Acórdão nº 294/15.7T9ABF.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 07 de Maio de 2019

Magistrado ResponsávelCARLOS BERGUETE COELHO
Data da Resolução07 de Maio de 2019
EmissorTribunal da Relação de Évora

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora 1.

RELATÓRIO Nos presentes autos, de processo comum, perante tribunal singular, que correu termos no Juízo Local Criminal de Albufeira do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, o Ministério Público deduziu acusação contra NN, imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos arts. 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal (CP).

O assistente, JP, veio acompanhar a acusação e deduziu pedido de indemnização civil contra a arguida/demandada, peticionando o pagamento da quantia de €29.000,00, correspondente à quota-parte que lhe pertence, juros à taxa legal de 4% desde 14 de Junho de 2010 até 14 de Junho de 2016 que perfazem o montante global de €6.900,00 e juros acrescidos, honorários de advogado no valor de €2.500,00 e danos não patrimoniais no valor de €750,00.

A arguida apresentou contestação e arrolou testemunhas.

Alegou, em sua defesa, em síntese, que as despesas da falecida tia rondavam os €1.500,00 mensais, razão pela qual foi acordado, uma vez que esta estava a seu cargo, que o montante necessário para fazer face às despesas seria suportado pelo dinheiro dessa tia e, quando este faltasse, caberia à arguida e a seu irmão fazer face às mesmas, sendo que para o efeito, a certa altura, passou também pela alienação do património desta tia, razão pela qual foi efectuada a venda do imóvel em discussão nos autos, com o conhecimento e assentimento desta última, que veio a falecer uns dias antes da escritura de compra e venda, não sem antes, ainda em vida da mesma, ter sido realizado contrato-promessa. Admitiu, contudo, ter declarado na escritura que a tia se encontrava viva, facto que se deveu à ausência de conhecimentos jurídicos e desconhecimento das implicações das suas declarações.

Realizado julgamento e proferida sentença, decidiu-se: a) absolver a arguida NN da prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de burla qualificada; b) julgar totalmente improcedente, por não provado, o pedido de indemnização civil deduzido pelo assistente/demandante JP contra a arguida/demandada NN, absolvendo-a do mesmo.

Inconformados com tal decisão, o Ministério Público e o assistente interpuseram recursos, formulando as conclusões: - o Ministério Público: 1 - O Ministério Público recorre da douta sentença proferida nos autos a 07/12/2017, que absolveu a arguida NN da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217.º n.º 1 e 218.º n.º 2 al. a) do Código Penal.

2 - O Ministério Público não concorda com tal decisão, entendendo que a decisão proferida sobre a matéria de facto padece de contradição insanável entre matéria de facto dada como provada e não provada, pugnando pelo entendimento de que a factualidade que foi objecto de um juízo negativo deveria, pelo menos em parte, ter sido dada como provada, tendo a sentença incorrido ainda, além do vício supra referido, numa errada subsunção jurídica dos factos apurados pelo que em consequência a arguida deveria ter sido condenada pela prática do crime de que estava acusada, pois estavam preenchidos todos os elementos do tipo de crime em causa, muito em concreto a existência de prejuízo patrimonial na esfera jurídica de uma pessoa em concreto, ou seja, o assistente, herdeiro, a par de outros, da falecida MJC.

3 - No que concerne à alínea a) dos factos não provados, entendeu o Tribunal que a arguida desconhecia as consequências plenas do seu acto, ao omitir que a outorgante da procuração havia falecido, ou seja, não conhecia o conceito de caducidade de uma procuração.

4 - Salvo melhor opinião, o Ministério Público entende que esse facto em concreto dado como não provado, decorre natural e logicamente dos factos dados como provados na sentença, e, nessa medida, deveria ter sido dado como provado, verificando-se, por conseguinte, o vício de contradição insanável previsto na alínea b) do nº 2 do art.º 410º do C.P.P..

5 - Efectivamente, além do mais, ficou provado que a arguida actuou com conhecimento e vontade de omitir o pretérito falecimento da tia perante o Sr. Notário e o comprador, quando questionada directamente sobre o facto, visto que queria concluir o negócio e a escritura de venda do imóvel, por forma a receber o preço acordado, bem sabendo que tal estava errado. Na realidade no facto provado 9) foi dado como assente que”…A arguida apresentou a procuração como se fosse a sua legítima portadora, bem sabendo MJC havia morrido e que já não a podia utilizar para efectuar a referida compra e venda do imóvel supra descrito, nem para se apropriar dos valores provenientes de tal venda...”.

6 - Ou seja, dando o Tribunal como provada a factualidade supra, não poderia ter deixado de dar como provado que a arguida sabia que a procuração caducara com a morte da outorgante. Em suma: o facto dado como provado em 9), acaba por ser uma explicação de senso comum para o conceito de caducidade de uma procuração, conceito esse que, mesmo sem rigor jurídico, não escapa à compreensão do Homem médio, mais ainda da arguida que tem formação superior.

