Acórdão nº 17/12.2GAABF.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 22 de Janeiro de 2019

Magistrado ResponsávelCARLOS BERGUETE COELHO
Data da Resolução22 de Janeiro de 2019
EmissorTribunal da Relação de Évora

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora 1.

RELATÓRIO Nos presentes autos de processo comum, perante tribunal singular, que correu termos na então Instância Local de Albufeira do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, o Ministério Público deduziu acusação contra AG, imputando-lhe, em autoria material, um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo art. 205.º, n.ºs 1 e 4, alínea a), com referência ao disposto no art. 202.º, alínea a), ambos do Código Penal (CP).

Auto --- - Automóveis de Aluguer, S.A. deduziu pedido de indemnização civil contra a arguida/demandada, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de € 13.000,00, a título de danos patrimoniais, acrescida de juros vincendos até integral pagamento.

A arguida/demandada não apresentou contestação.

Realizado julgamento (na ausência da arguida) e proferida sentença, decidiu-se absolver a arguida da prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de abuso de confiança e julgar o pedido civil formulado totalmente improcedente e, em consequência, absolver a demandada do pedido de indemnização civil deduzido.

Inconformado com tal decisão, o Ministério Público interpôs recurso, extraindo as conclusões: 1 - O Ministério Público recorre da douta sentença proferida nos autos que absolveu a arguida da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança, pº e pº pelo artº 205º, nºs 1 e 4, al. a) do Cód. Penal.

2 - Com o devido respeito e salvo melhor opinião, incorreu o Tribunal "a quo" em erro notório na apreciação da prova e em erro de direito, por incorrecta interpretação do direito aplicável aos factos constantes da acusação, mais concretamente o preenchimento do conceito "apropriação ilegítima" integrador do tipo, isto ao ter decidido dar como provados (quase) todos os factos constantes da acusação, entendendo depois que, no entanto, tal não bastava para se concluir que a arguida actuou com o conseguido objectivo de fazer seu o veículo da ofendida, dando, consequentemente, como não provado esse segmento fáctico.

3 - Entende-se, assim que o Tribunal "a quo" violou o disposto no artº 205º, nº1 do Código Penal. Impugna-se a decisão proferida sobre matéria de direito – artº 412º, nº 2 do Cód. Proc. Penal -, por incorrecta interpretação dos elementos do tipo, decisão essa que assentou também em erro notório na apreciação da prova (artº 410º, nº 2, al. c) do mesmo diploma legal).

4 - Entende o 'Tribunal "a quo" que apesar de resultar demonstrado à saciedade que a viatura foi levada pela arguida e jamais devolvida, a verdade é que não existe qualquer prova nos autos da apropriação do veículo. Acrescenta que é manifesto que a arguida recebeu a viatura por título não translativo da propriedade, mas tal não é o bastante para inferir, de forma conclusiva, que a arguida se apropriou da mesma e a fez sua, já que como se vem entendendo, da simples não devolução não se retira a disposição de consumar o crime, apropriando-se o agente da coisa.

5 - Diz o Tribunal "a quo" que se impunha que se tivesse logrado fazer prova de uma intenção concreta de a arguida se comportar quanto à coisa como proprietária. Exigia-se a prova de, a título de exemplo, uma venda, uma ocultação, uma recusa expressa de restituição. Havendo apenas o silêncio por parte da arguida, tal não é bastante para concluir que, activamente, se recusou a restituir o veículo e a comportar-se como proprietária da coisa. E sem esta prova da apropriação da viatura existe falta de um elemento objectivo.

6 - Como é sabido, no crime de abuso de confiança, inicialmente o agente detém ou possui licitamente a coisa, a título precário ou temporário e vem posteriormente a alterar o título ao abrigo do qual a detinha ou possuía passando a dispor da coisa "animo domini" e já não em nome alheio. A consumação deste crime consiste exactamente nessa inversão do título da posse, passando o agente a fazer sua a coisa alheia, actuando com o propósito de a não restituir ou de lhe não dar o destino a que estava ligada.

7 - Mas, como refere Maia Gonçalves (in Código Penal Anotado, 1998, Editora Almedina, p.636) "não é licito tirar efeito de meras atitudes subjectivas, sem reflexos exteriores, ou seja da nula cogitatio"; assim, "o crime consuma-se quando o agente que recebe a coisa móvel por título não translativo da propriedade, para lhe dar determinado destino, dela se apropria, passando a agir animo domini, devendo porém entender-se que a inversão do título carece de ser demonstrada por actos objectivos, reveladores de que o agente já está a dispor da coisa como se sua fosse".

