Acórdão nº 531/21.9JAVRL.C1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 23 de Fevereiro de 2023

Magistrado ResponsávelLEONOR FURTADO
Data da Resolução23 de Fevereiro de 2023
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Recurso Penal Processo: 531/21.9JAVRL.C1.S1 5ª Secção Criminal Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: I – RELATÓRIO 1. AA interpôs o presente recurso penal do acórdão do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu ... - Juiz 2, doravante Tribunal de 1ª Instância, de 18/07/2022, que o julgou, em tribunal colectivo, decidindo: “1) Absolver o arguido AA da prática de um crime de violência doméstica agravado previsto e punível, nos termos do artigo 152º n.º 1 al. b) e n.º 2 al. a), 4, 5 do Código Penal; 2) Absolver o arguido AA da prática de um crime de detenção de arma proibida previsto e punível, nos termos dos artigos 86º n.º 1 al. c) e art. 3º n.º 3 ambos da Lei 5/2006, de 23.02; 3) Absolver o arguido AA da prática de crime de peculato de uso previsto e punido pelo artigo 376º n.º1 do Código Penal, por referência ao artigo 386.º n.º1 do mesmo diploma legal; 4) Absolver o arguido AA da pena acessória de proibição do exercício de função, a que aludem os artigos 66º n.º1, alínea b) e c) e 68º ambos do Código Penal.

5) Condenar o arguido AA pela prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131.º e 132.º, n.º1 e 2, alínea b) do Código Penal, na pena de 8 (oito) anos de prisão; 6) Condenar o arguido AA na suspensão das respetivas funções nos termos do disposto no artigo 67.º, n.º1 do Código Penal, suspensão essa que perdurará enquanto durar o cumprimento da pena.

”.

  1. O Recorrente cingiu o objecto do presente recurso à parte do acórdão recorrido “(…) a um vício decisório (…), a insuficiência da matéria de facto apurada para fundamentar a decisão (…) Quando assim se não entenda, A contradição entre a fundamentação e a decisão…” e “(…) Na matéria de direito suscita as seguintes questões: Errada qualificação jurídica, por falta de preenchimento dos elementos do tipo de homicídio qualificado na forma tentada com dolo eventual, Quando assim se não entenda e, por mera hipótese, o tribunal decida pela verificação do tipo, sempre se aponta: Nulidade da decisão por falta de fundamento quanto ao preenchimento da qualificativa prevista na alínea b), do n.º 2, do artigo 132.º do CPP: A falta de verificação da qualificativa decorrente do nº 2 da alínea b) do artigo 132º do CP. De forma subsidiária, por cautela Impugna-se a medida concreta da pena…”.

    Apresentou alegações, concluindo que: “1º Produzida a prova, o recorrente foi condenado pela prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131.º e 132.º, n.º1 e 2, alínea b) do Código Penal, na pena de 8 (oito) anos de prisão; na suspensão das respetivas funções nos termos do disposto no artigo 67.º, n.º1 do Código Penal, suspensão essa que perdurará enquanto durar o cumprimento da pena e foi condenado a pagar à ofendida BB a quantia de 10.000,00€ (dez mil euros), acrescidos de juros moratórios à taxa legal, contados da data da notificação do pedido de indemnização até integral pagamento.

    1. O recorrente não se conforma com a decisão e impugna a matéria de facto e a matéria de direito e no tocante à matéria de facto, a impugnação cinge-se a um vício decisório e as questões subsumem-se às que decorrem do próprio texto com a conjugação das regras da experiência – cfr. o disposto no artigos 432.º, n.º 1, alínea c) e 410.º, n.º s 2 e 3: 3º Aponta, assim, a insuficiência da matéria de facto apurada para fundamentar a decisão de direito – a matéria de facto dada como provada não é suficiente para o preenchimento do tipo legal de homicídio qualificado na forma tentada com dolo eventual ou 4º Quando assim se não entenda, a contradição entre a fundamentação e a decisão – a fundamentação invocada conduz a uma decisão contrária , nomeadamente na parte da fundamentação em que vinca a falta de vontade do arguido para matar a ofendida e acaba por o condenar pela prática do crime de homicídio qualificado, na forma tentada, com dolo eventual.

    2. Do teor do texto da matéria dada como provada sob II – Fundamentação, 2.1 Factos Provados, pontos 13, 14, 17, 18 e 19 não decorre que o recorrente quisesse em algum momento tirar a vida a BB.

    3. Com efeito da matéria provada, a decisão recorrida não faz assentar que o recorrente agiu com a intenção de tirar a vida à vítima BB, o que não conseguiu por circunstâncias alheias à sua vontade.

    4. Que o recorrente sabia tudo quanto se apura sob 17, 18 e 19, é questão que importa, mas não resolve aquela omissão do texto.

    5. A razão desta impugnação nos termos em que é apresentada, tem que ver com a fundamentação constante do próprio texto da decisão – cfr. 2.3 Convicção do Tribunal.

    6. Com efeito, finda a análise das declarações do arguido ora recorrente e de todos os depoimentos ao longo de 11 pontos, a decisão, numa apreciação crítica da prova, é clara ao afirmar que não há dúvida que o recorrente não queria tirar a vida à ofendida.

