Acórdão nº 197/23 de Tribunal Constitucional (Port, 18 de Abril de 2023

Magistrado ResponsávelCons. José Eduardo Figueiredo Dias
Data da Resolução18 de Abril de 2023
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 197/2023

Processo n.º 401/2020

Plenário

Relator: Conselheiro José Eduardo Figueiredo Dias

Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional

I. Relatório

1. A Procuradora-Geral da República requereu, ao abrigo da competência que lhe é conferida pela alínea a) do n.º 2 do artigo 281.º da Constituição da República Portuguesa (doravante, CRP) e pela alínea c) do n.º 1 do artigo 19.º do Estatuto do Ministério Público (aprovado pela Lei n.º 68/2019, de 27 de agosto, alterada pela Lei n.º 2/2020, de 31 de março), a apreciação e declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma jurídica legal constante das disposições conjugadas dos n.ºs 4 e 5 do artigo 2.° da Lei n.º 81/2014, de 19 de dezembro, na redação da Lei n.º 32/2016, de 24 de agosto; e, ainda, a apreciação e declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma jurídica regulamentar constante do artigo 15.°, n.º 1, alínea b), do "Regulamento do Regime de Acesso, Atribuição e Gestão do Parque Habitacional do Município de Tavira", aprovado por deliberação de 29 de fevereiro de 2016, da Assembleia Municipal de Tavira.

2. O fundamento do pedido radica na desconformidade «da norma jurídica legal constante das disposições conjugadas dos n.ºs 4 e 5, do artigo 2.° (Âmbito), da Lei n.º 81/2014, de 19 de dezembro, na redação da Lei n.º 32/2016, de 24 de agosto», com «a proibição constitucional de emissão de habilitação legal para editar regulamentos municipais autorizados (ou delegados), modificativos ou integrativos, em matéria reservada à lei parlamentar», o que implicará a sua inconstitucionalidade material, em face dos artigos 111.º, n.º 2 e 112.º, n.º 5, da CRP; e no desrespeito, por parte da «norma jurídica regulamentar, municipal, constante do artigo 15.° (Causas de improcedência liminar da candidatura), n.º 1, alínea b), do RRAAGPH, aprovado por deliberação de 29 de fevereiro de 2016, da Assembleia Municipal de Tavira», dos artigos 2.°, 3.°, n.º 3, 18.°, n.º 2, 65.°, n.º 3, l.a parte, 112.°, n.º 5, e 241.°, todos da CRP, «por consagrar uma condição regulamentar de prévia residência no "concelho de Tavira há, pelo menos, 5 anos"», a qual «tem caráter modificativo, excessivo e restritivo dos pressupostos legais do "direito de acesso à atribuição de habitações em regime de arrendamento apoiado", estabelecidos nos artigos 5.°, n.º 1 e 6.°, n.ºs 1 a 4, da Lei n.º 81/2014, de 19 de dezembro (ulteriormente alterada e republicada pela Lei n.º 32/2016, de 24 de agosto), assumindo assim prerrogativas que são do domínio reservado da lei parlamentar», o que implica a sua inconstitucionalidade material ou orgânica (itálicos no pedido).

Vem ainda peticionada a restrição dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade e de ilegalidade, de modo a que os mesmos se produzam apenas retrospetivamente, a partir da publicação no jornal oficial da "decisão limitativa" a proferir nos autos, e sem eficácia repristinatória (cfr. artigo 282.°, n.º 4, da CRP).

Em termos mais específicos, o pedido de declaração de inconstitucionalidade encontra-se fundamentado nos seguintes termos (transcrição parcial, sem destaques e sem notas de rodapé):

«(…)

I

(Artigo 65.°, n.º 3, da Constituição)

a) Política de renda compatível com o rendimento familiar

1.°

A parte I (Direitos e deveres fundamentais), título III (Direitos e deveres económicos, sociais e culturais), capítulo II (Direitos e deveres sociais), da Constituição, integra, designadamente, o artigo 65.° (Habitação e urbanismo).

2.°

No que agora especialmente releva, importa considerar o n.º 3 deste preceito, o qual dispõe: "O Estado adotará uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria".

3.°

Este enunciado normativo tem como destinatário o "Estado", o qual está assim constitucionalmente adstrito à incumbência (fim ou tarefa) de criar, pôr em prática e manter "uma política tendente a estabelecer", nomeadamente, "um sistema de renda compatível com o rendimento familiar".

b) Idem: reserva constitucional de Estado

4.°

Importa aqui e agora salientar duas notas quanto à competência constitucional, prevista neste artigo 65.°, n.° 3, da Constituição, uma de cariz subjetivo (o destinatário em causa) e outra de cariz objetivo (o tipo de poder em causa).

5.º

Assim, quanto ao destinatário, a contraposição decorrente da epígrafe, "Habitação e urbanismo", e bem assim do confronto da previsão do preceito do n.º 3 com o ulterior preceito do n.º 4, ambos deste artigo 65.°, é instrutiva para os nossos efeitos.

