Acórdão nº 189/20.2GEGDM-A.P1 de Court of Appeal of Porto (Portugal), 22 de Fevereiro de 2023
Magistrado Responsável | NUNO PIRES SALPICO |
Data da Resolução | 22 de Fevereiro de 2023 |
Emissor | Court of Appeal of Porto (Portugal) |
Proc. 189/20.2GEGDM-A.P1 X X X Acordam em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto: No decurso do processo de inquérito, após interrogatório judicial de arguido detido, e a requerimento do arguido o Mmº Juiz de Instrução criminal proferiu o seguinte despacho: “Nestes termos, sem necessidade de ulteriores considerações e tendo em atenção tudo quanto deixei escrito supra, decido declarar extintas, pelo decurso do prazo máximo legalmente admissível e ao abrigo do disposto nos artigos 215.º, n.º 1 e 2, e 218.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, as medidas de coacção de proibição de contactar com a ofendida, por qualquer forma e em qualquer lugar; proibição de se aproximar da residência e local de trabalho da mesma; e proibição de adquirir ou conservar armas aplicadas ao arguido AA em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido.
*Mais decido ainda que o arguido AA aguarde os ulteriores termos processuais sujeito, cumulativamente, às seguintes medidas de coacção: 1.
Termo de Identidade e Residência, já prestado nos autos a fls. 344; e, 2.
Obrigação de apresentação periódica trissemanal, à Segunda-feira, Quarta-feira e Sábados, entre as 8:00 e as 22:00 horas, no posto policial mais próximo da sua residência, Tudo ao abrigo do disposto nos artigos 191.º, 192.º, 193.º, 194.º, n.º 1, 196.º, 198.º, e 204.º, alínea c), todos do Código de Processo Penal.”*Não se conformando com esta decisão o Ministério Público veio interpor recurso, com os fundamentos constantes da motivação e com as seguintes conclusões: No âmbito do Inquérito identificado em epígrafe e após várias diligências de investigação, o Ministério Público determinou a emissão de mandados de detenção fora de flagrante delito em relação ao arguido AA, com os seguintes fundamentos: «A ofendida BB e o denunciado contraíram matrimónio a 30 de Agosto de 1992, adotando residência comum, num primeiro momento em ... e, posteriormente, na Rua ..., em ..., Gondomar.
Em comum têm duas filhas: CC (nascida a .../.../1995) e DD (nascida a .../.../1997).
Em Julho de 2001, os mesmos constituíram a Sociedade com a firma «AA, Lda.», com quotas em partes iguais, mas com gerência a cargo do denunciado.
Ê que, depois de finalizar curso superior (já após o casamento), a ofendida passou a lecionar em Paços de Ferreira.
No entanto, em Março de 2013, foi efetuada uma alteração ao contrato, ficando a gerência da referida Sociedade a cargo de ambos: Ora, desde o início da relação de intimidade que o denunciado não se abstém de exercer autoridade sobre a ofendida, tentando menoriza-la.
Assim: O denunciado fazia «esperas» junto à Faculdade que a ofendida frequentava e, posteriormente, nos locais de trabalho desta.
O denunciado mostrava desagrado por a ofendida trabalhar fora da alçada dele, pelo que - por vezes - chegou a esconder a chaves do veículo onde esta se fazia transportar e a desligar a bateria do mesmo.
O denunciado opunha-se a qualquer convívio (mesmo em ocasiões festivas) da ofendida com os colegas de trabalho. E, numa das vezes em que a ofendida manifestou vontade de participar num jantar de Natal, o denunciado desatou a partir os mais variados objetos da sala de estar da residência comum, assustando uma das filhas (que presenciou tais factos).
O denunciado exigia conhecer todos os amigos da ofendida e, apôs, afastava-os desta.
O denunciado apodava a mesma de «doutora de merda.», mas também de «filha da puta», «cabra» e «vaca».
O denunciado menosprezava/desprezava a família da ofendida, referindo-se-lhe como «bando de ciganada» ou «doutores de merda», opondo-se também a qualquer convívio.
O denunciado não aceitava ser contrariado pela ofendida, chegando - no inicio da relação e quando a mesma expressou opinião contrária - a desferir-lhe duas bofetadas e a exigir-lhe obediência.
E o denunciado voltou a agredir a ofendida, do mesmo modo, cerca de um ano depois.
A partir dai, ou seja, desde há cerca de 20 anos, que o denunciado - não obstante ter cessado com as agressões físicas - nunca de dar continuidade às restantes condutas de controlo sobre a ofendida, de a humilhar com os referidos impropérios e de a afetar na sua capacidade de reação e movimentação, declarando-lhe - em tom sério, convincente e intimidatório - «dou cabo de ti» e «mato-te».
E tudo isto se agravou desde 2013, data em que a ofendida assumiu, também ela, a gestão da referida Sociedade, com sede na Rua ..., ..., em Gondomar.
Deste modo, o denunciado passou a proferir as referidas expressões humilhantes e intimidatórias com uma frequência quase diária.
Em data não concretamente apurada no último trimestre de 2019, no referido local de trabalho e no decurso de mais uma discussão, o denunciado muniu-se com um pau, declarou para a ofendida «dou cabo de ti» e, de seguida, passou a destruir o mobiliário e peças de clientes.