    7. E apesar do texto da decisão se socorrer no dolo eventual, o mesmo, nos exactos termos da decisão é afastado, em dois momentos: o que se reporta às exímias qualidades de atirador, quando se analisa as distâncias e local em que a ofendida estaria e onde se encontrou o projétil, e à síntese das declarações por si prestadas.

    8. Ora, este pormenor (distância) reveste capital importância, desde logo porque se está perante um órgão de polícia criminal, mas também porque o arguido revela especiais capacidades para a realização de disparos. Com efeito, note-se que a fls. 342 a 345 constam as avaliações finais dos testes regulares de disparo com arma de fogo feitos pelo arguido nos anos de 2018, 2019 e 2020 e em quase todos o arguido obteve a notação de 20 valores, sobretudo nos testes de tiro com pistola em contexto de reação policial, tudo, pois, bem demonstrativo da perícia e capacidades do arguido com uma arma de fogo.

    9. Todavia, não obstante a inquestionável destreza e precisão que o arguido patenteia com as armas de fogo, não hesitou em reconhecer no interrogatório judicial que as coisas podiam “ter corrido mal”. mas também disse, como se mostra na decisão outra expressão: (cfr. 2.3 Convicção do Tribunal – 1).

    10. Instado, disse que disparou a arma, “foi um ato irrefletido”, “mas nunca a quis matar, pois se o quisesse ter feito, tinha-a matado”.

    11. Nega que lhe tivesse dito que a ia matar. Tinha a arma de serviço. Estava com a arma porque como estava a levar as coisas todas para o carro, pôs a arma na cintura. Disse que não fez pontaria à ofendida, fez apontaria ao lado. Confrontado com o disparo a 10/20/30 cm da cabeça da arguida, o arguido não negou que pudesse ser essa a distância, referindo apenas que disparou para o lado. Interrogado, o arguido também admitiu que tinha consciência que “a coisa podia correr mal”.

    12. Vale isto por dizer que a conformação com o resultado é perfeitamente contrariado com este segmento da prova.

    13. E se uma parte é invocada, merece que seja no seu todo, com o que consta na totalidade sob 2.3 Convicção do Tribunal.

    14. E, feita tal análise a partir do que se mostra escrito, é legítimo apontar que não se verificando a intenção (elemento volitivo), muito menos ocorre a representação da possibilidade da morte, porque atirar ao lado, é fazer pontaria em sentido oposto à zona que a ser atingida, a morte ocorreria, dado tratar-se da cabeça da ofendida.

    15. O que se assiste é em vez do dolo eventual uma outra figura desprovida de tamanha carga onerosa, confiança nas suas apetências e avaliação grosseira do risco da actuação.

    16. As regras da experiência permitem-nos afirmar que face à segurança que o recorrente tinha na sua capacidade de disparo, não lhe acertaria.

    17. O que queria – no “acto irreflectido”, não era acertar na ofendida e actuou confiante que não acertava, como, na realidade aconteceu.

    18. Ainda que a afirmação também se mostra escrita “a coisa podia correr mal”, a sua confiança, de acordo com a sua vontade, era de que de não ia correr mal.

    19. A decisão recorrida apura todo um conjunto de factos que afastam a vontade do recorrente em tirar a vida da Joana.

    20. Da decisão resultam provado factos praticados pelo recorrente com vontade de amedrontar a ofendida – (II – Fundamentação, 2.1 Factos Provados, ponto7).

    21. E nesta sequência objectiva de actos – ventoinha partida, encontrão na cómoda e derrube de objectos no chão – apura-se o que a ofendida faz por ter receio (ponto 10): telefona à irmã.

    22. A final, sob 24, dá-se como apurado que o recorrente “logrou assustar a vítima”.

    23. Finda a leitura da matéria acima referida, sem recurso a elementos externos, conjugada com a fundamentação, a conclusão só pode ser esta: sabia que se atingisse a cabeça da ofendida, tirar-lhe-ia a vida; sabia que uma arma era um meio idóneo, mas, na verdade, o recorrente não queria tirar a vida à ofendida.

    24. A actuação do arguido ora recorrente tem por objectivo amedrontar a vítima.

    25. O culminar da actuação descrita em 7 termina com o disparo descrito em 13 e 14.

    26. A decisão em si e corroborada com as regras da experiência, mostra-se viciada.

    27. Com efeito, o recorrente efectuou o disparo que passou a cerca de 36 cm da cabeça da ofendida e o projéctil ficou alojado na caixilharia de uma porta a 1,72 cm do solo.

    28. Sucede, porém, e antes de mais, que não resulta do teor do texto a altura da ofendida para se perceber o alcance daquela específica referência a 1,72 cm.

    29. Não obstante tamanha omissão, resulta a particular perícia do recorrente, como atirador, as duas afirmações são cruciais: a primeira (referida e não ponderada) é a que refere que nunca a quis matar, se quisesse, tinha-a matado; a outra é a coisa podia ter corrido mal (com uma conotação particular na decisão recorrida e que no contexto das declarações do arguido não são mais que uma constatação, no sentido que não domina tudo, eventualmente a reação da ofendida ou a intervenção de uma qualquer circunstância).

    30. Ora, a decisão, com segmento final do ponto 18, com referência às circunstâncias alheias à sua vontade, para não ter atingido mortalmente a ofendida, colide com toda a...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT