Acórdão nº 959/18.1T9ABF.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 13 de Setembro de 2022

Magistrado ResponsávelJOÃO AMARO
Data da Resolução13 de Setembro de 2022
EmissorTribunal da Relação de Évora

Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: I - RELATÓRIO Nos autos de processo comum (tribunal singular) nº 959/18.1T9ABF, do Juízo Local Criminal de … (Juiz …), e mediante pertinente sentença, a Exmª Juíza decidiu nos seguintes termos (em transcrição): “DECISAO CRIMINAL Face ao exposto, decide o Tribunal: A. ABSOLVER o arguido AA pela prática de um crime de ofensa à memoria de pessoa falecida, p. e p. pelo art. 185.º do Código Penal

  1. ABSOLVER o arguido BB pela prática de um crime de ofensa à memoria de pessoa falecida, p. e p. pelo art. 185.º, do Código Penal

  2. Sem custas

    DECISÃO CIVIL Face ao exposto, o tribunal julga o pedido de indemnização cível improcedente e, em conformidade: 1. Absolver o demandado AA a pagar à demandante a quantia de €75.000,00

    1. Absolver o demandado BB a pagar à demandante a quantia de €75.000,00

    2. Custas do pedido cível a cargo da demandante (cfr. art. 527.º, n.ºs 1 e 2, do C. P. Civil)”

    * A assistente CC, inconformada com a decisão, dela vem interpor recurso, apresentando as seguintes (transcritas) conclusões: “A. É entendimento da Recorrente, com o devido respeito, que o douto Tribunal a quo não esgotou o objeto do processo, nem terá efetuado uma correta ponderação, ao decidir pela absolvição dos dois arguidos com a matéria de facto produzida em sede de audiência e julgamento, tendo assim resultado uma incorreta convicção do Tribunal da análise que fez dos diversos meios probatórios

  3. A distinção feita na douta Sentença, entre a valoração dos factos provados com relevância para a decisão criminal, cfr. 1.1.1, e os factos provados com relevância para a decisão cível cfr. 1.3.1., não configuram duas distintas realidades factuais, nem impendem que os factos provados na decisão cível possam e devam ser valorados, para o apuramento da responsabilidade penal dos arguidos

  4. Estando perante responsabilidade civil por perdas e danos emergentes de crime, cfr. artigo 129.º do CP, ou seja, estando em causa a responsabilidade civil conexa com a criminal, ambas necessariamente assentam nos mesmos pressupostos, designadamente os factos ilícitos praticados

  5. Pelo que, com o devido respeito, não se aceita, que uma mesma a factualidade - provada - seja relevante para fins de responsabilização civil, não possa ser, igualmente, relevante para fins de responsabilização penal, estando em causa a prática dos mesmos atos

  6. A mesma realidade fática, provada que está dirigindo-se, como foi, a uma pessoa falecida em concreto, é apta a gravemente ofender e atentar contra a memória do de cujus, e o seu património espiritual na sua parte nuclear, e como tal, necessariamente, constituir a prática de um ilícito criminal cometido por ambos os arguidos, e de configurar, em todos os seus elementos, a prática do crime de ofensa à memória de pessoa falecida, previsto e punido pelo artigo 185.º do Código Penal

  7. A douta Sentença entendeu não estar preenchido o elemento típico “ofender”, essencialmente por considerar que havia de prevalecer a liberdade de expressão e de crítica dos dois Arguidos, em detrimento da proteção jurídico-penal da memória da pessoa falecida, considerando ainda terem existido causas para afastar a responsabilidade penal dos dois arguidos, nomeadamente a tenção que se gerou no decorrer da assembleia, e por uso de tais expressões não exceder uma mera crítica pública, ainda que rude e grosseira

  8. Importa ter presente, para a análise deste segmento da douta Sentença que o de cujus terminou a sua intervenção na administração do condomínio cerca de 6 anos antes da realização da assembleia de condóminos em causa, em .../.../2018, sendo que tal cargo passou a ser ocupado pelo arguido AA nos 3 mandatos seguintes, desempenhando essas funções à data dos factos, cfr. factos provados, alíneas f) a h), sendo candidato a reeleição por novo período de dois anos

  9. O ato de “criticar”, como é consabido, consiste em fazer uma análise; em examinar e apreciar; observar o que existe de bom e de mau num trabalho; emitir um julgamento favorável ou desfavorável, dizer mal ou apontar defeitos, de trabalhos ou comportamentos

    I. O que não se pode confundir com o imputar, repetidamente, a alguém a prática de um roubo, ou de ser um ladrão, expressões que, e como decorre da normal experiência de vida, no modo e local como foram proferidas, têm de ultrapassar o limite de uma crítica, ainda que rude e grosseira

  10. Pois, antes, formulam um juízo sobre o visado, sobre o seu valor pessoal e interior, sendo assim aptas a ofender a dignidade de qualquer pessoa, a própria reputação, ou no caso, o histórico de vida do de cujus, e a forma como é recordado e norteou a sua vida

  11. Não se contesta que existem expressões, comunitariamente possam ser tidas como rudes, grosseiras e inapropriadas, em determinados contextos, e desde que proferidas sem um conteúdo ofensivo, ou intimidatório, nem repetidamente em forma de ataque pessoal