7 - Com efeito se foi dado como provado que a arguida sabia que não podia utilizar a procuração após a morte da tia, nomeadamente, para concretizar a venda e receber o preço, não poderia ter sido dada como não provada a consciência e volição do uso de uma procuração caducada. Os factos julgados como provados e como não provados colidem inconciliavelmente entre si e tal incompatibilidade resulta evidente da análise do próprio texto da decisão recorrida.

8 - Consequentemente, e porque a factualidade dada como não provada decorre lógica e naturalmente dos factos dados como provados, deveria ter sido considerado provado que “…a arguida sabia que a procuração caducara com a morte da outorgante…”. Ao ter decidido de modo diverso, a sentença evidencia o vício previsto no art.º 410º nº2, alínea b) do C.P.P., cuja sanação se impõe e ora se suscita, devendo em, consequência determinar-se que tal facto não provado se desloque para os factos provados, passando assim a integrar a matéria de facto provada a subsumir juridicamente.

9 - A Mma. Juiz “a quo” considerou que os factos dados como não provados em b) e c) resultam da forma como se alcançou a noção de verdadeiro prejudicado patrimonialmente com a conduta da arguida que, contrariamente ao sustentado pelo assistente, não foram os herdeiros, mas a herança em si, indivisa e aberta por óbito de MJC.

10 - Ora, no entender do Tribunal, efectivamente prejudicada foi a herança, à data dos factos ainda indivisa, e não o herdeiro, ou pelo menos, não na posição isolada em que se coloca.

11 - Segundo o Tribunal, o tipo de crime de burla exige que o prejuízo patrimonial seja causado a uma pessoa (singular ou colectiva), algo que uma herança indivisa não é, sendo que, no limite, só a herança jacente revestirá personalidade judiciária. Assim sendo, na ausência de prejuízo patrimonial numa pessoa, como o tipo determina, conclui o Tribunal que falecem os pressupostos para considerar a existência de um crime de burla, remanescendo apenas uma questão de índole civilista, de prestação de contas a uma herança, de inventário por morte de um parente da arguida e do assistente, de eventuais efeitos de uma venda de bem alheio e que é nessa sede que devem resolvidos.

12 - Chama-se à colação o vertido no Ac. do TRE de 26/04/2016, proc. 90/13.6TASRP.E1, relator Dr. João Amaro, disponível em www.dgsi.pt, que se pronunciou sobre um caso em que o recorrente pugnava que, estando em causa a prática de um crime contra o património (dano), o queixoso, que mais não era do que herdeiro de uma herança indivisa, não podia considerar-se “ofendido”, isto na medida em que o queixoso não era o titular dos interesses que a lei directamente quis proteger com a incriminação.

13 - Nesse acórdão, de forma certeira diz-se, além do mais, “…Com o devido respeito, discorda-se inteiramente deste entendimento, que não atenta, devidamente, ao conteúdo das normas e dos princípios do direito civil (substantivo) aplicáveis ao caso, e confunde a personalidade e a capacidade judiciárias da herança indivisa (representada pelo cabeça-de-casal) - em processo civil - com a legitimidade de um co-herdeiro para se constituir assistente em processos que visem crimes praticados contra os bens da herança…”.

14 - Mais se acrescenta nesse douto acórdão que “…É evidente que, como bem se escreve no Ac. do S.T.J. de 17-04-1980 (in BMJ 295-298), o “domínio e posse sobre os bens em concreto da herança só se efetivam após a realização da partilha. Até aí, a contitularidade do direito à herança significa direito a uma parte ideal, não de cada um dos bens que compõem a herança”. Só que, se é assim, como é, cada um dos herdeiros, mesmo na indivisão, goza de um direito sobre a totalidade dos bens (é contitular deles)… A herança é uma universitas juris com determinada afetação de bens, e os herdeiros, enquanto se não fizer a partilha, são titulares de um direito (indiviso, obviamente) sobre esses bens. Assim sendo, estando alguém a destruir ou danificar esses mesmos bens ou parte deles, é absurdo, salvo o devido respeito, afirmar-se que um dos co-herdeiros não se pode constituir assistente no respetivo processo-crime, por não ser ofendido, isto é, na expressão constante do artigo 68º, nº 1, al. a), do C. P. Penal, não ser titular “dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação”…Tudo se passa, pois, como se os herdeiros tivessem o domínio e a posse dos bens (que, em concreto, lhes foram atribuídos na partilha) desde o momento em que se abre a sucessão… Neste sentido, e com o supra referido alcance, os herdeiros são titulares dos bens da herança, ainda que esta esteja indivisa, e, por isso, sendo o objeto do dano, na versão do queixoso, bens da herança de que também é herdeiro (além de ser cabeça-de-casal), é...

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