Acórdão nº 1493/20.5T9VFR.P1 de Court of Appeal of Porto (Portugal), 22 de Fevereiro de 2023

Magistrado ResponsávelPEDRO VAZ PATO
Data da Resolução22 de Fevereiro de 2023
EmissorCourt of Appeal of Porto (Portugal)

Proc. nº 1493/20.5T9VFR.P1 Acordam os juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto I – AA veio interpor recurso da douta sentença do Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro que o condenou, pela prática de um crime de difamação agravada, p. e p. pelos artigos 180.º, n.º 1, 183.º, n.º 1, a) e b), e n.º 2, 184.º e 188.º. n.º 1, a), com referência ao artigo 132, n.º 2, i), todos do Código Penal, na pena de cento e oitenta dias de multa, à taxa diária de sete euros e cinquenta cêntimos, assim como no pagamento ao demandante BB da quantia de oitocentos euros, acrescida de juros legais, a título de indemnização de danos não patrimoniais.

Da motivação do recurso constam as seguintes conclusões: «

  1. O tribunal a quo não considerou todos os dados de facto, circunstâncias, contexto em que foram proferidas as expressões constantes da publicação e, bem assim, não valorou corretamente factos por si considerados provados, designadamente o 2. – 1.ª parte e 17. demonstrativos do modo em que ocorreu a referida publicação.

  2. Desconsiderou, também, prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento de 13.09.2022 – documentos 7 e 8 da contestação (fls. 11 a 125 dos autos) relevante para a fixação da matéria de facto.

  3. Na formação da sua convicção positiva na fixação da matéria de facto 3. a 5, o tribunal a quo, além de atender de forma crítica, conjunta e concatenada à prova produzida e CRC, apreciando-os à luz das regras da experiência (excecionando a prova relacionada com matéria alegada e não elencada na decisão de facto pelas já sobreditas razões), no que concerne à factualidade dada por provada de 3. a 5. a convicção do Tribunal assentou nas regras da experiência, tendo em conta situações de natureza similar e ainda por apelo à livre apreciação, considerando ademais a prova já apontada supra para dar por provada a demais factualidade já referida, não colhendo a este propósito a justificação que o arguido pretendeu dar no sentido de apenas ter exercido o seu direito à liberdade de expressão e direito à crítica, tanto em audiência como na publicação constante de fls. 30 dos autos, tanto mais que tal postura é contrária pelo próprio teor do post quanto se refere ao “calibre moral” do demandante, o que associado às expressões usadas, permitiu ao Tribunal decidir como fez neste particular.

  4. Conforme se infirma do artigo 127.º do CPP, “aprova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.

  5. O princípio da livre apreciação da prova é um princípio atinente à prova, que determina que esta é apreciada, não de acordo com regras legais pré-estabelecidas, mas sim segundo as regras da experiência comum e de acordo com a livre convicção do juiz, uma livre convicção que não pode ser arbitrária ou subjetiva e, por isso, deve ser motivada. A motivação da convicção apresenta-se, pois, como o meio de controlo da decisão de facto, em ordem a garantir a objetividade e a genuinidade da convicção formada pelo tribunal.

  6. Verifica-se a violação do princípio da livre apreciação da prova na medida em que a decisão de facto está insuficiente e incoerentemente fundamentada, afigurando-se impossível reconstituir o concreto caminho lógico seguido pelo tribunal para chegar às conclusões a que chegou, socorrendo-se de generalidades, abstrações e prova em “bloco”.

  7. Sem prejuízo de tudo quanto acima se disse, o tribunal a quo tirou conclusões ilógicas e arbitrárias, verificando-se ainda uma clara insuficiência de prova [direta e indireta (prova indiciária)] para tal decisão da matéria de facto.

  8. Mas sempre se diga, que ao considerar como provados os factos 2 e 17, salvo devido respeito, no entendimento do aqui recorrente, acaba por existir uma contradição insanável entre esses factos e os factos 3 a 5 também dados como provados.

  9. Os factos 3 a 5 devem, pois, ser considerados como não provados.

  10. A desconsideração e o detrimento da aplicação da Convenção por banda do tribunal a quo, enquanto direito interno português de origem convencional, perante o ordenamento penal português, configura um erro de direito.

  11. O tribunal a quo, tal como qualquer outro tribunal português, está vinculado à CEDH e, atento o artigo 8.º da CRP, aquela Convenção constitui direito interno que deve, como tal, ser interpretada e aplicada, primando, nos termos constitucionais, sobre a lei interna.

  12. A CEDH vigora na ordem jurídica portuguesa com valor infra-constitucional, isto é, com valor superior ao direito ordinário português.

  13. Ao contrário do entendimento do tribunal a quo, a apreciação valorativa do confronto entre a liberdade de expressão e a honra devia ter partido da Convenção.

  14. A Convenção é absolutamente clara ao consagrar o direito à liberdade de expressão no seu artigo 10.º, com as únicas restrições indicadas no seu n.º 2, as quais não se aplicam ao caso dos autos, nem o tribunal a quo sequer determinou sequer as sanções e restrições aplicáveis.

