Acórdão nº 113/23 de Tribunal Constitucional (Port, 16 de Março de 2023

Magistrado ResponsávelCons. António José da Ascensão Ramos
Data da Resolução16 de Março de 2023
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 113/2023

Processo n.º 1194/21

2.ª Secção

Relator: Conselheiro António José da Ascensão Ramos

(Conselheira Mariana Canotilho)

*

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I. Relatório

1. O Ministério Público (MP) arguiu a nulidade de todo o processado nos presentes autos, por não ter sido citado no âmbito da ação administrativa proposta por A. “contra o Estado Português, representado pelo Ministério Público e estabelecimento prisional do Porto”. Suscitou desde logo a desaplicação, por vício de inconstitucionalidade, das normas constantes dos artigos 11.º, n.º 1 e 25.º, n.º 4, ambos do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), que pretere a necessidade de citação do MP, por violação do artigo 219.º, n.º 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa.

Tal pretensão foi negada pelo despacho prolatado, em 22 de outubro de 2020, pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto uma vez que, no seu entender, tais normas não padecem de qualquer vício de inconstitucionalidade.

2. Deste despacho o Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal Central Administrativo do Norte que, por decisão, datada de 9 de abril de 29021, negou provimento ao recurso, confirmando a aludida decisão.

3. Interposto recurso de revista desta decisão, pelo Ministério Público, para o Supremo Tribunal Administrativo, a mesma não foi admitida, por acórdão proferido em 21 de outubro de 2021.

4. Notificado deste acórdão veio o Ministério Público interpor recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão proferido pelo TCAN ao abrigo do disposto nos artigos 70.º, n.º 1, alínea b) e 72.º, n.º 2 e 75.º, nº 1, todos da Lei n.º 28/82 de 15.11 (Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, adiante designada por LTC).

5. O TCAR admitiu o recurso, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

6. O recurso foi recebido no Tribunal Constitucional.

6.1. O Ministério Público apresentou alegações, concluindo nos seguintes termos:

1.ª) As opiniões doutrinárias sobre o âmbito da função de representação do Estado pelo Ministério Público, nas ““ações administrativas”, são puras preferências subjetivas, exatamente o mesmo valor da preferência subjetiva correlativa, ou seja, é preferível que seja mantida a situação, pluricentenária, da representação judiciária do Estado pelo Ministério Público, nas “ações administrativas”.

2.ª) Em qualquer caso, essas preferências subjetivas, não têm valor interpretativo das disposições constitucionais (ou legais) em causa e, menos ainda, valor ab-rogativo do estatuto prescrito na lei constitucional: “Ao Ministério Público compete representar o Estado” (art. 219.º, n.º 1).

3.ª) Quando o tema são as pessoas coletivas (públicas ou privadas) a representação orgânica, nomeadamente de cariz judiciário, não se contrapõe a representação legal.

4.ª) Com efeito, a representação das pessoas coletivas (públicas ou privadas) não é natural, é sempre juridicamente organizada pela lei - constitucional ou comum - ou diretamente ou através da habilitação legal para os estatutos ou pacto social disporem sobre a matéria

5.ª) Uma vez que não têm faculdades naturais, por definição as pessoas coletivas carecem de quem possa exprimir a respetiva vontade corporativa na justiça, ou seja, que um seu órgão tenha competência para a representação judiciária da mesma.

6.ª) Tal órgão (agindo através do seu titular) com competência de representação judiciária, sendo o patrocínio judiciário obrigatório, terá de constituir mandatário judicial no processo, nos termos gerais de direito processual.

7.ª) A hipótese legal cujo exame de constitucionalidade está agora em causa é aquela que, primeiramente, consta do n.º 4 do artigo 25.ºdo CPTA2019, onde se prevê que “Quando seja demandado o Estado (…) a citação é dirigida unicamente ao Centro de Competências Jurídicas do Estado (…)” e não já a segunda hipótese legal ali prevista, relativa à citação de vários ministérios.

8.ª) Não há “opção de escolha” do destinatário da citação, nomeadamente no caso das pessoas coletivas, antes o legislador está autovinculado pelo critério que ele próprio estabeleceu nessa matéria, sob pena, se assim não for, de violação do princípio da igualdade de tratamento.

9.ª) Com efeito, o regime geral da citação das pessoas coletivas estabelece que a citação das mesmas é feita, diretamente, «na pessoa dos seus legais representantes», como se exprime a lei (CPC, artigos 25.º, n.ºs 1 a 3, e 223.º, n.º 1, itálico nosso, e 246.º, n.º 1).

10.ª) O Ministério Público é, inequivocamente, o [único] representante judiciário do Estado, nos tribunais estaduais internos, nos termos da competência constitucional estabelecida referido n.º 1 do artigo 219.º, da Constituição, portanto, a citação do Estado enquanto réu deveria ser feita, diretamente na pessoa do magistrado do Ministério Público no tribunal da ação (rectius, da contestação).

11.ª) Ora, por força do novo regime do n.º 4 do artigo 25.º do CPTA2019, que abroga o regime geral referido, o Ministério Público é o único representante judiciário de pessoa coletiva que não é direta e pessoalmente citado para a ação contra esta movida, antes dela terá conhecimento por via da “transmissão”, que é “assegurada” pelo CCJE, em momento em que já ficou irremediavelmente inutilizado parte do prazo para preparar e deduzir a defesa do Estado.

12.ª) Portanto, a norma jurídica constante do n.º 4 do artigo 25.º do CPTA, ao consagrar este regime de “transmissão” da citação nas ações administrativas, compromete o acesso do Ministério Público aos tribunais administrativos, enquanto representante do Estado, bem como as condições para sua defesa efetiva, medida em que inutiliza uma parte do prazo para contestar, tudo o que consubstancia violação do princípio do “processo equitativo”, enquanto “igualdade de posições no processo” com os demais representantes judiciários das pessoas coletivas.

13.ª) A interpretação das disposições constitucionais “em conformidade com as leis” subverte o princípio da hierarquia das fontes do direito, no caso, concretamente, é preterido primado da lei constitucional.

14.ª) As invocadas disposições legais do Estatuto do Ministério Público e do Código de Processo Civil, ao invés de contrariarem a prescrição constitucional “Ao Ministério Público compete representar o Estado”, antes a corroboram.

15.ª) O que essas disposições legais permitem é que, nos casos em que a lei especialmente o permita, citado sempre (direta e pessoalmente) o Ministério Público como representante judiciário do Estado, [um órgão superior do Estado, no caso um órgão governamental, que ficará assim, legal e casuisticamente, investido da competência de representação em juízo] constitua “mandatário próprio”, com o que cessará a intervenção principal do Ministério Público.

16.ª) Este regime pode ser reconciliado (rectius, não é incompatível) com a prescrição constitucional “Ao Ministério Público compete representar o Estado”, pois precisamente pressupõe a (inicial ou constitutiva) representação judiciária e a consequente citação, direta e pessoal, no magistrado do Ministério Público.

17.ª) Caso diferente é o do regime decorrente das disposições conjugadas dos artigos 11.º, n.º 1, e 25.º, n.º 4, que literalmente subvertem o dito regime, pois primeiramente a citação começa por ser feita no CCJE o qual, depois, pode, ou não, segundo uma decisão casuística e livre, transmitir a citação ao Ministério Público, ou seja, segundo tal regime o Ministério Público nem é citado, nem é, necessariamente, o representante judiciário, geral, do Estado.

18.ª) O contencioso das ações relativas a contratos e à responsabilidade civil extracontratual integra o “núcleo essencial” das funções do Ministério Público, à luz do n.º 1 do artigo 219.º da CRP (aliás, para além destas formas de ação, será residual a intervenção principal do Ministério Público na justiça administrativa, como representante do Estado).

19.ª) As disposições conjugadas do n.º 1 do artigo 11.º e do n.º 4 do artigo 25.º do CPTA2019 não consagram um regime legal que retenha o “núcleo de sentido”, em particular no aspeto quantitativo, da competência representativa do Estado constitucionalmente atribuída ao Ministério Público.

20.ª) Na verdade, não criam uma exceção a essa reserva de competência, atribuindo apenas certas e determinadas competências de representação do Estado a outrem que não o Ministério Público, por razões que especialmente o justifiquem.

21.ª) Antes, nas “ações administrativas” movidas contra o Estado passa a ser unicamente citado o CCJE, que fica geralmente investido de um livre arbítrio de escolha do “serviço competente” para ser transmissário da citação, que não terá, necessariamente, de ser o Ministério Público.

22.ª) Assim, este poderá ser desapropriado, ou severamente (privado de intervir num fluxo relevante, quantitativa e qualitativamente, de casos, heteronomamente escolhidos) ou, no limite, até radicalmente (intervindo apenas em casos contados, heteronomamente escolhidos) da sua competência constitucional de representação do Estado, nas ações administrativas em que este último é demandado, não restando assim conteúdo relevante, na justiça administrativa, para o mandado constitucional do artigo 219.º, n.º 1, da Constituição.

23.ª) Resulta dos autos, na verdade, que o Ministério Público no TAF do Porto, em representação do R. Estado português, contestou a ação administrativa que lhe foi movida pelo ora recorrido – embora não conste da certidão em que vem instruído o presente recurso o despacho judicial que, eventualmente, terá precedido essa intervenção principal no processo, mas, em qualquer caso, o despacho saneador de 22 de outubro de 2020, acaba por expressamente sancionar a...

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