Acórdão nº 41/20.1JATAR-C.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 11 de Outubro de 2022

Magistrado ResponsávelEDGAR VALENTE
Data da Resolução11 de Outubro de 2022
EmissorTribunal da Relação de Évora

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Évora[1] I- Relatório Nos presentes autos foram pronunciados os arguidos AA, BB, CC, DD, EE, FF, GG, HH e II, pela prática em co-autoria de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelos artigos 21.º, n.º 1 e 24.º, alíneas c) e j) do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro.

No início da audiência de julgamento e, perante o teor do relatório final da acção encoberta, entretanto junto aos autos, vieram alguns dos arguidos requerer a junção de toda a acção encoberta e arguir, desde logo, a ilegalidade da mesma por violação do prazo do art. 3º, nº6 da Lei 101/2001, de 25-8.

O MP opôs-se e, após diversas vicissitudes, viria a ser proferido despacho a 9-3-2022 que, após deliberação do Tribunal Colectivo, ordenou a junção ao processo de todos os relatos e respectivos despachos de autorização e de validação que tenham recaído sobre os mesmos, onde tenham tido intervenção os agentes encobertos respeitantes a este processo, salvaguardando obrigatoriamente a identidade dos mesmos e, bem assim, face ao requerido pelo Ministério Público, salvaguardando investigações estranhas aos presentes autos e que não caibam na decisão instrutória aqui proferida.

Inconformado com tal despacho, recorre o MP, apresentando as seguintes conclusões: “1. No âmbito das exposições introdutórias em sede de Audiência de Julgamento realizada no passado dia 18.02.2022, veio o I. Mandatário dos arguidos, BB, HH e CC requerer, em apertada síntese, que se ordenasse ao M.P. a junção aos autos de toda a acção encoberta, já que os arguidos tinham o direito a ela aceder a fim de exercerem o contraditório, designadamente sindicarem a legalidade deste meio de prova, conforme resulta de um direito constitucional.

  1. Após ter sido suscitada irregularidade cometida ao não conceder prazo e oportunidade ao Ministério Público para se pronunciar sobre o citado requerimento, veio o M.P. a tomar posição, pugnando pelo indeferimento do requerido por ilegal.

  2. Por despacho de 09.03.2022 decidiu o Tribunal Colectivo o seguinte: “ordena-se a junção ao processo de todos os relatos e respetivos despachos de autorização e de validação que tenham recaído sobre os mesmos, onde tenham tido intervenção os agentes encobertos respeitantes a este objeto de processo, salvaguardando obrigatoriamente a identidade dos mesmos e bem assim face ao requerido pelo ministério Público salvaguardando investigações estranhas aos presentes autos e que não caibam na decisão instrutória que é objeto deste processo.” 4. Após transcrever o disposto no art. 3.º, n.º 6, e 4.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 101/2001, de 25 de Agosto, o Tribunal fundamentou tal decisão da seguinte forma: “o Tribunal de facto reputa indispensável em termos probatórios a junção aos autos de pelo menos tais relatos”.

  3. O despacho recorrido apresenta uma errada fundamentação.

  4. O art. 97.º do Código de Processo Penal dispõe que os actos decisórios, entre os quais se contam os despachos quanto a questões interlocutórias, devem ser formais e fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.

  5. Esse dever de fundamentação resulta também de imposição constitucional (n.º 1, do art. 205.º, da C.R.P.) e visa evidenciar as razões da bondade da decisão e dar satisfação à exigência da sua total transparência, facultando aos seus destinatários imediatos e à comunidade em geral a compreensão dos juízos de valor e de apreciação levados a cabo pelo julgador e viabilizando o controlo da actividade decisória pelo tribunal de recurso.

  6. No caso do despacho recorrido, para fundamentar a junção de todos os relatos e despachos da acção encoberta, limita-se o Tribunal a “estampar” a expressão conclusiva utilizada pela lei – seria indispensável em termos probatórios – sem explicar as razões processuais fácticas e concretas que estão na base desse juízo.

  7. De facto, atendendo à circunstância de ainda não se ter iniciado a produção de prova, na medida em que os arguidos a tal se opuseram logo em sede de exposições introdutórias, seria difícil ou mesmo impossível fundamentar o referido despacho.

  8. Sem se ter iniciado a produção de prova, ficou inviabilizada qualquer ponderação quanto à indispensabilidade da junção de qualquer meio de prova e ao fazê-lo, decidiu o Tribunal, de forma infundamentada e ao arrepio do disposto nos arts. 3.º, n.º 6, e 4.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 101/2001, de 25 de Agosto, normas que, pretensamente, sustentaram a decisão ora recorrida.

  9. Mas independentemente do “timing” da sua prolação, o despacho recorrido é ilegal.

  10. A utilização de agentes infiltrados, como no caso dos autos, esta reservada para situações de criminalidade grave, organizada e sofisticada e tem assento legal na Lei nº 101/2001, de 25 de Agosto.