6.º

Com efeito, no logo subsequente n.º 4, para as matérias atinentes à definição das "regras de ocupação, uso e transformação dos solos urbanos", a imposição constitucional tem como destinatário não apenas o "Estado", mas, ainda as "regiões autónomas" e as "autarquias locais".

7.°

Assim, do ponto de vista das valorações e decisões constitucionais de fundo, enquanto o "urbanismo" (hoc sensu) é uma incumbência partilhada entre o Estado, as regiões autónomas e as autarquias locais, já a matéria da "política de renda compatível" é uma incumbência imputada ao Estado.

8.°

Isto, decerto, sem prejuízo das responsabilidades executivas das regiões autónomas e das autarquias locais, até mesmo porque esta "política de renda compatível" será tipicamente uma manifestação do que a melhor doutrina identifica como matéria "carec[endo] de disciplina normativa para a comunidade nacional, embora com execução relegada para os órgãos autárquicos".

9.°

Assim sendo, em conclusão, no plano das valorações e decisões constitucionais de fundo, a "política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar", pela sua relevância existencial, social e económica é de interesse, alcance e relevância nacional, sendo assim objeto de uma reserva constitucional de Estado, sem embargo das responsabilidades executivas das regiões autónomas e das autarquias locais.

10.°

Por outra parte, este preceito, tendo como destinatário declarado o Estado, exprime uma norma programática (ou imposição legiferante), recortada no âmbito de um direito fundamental social e que, ex vi constitutione, é posta a cargo do mesmo.

11.º

A propósito deste preceito constitucional, alude com efeito a melhor doutrina a uma "diretriz programática, de um dever político imposto ao Estado no sentido deste adoptar as providências adequadas à realização - tão desejável - do nobre ideal que é o de todos poderem realmente ter, para si e sua família, uma habitação condigna, com os requisitos enunciados no citado preceito constitucional [artigo 65.°]. Tanto isto assim é que o mesmo artigo, nos seus números seguintes, enuncia as grandes linhas do que o Estado deve fazer para atingir o assinalado objectivo (...) adoptar uma política de rendas compatíveis com o rendimento familiar (...) a este [Estado] cabe a responsabilidade política de planear, adoptar e executar providência[s] tendentes a criar as condições necessárias para todos poderem ter habitação condigna. E tarefa de que têm de se ocupar os órgãos legislativos, governativos, administrativos (...)".

12.°

Sendo uma norma programática, vinculada ao cumprimento da "política de renda compatível", os tempos e modos de materialização da mesma relevam da esfera da liberdade de conformação do legislador, e estão sob reserva do possível, aqui por maioria de razão, em face da particular natureza da realidade social, económica e financeira que lhe está subjacente.

13.°

Em qualquer caso, tal liberdade de conformação está sempre sujeita aos critérios e limites constitucionais gerais do exercício do poder legislativo, nomeadamente aos princípios da universalidade, igualdade e da proporcionalidade (arts. 12.°, 13.°, n.°s 1 e 2, e 18.°, n.º 2, enquanto lídima expressão do Estado de direito democrático, art. 2.°, todos da Constituição).

b) Reserva de lei

14.°

Em consonância com a aludida credencial constitucional, o Estado, pela Assembleia da República, assembleia representativa de todos os cidadãos portugueses, veio a decretar a Lei n.º 81/2014, de 19 de dezembro (Estabelece o novo regime do arrendamento apoiado para habitação e revoga a Lei n.° 21/2009, de 20 de maio, e os Decretos-Leis n.ºs 608/73, de 14 de novembro, e 166/93, de 7 de maio), ulteriormente alterada e republicada pela Lei n.º 32/2016, de 24 de agosto (Primeira alteração à Lei n.° 81/2014, de 19 de dezembro, que «estabelece o novo regime do arrendamento apoiado para habitação e revoga a Lei n.° 21/2009, de 20 de maio, e os Decretos-Leis n.°s 608/73, de 14 de novembro, e 166/93, de 7 de maio»).

15.°

Esse diploma legal tem por objeto estabelecer o regime do arrendamento apoiado para habitação e regular a atribuição de habitações no mesmo (art. 1.°).

16.°

Por conseguinte, a mais da reserva constitucional de Estado, por força do decretamento de tal acto legislativo, passou ainda a vigorar nesta matéria uma reserva de lei, pois "quando uma lei regula uma determinada matéria, ela estabelece, ipso facto uma reserva de lei, pois só uma lei ulterior pode vir a derrogar ou alterar aquela lei (...)".

17.°

Com o consequente congelamento do grau hierárquico, pois "regulada por lei determinada matéria, o grau hierárquico da mesma fica congelado e só uma outra lei poderá incidir sobre o mesmo objecto (cfr. artigo 115.°, n.º 5)".

18.°

Essa reserva de lei implica, na noção da melhor doutrina, "Uma prioridade exclusiva de regulação primária de determinadas matérias previstas na Constituição por parte de atos legislativos, daqui resultando um domínio material necessário de norma legal inovadora e razoavelmente densa, não sendo no mesmo consentidos regulamentos independentes, mas apenas normas administrativas de execução que concretizem ou complementem as normas legais (...)".

19.°

Na...

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