Acórdão nº 1525/19.OT9STB.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 03 de Dezembro de 2019

Magistrado ResponsávelNUNO GARCIA
Data da Resolução03 de Dezembro de 2019
EmissorTribunal da Relação de Évora

RELATÓRIO No processo de recurso de contra-ordenação oriundo do juízo local de Setúbal – J4, foi proferida decisão por despacho, julgando improcedente o recurso interposto por NM da decisão da A.N.S.R. que determinou a cassação da sua carta de condução, por virtude de o mesmo registar duas condenações em pena acessória de proibição de conduzir, na sequência da prática de dois de crimes rodoviários.

Inconformado com tal decisão, recorreu o mesmo, tendo terminado as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões: 1) Decidindo manter inalterada a decisão administrativa de cassação do título de condução, proferida pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (adiante designada ANSR), com fundamento na aplicação do disposto no Art.º 148º, nº 2; n.º4, alínea c); nº 10 e n.º 11 do Código da Estrada (adiante designado CE), a douta Sentença, viola os artigos 18º nº 2; 32º nº 4, 5, 7 e 10; 29º, n.º 5; 30º, n.º 4; 27º, n.º 2 e 202º, da Constituição da Republica Portuguesa, (adiante designada CRP), uma vez às condutas submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na CRP ou os princípios nela consignados (cfr. Art.º 204º da CRP).

2) No plano jurídico substantivo resulta do Art.º 148º, nº 2; n.º4, alínea c); nº 10 e n.º 11 do Artigo 148º do CE, que a perda de pontos decorre direta e automaticamente de condenação em pena acessória de proibição de conduzir, independentemente da coima concretamente aplicada ou do grau de culpa concretamente apurado, bem como da perda da totalidade de pontos decorre a cassação do título de condução.

3) Não pode resultar da interpretação e aplicação das normas do Art.º 148º do CE que o trânsito em julgado das decisões penais a que o mesmo se refere, tenha o desiderato da aceitação das consequências legais automáticas da perda de pontos, já que as decisões penais bastam-se em si mesmas, tendo uma finalidade em si mesmas.

4) Qualquer que seja a natureza jurídica instituída no regime da Carta por pontos, introduzido pela Lei 116/2015 de 28/08 - sanção acessória, medida de segurança ou verificação de uma condição negativa do direito, - a aplicação do sistema acontece em violação do princípio consignado no Artigo 2º da CRP, já que a decisão da ANSR, de natureza administrativa, em processo autónomo, decorre diretamente da soma das estritas infrações que a determinam.

5) Discute-se na jurisprudência a natureza jurídica da cassação do título de condução prevista no Art.º 148º do CE, em que, para numa vertente atende-se à Lei e qualifica-se a mesma como sanção acessória, cfr. Ac. T.R.P. de 22/04/2015, Processo: 73/13.6PCVCD.P1 in www.dgsi.pt; para outra vertente, como a defendida no Acórdão citado na Sentença em crise - Ac. T.R.P. de 09/05/2018, Proc. 644/16 in www.dgsi.pt, - é entendida como uma medida de segurança e ainda para outra vertente, conforme jurisprudência aposta no Ac. do T.R.P. de 30/04/2019, Proc. 316/18.0T8CPV.P1 in www.dgsi.pt, uma condição negativa do direito.

6) Ainda que se discuta a qualificação jurídica da cassação do título de condução, com fundamento no disposto no nº4 alínea c), nº10 e n.º11do Art.º 148 do CE, dúvidas não podem restar que, a decisão administrativa do procedimento autónomo decorrente da subtração automática de pontos, constitui-se como uma sanção que pune os infratores nos termos em que o mesmo artigo o determina.

7) A aplicação ao caso concreto da alínea c) do nº 4, n.º 10 e n.º 11 do artigo 148º do Código da Estrada, atento o efeito automático da perda de pontos, reveste uma importância determinante, já que este constitui-se como o único fundamento para uma decisão administrativa decorrente de um procedimento administrativo que reveste natureza manifestamente sancionatória, sendo certo que a autorização permissiva, expressa na licença de condução, a partir da sua titularidade, inscreve-se na esfera do seu titular como um direito, com limitações e obrigações que também não podem deixar de respeitar a Lei geral e a Lei fundamental (Art.º 121º CPA e CRP).

8) Atentos os efeitos da cassação da licença de condução cfr. N.º nº11 do Art.º 148º do CE, o sistema dos pontos não terá essencialmente um sentido claramente pedagógico, de satisfação de necessidades de prevenção, fundamentalmente de ressocialização, Ac. TRP, de 22/04/2015, Processo: 73/13.6PCVCD.P1 in www.dgsi.pt) já que, atenta a manifesta necessidade no dia a dia, de deslocações utilizando veículo automóvel, o que se agrava quando o titular da licença de condução tem a condução de veículos por profissão, como é o caso do ora Recorrente evidenciar o contrário, revelando assim o sistema antes um sentido repressivo, entendido como uma forma de pedagogia para satisfazer necessidades de prevenção, o qual foi abandonado em Portugal, em abril de 1974.

