendamento Urbano] que “Os senhorios que recebam rendas superiores às fixadas na lei, recusem recibo de renda ou recebam quantia superior ao mês de caução na celebração do contrato de arrendamento e os inquilinos que recebam qualquer quantia que não lhes seja devida, pela desocupação do local arrendado, quando haja cessado o arrendamento, cometem crime de especulação, punível nos termos da legislação respetiva.” Quando tal normativo disponha que “(…) cometem crime de especulação, punível nos termos da legislação respetiva”, referia-se ao...

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