  15. Sendo que, a liberdade de expressão só pode ser sujeita a restrições nos termos claros e restritivos do n.º 2 do art.º 10.º da Convenção, pelo que as “formalidades, condições, restrições e sanções” à liberdade de expressão devem ser convenientemente estabelecidas, corresponderem a uma necessidade social imperiosa e interpretadas restritivamente.

  16. Não se afere que a ingerência litigiosa na liberdade de expressão do recorrente seja proporcional ou corresponde a uma necessidade social imperiosa que reclame ou justifique tal condenação determinada pelo tribunal a quo.

  17. Ante os dados de facto e as circunstâncias existentes no momento em que o recorrente efetuou a publicação e conduta/atuação pública e política do ofendido / demandante quer da Câmara Municipal no âmbito dos procedimentos do CAO para pessoas com deficiência da Casa O... ter sido alocado a acolhimento de idosos em recuperação da Covid19 e, por sua vez, a colocação em funcionamento do Centro de atividade Ocupacional para pessoas com deficiência da Casa O... em outro local, nomeadamente em Pavilhão Municipal sito em ... (factos realmente ocorridos), causam situações passíveis de crítica pública, abrindo a porta à possibilidade de qualquer cidadão poder exprimir a sua opinião livremente a coberto de uma “ingerência” do Estado que veicule uma condenação por difamação.

  18. A atividade política e administrativa obedece a uma ampla crítica e o exercício de cargos políticos, como o é o do ofendido/demandante, supõe uma margem muito restrita de discricionariedade do Estado nos limites à liberdade de expressão nas suas variantes, tendo tais agentes de mostrar ainda um maior grau de tolerância aquando da participação dos cidadãos comuns, como o recorrente, na atividade política e cívica.

  19. O ofendido/demandante, exercendo um cargo público e político, tem maior exposição e tem de se sujeitar à crítica, a qual é comunitariamente aceite, ainda que algumas expressões e juízos do recorrente fossem contundentes, excessivos, agressivos e negativos, persistem ainda atípicos, como reflexo da crítica objetiva e em conexão com o assunto de interesse geral que o mesmo censurou e valorou criticamente e adequada aos dados de facto, circunstâncias e contexto à data da publicação, sem que tais expressões e juízos tivessem objetivamente o propósito único e exclusivo de atingir a honra e consideração do ofendido/demandante e, muito menos, traduzem uma crítica caluniosa.

  20. As expressões usadas, embora contundentes, desagradáveis e agressivas, visaram a atuação da Câmara e do seu Presidente, o comportamento e atuação política e não o ofendido/demandante em si mesmo, o mero cidadão, nem a vida pessoal deste.

  21. Não deve considerar-se ofensivo da honra e consideração de outrem tudo aquilo que o ofendido/demandante entenda que o atinge, de certos pontos de vista, mas aquilo que razoavelmente, isto é, segundo a sã opinião da generalidade das pessoas e tendo em conta os dados de facto, circunstâncias e contexto verificados, deverá considerar-se ofensivo daqueles valores individuais e sociais e careçam efetivamente de tutela penal.

  22. Assim, no conflito de direitos que se verifica no caso em apreço, deve prevalecer a liberdade de expressão sobre o direito à honra.

  23. E ao condenar o arguido, incorreu o tribunal a quo, salvo o devido respeito, em erro na qualificação jurídica dos factos, porquanto, em nosso entender, da prova produzida não se vislumbra qualquer censura penal, por não integrar o crime previsto e punido pelo art.º 180.º n.º 1, 183.º n.º 1 alínea a), 184.º e 188.º n.º 1 alínea a), com referência ao art.º 132.º n.º 2 alínea l), todos do Código Penal.

  24. A conduta do arguido não preenche os elementos objetivos e subjetivos do tipo legal previsto nas disposições conjugadas dos arts. 180.º n.º 1, 182.º, 183.º n.º 1 al. a), 184.º por referência ao art.º 132.º n.º 2 al. l) e 188.º n.º 1 al. a) do CP.

  25. O comportamento do arguido não foi ilícito nem culposo, não resultando provado que agisse com consciência da punibilidade da sua conduta.

  26. Resultando, assim, por força da referida decisão e sua fundamentação, violados, entre outros, os artigos 8.º, 18.º, 37.º, 202.º, n.º 2 e 205.º, n.º 1, todos da C.R.P., o artigo 127.º, do C.P.P. e os artigos 180.º n.º 1, 182.º, 183.º n.º 1 al. a), 184.º por referência ao art.º 132.º n.º 2 al. l) e 188.º n.º 1 al. a), todos do C.P.

    a

  27. Pelo exposto, a douta sentença recorrida deverá ser reformada, de acordo com o que antecede, absolvendo-se o arguido da prática de um crime de difamação agravada, p. e p. pelos artigos 180.º n.º 1, 182.º, 183.º n.º 1 al. a), 184.º por referência ao art.º 132.º n.º 2 al. l) e 188.º n.º 1 al. a), todos do C.P. e, uma vez, que não resulta provado que o comportamento do arguido foi ilícito, deverá improceder o pedido de indemnização civil contra ele deduzido, pois o seu fundamento era a prática do facto ilícito.» O Ministério Público junto do Tribunal de primeira instância apresentou resposta a tal motivação...

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