9) A (in)constitucionalidade das normas do Art.º 148.º do CE, por alegada violação do Art.º 30º nº 4 da CRP, foi conhecida no Acórdão do TRP de 30/04/2019, Proc. 316/18.0T8CPV.P1, in www.dgsi.pt, este sustentando o seu fundamento no Acórdão que serviu de guia à Sentença, o qual conclui a propósito do sistema por pontos do CE, que não estamos perante a perda de um direito adquirido, mas perante a verificação de uma condição negativa de um direito.

10) No entanto, na esfera do seu titular, ainda que a lei determine que o mesmo esteja sujeito a uma condição negativa relativa ao bom comportamento rodoviário, o mesmo tem de respeitar a Constituição, mormente no referente à restrição de direitos, como determina o nº2 do Art.º 18º da CRP.

11) Assim, a norma prevista na alínea c) do nº 4, Nº 10 e N.º 11 do CE deve ser considerada inconstitucional, quando aplicada no sentido de ser fundamento bastante da cassação do título de condução a verificação de uma condição negativa, já que os efeitos decorrentes da cassação são manifestamente sancionatórios, não revestindo qualquer natureza pedagógica, de satisfação de necessidades de prevenção, muito menos de ressocialização, bem como não se limitam ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, por violação do nº2 do Art.º 18º da CRP.

12) O juízo prévio de inaptidão para o exercício da condução assente fundamentalmente no número das condutas só é admissível salvaguardados que esteja a estrutura acusatória do processo, as garantias de defesa e o controlo jurisdicional, donde resulte uma decisão final com respeito pelas normas constitucionais, sendo que, interpretando-se as normas do Art.º 148º do CE, no sentido em que o legislador prescreveu a cassação da licença de condução como uma medida de segurança, o processo nos termos em que o determina o mesmo artigo, não respeita as normas constitucionais, designadamente Art.º 20º); nº 1 e n.º 4 do Art.º 30º; nº 1 e nº 10 do Art.º 32º e nº2 do Art.º 202º, todos da CRP.

13) A decisão de cassação do título de condução a que se refere a alínea c) do nº4 do Artigo 148º do C.E. ordenada em processo autónomo pela ANSR, iniciado após a ocorrência da perda total de pontos atribuídos ao condutor e bastando-se com a sua verificação, sem mais, não respeita a estrutura acusatória do processo, que não existe, como não se prevê qualquer fase ou procedimento que tome em consideração qualquer elemento subjetivo, não estando garantida a defesa e o controlo jurisdicional da mesma, o que é atentatório de um efetivo direito de audiência e defesa, princípio constitucional expresso no Art.º 32º, nº 10 da C.R.P.

14) Ainda que se aceite a decisão administrativa de cassação de licença de condução como uma medida de segurança, só se aceita como admissível se estiver salvaguardada a estrutura acusatória do processo, as garantias de defesa e o controlo jurisdicional no procedimento autónomo a que alude o nº10 do art.º 148º, donde resulte uma decisão final com respeito pelas normas constitucionais Art.º 18º, nº 2 e Art.º 32º, nº4, nº 5, nº7 e nº10 da CRP..

15) Apenas uma eventual conduta material que processualmente venha a ser determinada, poderá constituir-se como fundamento para uma decisão de cassação de licença de condução, a qual pressupõe um juízo autónomo com base em critérios legais, aquilatada no caso concreto, a fim de se averiguar da ponderação da necessidade da perda de um direito, não fazendo a Lei depender de qualquer elemento subjetivo, tal decisão de cassação da Licença de condução é manifestamente atentatória de um efetivo direito de audiência e defesa, princípio constitucional expresso no Art.º 32º, nº 10 da C.R.P 16) Assim, deve a norma prevista na alínea c) do nº 4 do art.º 148º , Nº 10 e N.º11 do CE ser considerada inconstitucional quando aplicada no sentido de ser fundamento bastante da cassação do título de condução a ocorrência da perda da totalidade de pontos, devendo apenas tal constituir-se como um reflexo ou um índice da gravidade das infrações cometidas, respeitando-se a estrutura acusatória do processo, o princípio do contraditório, garantias de defesa e controlo jurisdicional efetivo. uma decisão final com respeito pelas normas constitucionais: Art.º 18º, nº 2 e Art.º 32º, nº4, nº 5, nº7 e nº10 da CRP 17) Existe uma evidente correlação entre a interpretação dos efeitos jurídicos das normas do Art.º 148º do CE e o entendimento da natureza jurídica da cassação da licença de condução determinada nos termos do mesmo artigo, sendo que na jurisprudência recente transposta para o Acórdão do TRP de 30/04/2019, Proc. 316/18.0T8CPV.P1, entende-se dever considerar-se a vertente da jurisprudência do Tribunal Constitucional, não diretamente relacionada com o regime do artigo 148.º do Código da Estrada, mas que diz respeito à caducidade da licença. (Vide Acórdão n. 461/2000, in www.tribunalconstitucional.pt, reafirmado nos acórdãos nºs 574/2000, 45/2001 e 472/2007, in www.tribunalconstitucional.pt.

18) A analogia efetuada pelo Acórdão do TRP de 30/04/2019, Proc. 316/18.0T8CPV.P1 a partir da qual se conclui pela interpretação do Art.º 148º do CE no sentido de na decisão de cassação da...

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