  11. Sendo a consagração legal de um meio oculto de investigação fará parte da sua matriz alguma compressão de direitos.

  12. Se atentarmos ao processo de formação dessa lei constatamos que, em sede de Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias e de discussão no Plenário da Assembleia da República da proposta de Lei n° 79/VIII, a questão da salvaguarda dos direitos de defesa em processo criminal e garantias dos cidadãos foi devidamente ponderada.

  13. Atendendo à especificidade deste regime e à sua ratio, o legislador não permitiu o acesso ilimitado à ação encoberta, enfatizando em contraponto a necessidade da intervenção de um Juiz no controlo do processo, a quem, em última instância, cabe julgar da legalidade da medida autorizada pelo Ministério Público.

  14. Assim, quanto ao controlo de legalidade da acção encoberta a lei prevê: 1- que é levada a cabo, sempre, com o controlo de uma autoridade judiciária, no caso das acções preventivas, por um Juiz de Instrução sob proposta de um magistrado do Ministério Público; 2- a possibilidade da junção ao processo do relato da Polícia Judiciária que vem previsto no n.º 6, do art. 3.º, caso a autoridade judiciária conclua pela sua indispensabilidade em termos probatórios; 17. No caso dos autos, o Tribunal, após serem apresentadas as contestações, decidiu determinar a junção do relato final da acção encoberta, o que veio a ser efectuado pelo DCIAP.

  15. Desse relatório resulta que a acção encoberta decorreu, sob supervisão e controlo jurisdicional e foi desencadeada para reunir provas que permitissem a condenação pela prática do crime de tráfico de estupefacientes agravado (um dos elencados no diploma que a prevê - art. 2.º), ou seja, para fins de prevenção/investigação criminal.

  16. Esse relato “final” (a que a Lei n.º 101/2001 faz referência no n.º 6 do art. 3.º e não a vários relatos) é o único elemento que legalmente pode ser junto ao processo, consubstanciando apenas um meio processual destinado a «permitir o controlo da regularidade e legitimidade da actuação oculta nos seus pressupostos e no seu modo de execução e a contextualizar os elementos ou indícios recolhidos.” 20. Os direitos de defesa dos arguidos não ficam limitados por não terem acesso a todos os relatos do agente encoberto e despachos de autorização e validação já que o relatório final junto e a eventual inquirição dos agentes em audiência, possibilitará um controlo posterior da legalidade da autorização e o pleno exercício do contraditório.

  17. Tal entendimento e a ausência de fundamento legal do determinado no despacho recorrido, resulta cristalino do Acórdão do S.T.J. de 10.03.2016.

  18. Ao contrário do que se afirma na última parte do despacho igualmente proferido no dia 09.03, sobre a resposta recebida do DCIAP, o Acórdão da Relação do Porto, de 07-05-2014, que foi citado, não decidiu que “os relatos da ação encoberta deveriam estar junto aos autos”.

  19. Não se duvidando da “absoluta clarividência” desse aresto, como sublinha o despacho recorrido, a sua leitura atenta permitiria concluir que não se debruçou sobre a questão a decidir no caso dos autos, pelo que não sustenta, nem de perto nem de longe, o entendimento agora defendido pelo Tribunal.

  20. A “criminalidade altamente organizada”, nas actuais sociedades, elevou o nível de exigência securitária por parte dos cidadãos, que exigem que o Estado adopte medidas, no sentido de garantir a sua segurança, combatendo eficazmente essa criminalidade.

  21. Ficou patente a fraqueza e insuficiência dos métodos tradicionais de prevenção e investigação criminal contra os sofisticados meios à disposição das organizações criminosas pelo que o ordenamento jurídico português, à semelhança de muitas outras legislações, previu as ações encobertas.

  22. Na sua elaboração, o legislador teve presente o equilíbrio entre as garantias de defesa em processo criminal e a salvaguardar da segurança dos agentes envolvidos e da segurança dos cidadãos, tendo concluído que apenas o relato final podia ser junto ao processo e só quando absolutamente indispensável em termos probatórios.

  23. Se, ao arrepio da lei, os Tribunais passassem a “escancarar” as acções encobertas a todos, magistrados, advogados, arguidos, funcionários judiciais, comunicação social e público presente nas salas de audiência: colocariam em grave e real perigo de vida os agentes encobertos e aqueles que lhes são mais próximos; perante a ausência de qualquer protecção deixariam de existir agentes encobertos; os cidadãos ficariam totalmente desprotegidos e os Estados incapazes de combater a criminalidade objectivamente grave e altamente organizada; e assistiríamos ao corroer dos próprios fundamentos das sociedades democráticas e abertas.

  24. Face a todo o exposto, porque a junção de todos os relatos e despachos proferidos na acção encoberta não é legalmente admissível, requere-se que esse Venerando Tribunal, declare ilegal o despacho judicial que o determinou, negando o requerido pelos arguidos”.

    * Os arguidos AA, DD, BB, HH, EE e CC responderam ao recurso, pugnando pela respectiva improcedência, nos seguintes termos (conclusões em transcrição): AA “1. O Recurso interposto não merece provimento 2. O Despacho da Senhora...

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