A 18 de Julho de 2020 e em Assembleia Geral Extraordinária, foi acordado que denunciado cedia à denunciante a totalidade da sua quota, bem como toda a sua participação social\mediante contraprestação (ali descrita), com correlativa renúncia, por parte do mesmo, ao cargo de gerente e com rescisão do seu contrato de trabalho.
Cerca das 12:15 horas do dia 31 de Julho de 2020, o denunciado deslocou-se às instalações da referida Sociedade exigindo à ofendida que lhe entregasse uma chave de acesso e, perante a recusa, declarou-lhe «és uma filha da puta», «és uma cabra» e «vou pegar num pé de cabra e partir esta merda toda».
Ao início da tarde de 31 de Agosto de 2020, no interior da residência comum, o denunciado exigiu à ofendida que destrancasse a porta do quarto afeto à mesma, referiu-lhe «tu não és nada» e declarou-lhe que, caso assim se mantivesse quando ele regressasse a casa, a arrombaria.
Também em data não concretamente apurada entre final do ano de 2020 e início de 2021, o denunciado declarou para a ofendida - em tom provocatório e intimidatório - «um dia há de entrar um mosquito pela janela do quarto e há-de-te picar mas não hei de ser eu».
Nessa data, o denunciado pousou duas facas, cruzadas, sobre a mesa de refeições.
A 12 de Agosto de 2020, o denunciado intentou uma Ação de anulação de deliberação social (Processo nº 2159/20.1T8STS), a qual foi declarada improcedente, por decisão de 28 de Maio de 2021.
Cerca das 14:45 horas do dia 6 de Junho de 2021, o denunciado abeirou- se da ofendida - que se encontrava na sala de estar da residência comum - dando início a mais uma discussão pelo facto de esta estar ali a trabalhar e ele querer ver televisão, referindo «a casa é minha e ainda te deixo fechar o quarto para já, mas isso vai acabar».
De seguida o mesmo - em mais uma atitude provocatória - ligou os aparelhos de televisão e de música, colocando elevando o som.
Nessas circunstâncias, o mesmo dirigiu-se à cozinha, muniu-se com uma faca de grandes dimensões (cerca de 30 centímetros), voltou a abeirar-se da BB e declarou-lhe - em tom sério, convincente e intimidatório - «eu trato de ti» e «eu dou cabo de ti».
Em pânico, a ofendida saiu do local e telefonou à sua mandatária, tendo o denunciado acrescentado «isto ainda nem começou.».
Para além disso e para além de bater com as portas da habitação e de partir vários objetos, o denunciado declara para a ofendida que esta vai ficar «sem nada» que a vai deixar na «miséria».
O denunciado atuou sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que ao humilhar, destratar, desprezar a ofendida e afetar-lhe a capacidade de reação e movimentação, atentava contra a saúde psíquica e emocional e contra o direito de confiança desta - no estabelecimento de uma relação de intimidade - que o mesmo se absteria de tal tipo de condutas.
E o denunciado agiu, amiúde, no interior da residência comum, a coberto da reserva de intimidade que tal locus lhe proporcionava (e, portanto, sem risco de ser surpreendido), e num espaço que deveria servir de conforto e de segurança para a ofendida.
Dito isto, importa referir (citando o Tribunal da relação de Lisboa) que «os crimes relacionados com a violência doméstica caracterizam-se por serem cíclicos e de intensidade crescente, sendo que a médio prazo, os ciclos tendem a repetir-se e a ser cada vez mais próximos entre si, aumentando igualmente a gravidade das condutas até aos desfechos trágicos, razão pela qual está sempre presente um intenso perigo de continuação da actividade criminosa» (Processo nº 89/17.3PGOER-A.L1-9) Ou seja, é consabido que os episódios de violência doméstica tendem a perdurar e a agravar-se ao longo do tempo. Segundo o Manual Pluridisciplinar do Centro de Estudos Judiciários e da CIG: «Ao longo do tempo, os atos de violência tendem a aumentar de frequência, intensidade e perigosidade. Assim, não só o risco para a vítima aumenta e as consequências negativas são mais intensas, como, à medida que o tempo passa, ela perde cada vez mais a sensação de controlo e poder sobre si própria e sobre a sua vida-"».
Impõe-se, portanto, fazer cessar o denunciado deste tipo de condutas, quebrando um ciclo de agressividade crescente».
A 23 de Setembro de 2021, o AA foi conduzido para interrogatório judicial, nos termos do art. 141º do Código de Processo Penal, onde o Ministério Público (reproduzindo o seu anterior despacho quanto às medidas de coação a aplicar) promoveu a proibição de contacto (por qualquer meio) com a vítima e a proibição de se aproximar da residência e do local de trabalho da mesma, nos termos do art. 31º (e com fiscalização prevista pelo art. 35º e 36º) da Lei nº 112/2009 de 16 de Setembro.
Judicialmente, foi determinado «que o arguido AA aguarde os ulteriores termos do processo em liberdade, sujeito às obrigações decorrentes do Termo de Identidade e Residência, que prestou, cumulativamente com as seguintes medidas: - proibição de contactar com a ofendida, por qualquer forma e em qualquer lugar, - proibição de se aproximar da residência e local de trabalho da mesma; e, - proibição de adquirir ou conservar armas, tudo fiscalizado por meios...
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