8 - Em suma: é pacífico que da simples não devolução da coisa não se pode retirar, automaticamente, a disposição de consumar o crime, apropriando-se o agente da mesma. Há que ser feita uma demonstração de uma intenção concreta de a arguida se comportar quanto à coisa, neste caso a viatura, como proprietária.

9 - Mas tal prova tem que ser feita com apelo às regras da experiência comum e aos padrões de normalidade, sob pena de se chegar a soluções jurídicas que não só violam a justiça material, mas também colocam a ordem jurídica e a ordem social de costas voltadas uma para a outra.

10 - A intenção de apropriação não se pode reduzir à prova da venda ou disposição da coisa, da sua manifesta ocultação ou descaminho ou da recusa expressa de restituição. Outros actos e omissões existem que demonstram uma intenção apropriativa, à luz das regras da normalidade.

11 - A motivação da arguida não se consubstanciou, tão só, na utilização da viatura para além do tempo contratado, daí retirando os consequentes benefícios económicos. Com efeito, uma coisa é utilizar indevidamente um veículo, para além dos termos acordados, e coisa distinta é apropriar-se ilegitimamente de uma viatura, sendo certo que os dados objectivos constantes do processo permitem fundamentar a verificação efectiva da segunda hipótese.

12 - No caso, foi dado como provado que, não obstante as diversas diligências realizadas pela queixosa, a arguida AG não procedeu, até à presente data, à entrega do veículo à queixosa e/ou a qualquer entidade policial.

13 - Já passaram 4 (quatro) anos desde o termo do contrato e não uns meros quatro meses. Quatro anos de ininterrupto desaparecimento do veículo, devia ser o suficiente para vencer qualquer dúvida razoável; tanto mais que a atitude furtiva de dissimulação e a subtracção dolosa a contactos, patenteadas pela arguida durante este longo hiato temporal, acabam por revelar um intuito apropriativo, tão ou mais enfático que uma expressa e declarada recusa de restituição.

14 - A viatura não foi apreendida por autoridade policial ou sequer abandonada ou deixada à sua sorte, em território nacional ou em território europeu, sendo certo que existe uma ordem de apreensão da mesma, difundida pelo espaço Schengen; cfr. se verifica pelo teor de fls. 13, 15 e 16 dos autos.

15 - A arguida tem nacionalidade italiana e a sua residência habitual situa-se em Itália, pelo que, o aluguer do veículo se inseriu notoriamente num quadro de estadia sazonal em Portugal. Essa distância geográfica entre o local de entrega da viatura e o centro de vida da arguida, não só facilita a actuação delituosa com intuitos apropriativos, como afasta qualquer tese de mero abuso de uso do veículo, pois se assim fosse, o mesmo teria sido simplesmente abandonado aquando do retorno da arguida ao seu país de origem e, sendo-o por via aérea, em zona aeroportuária ou adjacente, como sucede em tantos casos semelhantes.

16 - A não determinação do exacto destino último dado pela arguida ao veículo (continuação de utilização como se fosse a dona, venda, doação, introdução no mercado paralelo de viaturas, etc.), dado que este não foi até à data localizado, não se pode querer fazer equivaler a inexistência de prova quanto à sua efectiva apropriação indevida, pois que para a apropriação basta a não restituição da coisa, quando acompanhada de elementos objectivos, por acção ou por omissão, que sustentem a verificação do propósito de tal negativa de restituição se manter para o futuro, como o são a fuga do agente e a subtração continuada a todos os contactos do proprietário da coisa, sendo que o destino final da coisa é algo que apenas pertence às motivações internas do agente, uma vez investido, indevidamente, na qualidade de novo proprietário.

17 - Deve assim ser dado como assente que a arguida actuou com o conseguido objectivo de fazer seu o veículo da ofendida fazendo-se assim ingressar esse segmento fáctico, no elenco dos factos provados.

18 - Assim e tendo em conta a matéria dada como provada, nos termos porque se pugna, mostram-se preenchidos os elementos, quer objectivos, quer subjectivos, do crime de abuso de confiança, pº e pº pelo...

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