    L. Mas, para assim serem classificadas é necessário, para além da demonstração do circunstancialismo em que foram proferidas, ainda que se demonstre que quem as emprega usualmente, aceita receber a carga de ofensividade que é inerente às mesmas, sobre o que a douta Sentença nada diz

  12. No caso as ofensas foram dirigidas a pessoa falecida, a qual nem possibilidade tinha de se defender, as contraditar, ou chamemos-lhe, “devolver” a crítica

  13. Ora, segundo a normalidade da vida e as regras da experiência, as imputações feitas pelos dois arguidos à pessoa do pai da assistente - “Negociatas do DD”, “o seu pai foi um ladrão”, “o seu pai roubou-me uma garagem” -, no concreto circunstancialismo em que ocorrerem, uma reunião de condóminos, e no contexto verificado pelos depoimentos transcritos, não podem deixar de ser tidas como suscetíveis de ofender gravemente, e atentar contra a memória do de cujus, e como tal constituir a prática de um ilícito criminal, não podendo assim resultar na absolvição dos dois Arguidos

  14. Recorde-se como consta dos Relatórios Sociais dos dois arguidos, são pessoas instruídas, “com processos de socialização que viabilizaram a aquisição de normas e valores socialmente ajustados, tendo ainda providenciado a aquisição de competências pessoais e sociais pró-sociais”, cfr. factos provados p) a r), e no caso do arguido AA, ser possuidor ainda de uma formação superior, pelo que são pessoas que conhecem bem o significado das palavras nas expressões que entendem proferir em determinados momentos, bem como a carga ofensiva que nelas está contida e que querem transmitir ao destinatário, principalmente as transmitirem no lugar e pela forma como o fizeram, como resulta de factos provados. Apesar de ambos terem mostrado o seu carácter e índole pessoal ao Tribunal, com o pedido de apoio judiciário que ambos fizeram, e apresentaram na contestação do pedido cível

  15. Resulta dos trechos dos depoimentos transcritos, quer da Assistente, quer das referidas testemunhas, estando todos presente na dita assembleia, confirmaram o teor das expressões publicamente proferidas pelos dois arguidos, as quais foram audíveis para todos os presentes, e que o teor insultuoso das expressões proferidas, somente ocorreram na data da assembleia de … de 2018, e não em outras assembleias que decorreram anteriormente, o que não poderia deixar de ser valorado pelo douto Tribunal a quo, para formar a sua convicção

  16. De igual teor e substância resulta dos mesmos depoimentos, quanto ao tema da reunião de condóminos, que era a eleição de uma nova administração, e que, quando os dois arguidos proferiram as expressões constantes de factos provados, o fizeram, “do nada”, sem que para tal tivessem sido “provocados”, e fora de qualquer contexto, ou do tema que estava a ser debatido

  17. O qual não era, até pela lógica e normal experiência de vida, a apreciação do exercício da administração do de cujus, que se recorda, cessou em 2012, há seis anos, tendo já ocorrido desde então três mandatos exercidos pelo arguido AA

  18. Nem outra conclusão resulta ou se pode inferir dos depoimentos transcritos prestados pelas três testemunhas acima, e da Assistente, que quando questionados sobre as razões de terem sido proferidas tais expressões pelos dois arguidos, não as souberam precisar, o que seguramente implicaria uma resposta diferente, caso o fosse proferida num contexto de análise ou sindicância ao exercício da gestão do condomínio, ocorrido seis anos antes, pelo de cujus, pois essa relação direta seguramente estaria presente nas suas memórias

  19. Por outro lado, como é natural, não se podia tratar de uma discussão sobre a participação do de cujus em uma lista, ou uma por ele patrocinada, pelo que também não seriam esses os motivos pelos quais os arguidos, já no encerrar da reunião, vociferaram, repetidamente, as ofensivas expressões contra a memória do de cujus

  20. Acrescentando-se ainda que as expressões referidas pelo arguido AA, “negociatas do DD”, “o seu pai foi um ladrão”, para além de não terem que ver com uma contestação à lista concorrente à sua, a indicada pela empresa ..., SA, as ditas “negociatas” não estavam a ser debatidas na assembleia em causa, sendo que nada foi dito por este arguido que identificasse ou concretizasse em que consistiam as “negociatas”, ou que “roubos” terá cometido o de cujus, para ser, chamado publicamente, e de viva voz, repetidamente, de ladrão, até por saber que tal não correspondia à verdade

    V. Resulta ainda dos depoimentos transcritos, sendo o de cujus por elas considerado como uma pessoa honesta e de bem, não tendo conhecimento de um qualquer comportamento que “justificasse” as expressões proferidas pelos dois arguidos contra o falecido

  21. Resulta evidente que os arguidos tinham um único propósito, com os comportamentos descritos - provados -, isto é, tão só desestabilizar a reunião de condóminos, e por “osmose” associar à lista concorrente a sua, no que tinham interesse, as imputações que atribuíram pessoalmente ao de cujus, um ladrão, ou seja, estender um juízo...

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