Acórdão nº 199/19.2GAFAL-A.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 03 de Dezembro de 2019

Data03 Dezembro 2019

Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: I - RELATÓRIO.

Nos autos de Inquérito nº 199/19.2GAFAL, que correm termos nos Serviços do Ministério Público junto do Juízo de Competência Genérica de Ferreira do Alentejo, e mediante pertinente despacho (datado de 01-10-2019), o tribunal indeferiu um pedido de obtenção de dados de localização celular apresentado pelo Ministério Público.

Inconformado com tal decisão, o Ministério Público interpôs recurso, apresentando as seguintes (transcritas) conclusões: “1. Vem o presente recurso interposto do despacho de folhas 41 e 42 dos autos, o qual indeferiu o pedido de obtenção de dados de localização celular, formulado pelo Recorrente, despacho esse que se fundou, como argumento central, na alegada inexistência de suspeito identificável nos autos.

  1. Os dados de localização celular são meros registos retirados das células que compõem uma rede de comunicações, e que permitem evidenciar quais telefones estiveram abrangidos pela cobertura dessa célula de rede, sendo gerados independentemente da utilização desses telefones para a realização de quaisquer comunicações.

  2. Tais dados permitem assim, apenas e só, obter algumas informações aproximadas (aproximadas porque a área de cobertura de cada célula é geograficamente significativa) sobre o paradeiro e percurso do visado.

  3. A obtenção de dados de localização celular não implica qualquer restrição do direito à inviolabilidade das comunicações, pelo singelo motivo de que os dados em causa não respeitam a quaisquer comunicações, existindo antes mera restrição dos direitos à intimidade, privacidade e desenvolvimento da personalidade, na medida em que os dados em causa permitem perceber onde esteve alguém num hiato temporal e que percurso realizou.

  4. Essa restrição atinge uma dimensão pouco significativa, seja pela abrangência geográfica da cobertura de cada célula (que permite apenas saber que o visado esteve nessa área territorial, mas não o local exato dentro dessa área), seja por ser irrisória quando comparada com as restrições a direitos fundamentais operadas por outros meios de obtenção de prova não sujeitos a regimes tão rigorosos, como sejam as vigilâncias policiais ou as imagens de videovigilância.

  5. Daí que se possa também afirmar que a afetação de pessoas estranhas à investigação é também pouco significativa, além de que os dados relativos a tais pessoas, que serão relativamente fáceis de distinguir dos dados dos suspeitos (que terão um comportamento telefónico/celular claramente peculiar), serão sempre suprimidos, atento o disposto no art. 188.º, n.º 6, do Código de Processo Penal, aplicado por remissão do art. 189.º, n.º 2, do mesmo diploma.

  6. Mesmo no plano das interceções telefónicas, existe uma afetação de terceiros sem relação com a investigação, mormente todos aqueles que contactem com o visado ou que utilizem fortuitamente o telefone sob escuta, afetação essa que é muito mais intensiva que os dados de localização celular, e que ainda assim não tem impressionado a jurisprudência ou a doutrina.

  7. O legislador processual penal estabeleceu um catálogo fechado de visados pela obtenção de dados de localização celular, entre os quais se conta o suspeito, na aceção do art. 1.º, alínea e), do Código de Processo Penal, a qual foi densificada pela jurisprudência como correspondendo a um suspeito identificável.

  8. A identificabilidade aponta para uma suscetibilidade futura, e dotada de razoável previsibilidade, de obter uma identificação positiva do agente do crime, a qual não se basta com atentar nos dados identificativos já conhecidos, havendo que considerar também os dados identificativos que previsivelmente poderão vir a ser obtidos com outras diligências a realizar, nas quais se inclui a própria obtenção de dados de localização celular.

  9. Dito de outro modo: se, da conjugação com os dados identificativos já obtidos nos autos com aqueles que previsivelmente possam vir a ser obtidos com os dados de localização celular, for possível, com razoável expectativa, antever que será possível chegar a uma identificação de um suspeito, então é forçoso concluir que o suspeito será identificável.

  10. Não entender desta forma, considerando que apenas poderão relevar os dados identificativos já apurados nos autos, levará o aplicador do Direito a incorrer em manifesta contradição: com efeito, admitirá, por um lado, que não é exigível um suspeito identificado, mas antes identificável; mas, por outro lado, considerará apenas os dados identificativos presentes para aferir uma realidade potencial e futura, sem ponderar os desenvolvimentos possíveis da investigação.

  11. No caso dos autos, o Tribunal a quo não levou em consideração todos os dados identificativos presentes já conhecidos da investigação, visto que o relatório tático de inspeção ocular menciona ainda que, da análise às imagens de videovigilância de posto de combustível situado a poucos metros do local do furto, logrou-se apurar que, entre as 23h23 e as 00h51, período temporal que abrange o momento em que foi ativado o alarme anti-intrusão do local objeto do furto, passaram pela zona apenas três veículos automóveis, identificáveis pelos respetivos modelos.

  12. Daí que, além das características de vestuário apuradas, haja que ter ainda em consideração que os agentes do crime se deslocaram num dos veículos supra referidos, que o fizeram no hiato temporal compreendido entre as 23h23 e as 00h51, e cujo percurso terá, necessariamente, implicado uma aproximação do local do furto e um posterior afastamento do mesmo nesse hiato temporal, todo um circunstancialismo que tem um potencial diferenciador dos agentes do crime quanto a demais sujeitos (ou seja, um potencial identificativo).

  13. Além disso, o despacho recorrido omitiu a análise dos dados identificativos que poderão ser obtidos com os dados de localização celular, e que, conjugados com os já constantes dos autos, poderão conduzir a uma identificação positiva dos agentes do crime.

  14. É que, o local do furto, como se alcança das fotografias de satélite que acompanham o levantamento celular realizado pelo OPC (folhas 34), corresponde a instalações agroindustriais sitas em local ermo, nas proximidades da localidade de ----- a qual tinha uma população de uma população de 1.346 (mil trezentos e quarenta e seis) habitantes, segundo os últimos censos.

  15. Acresce referir que o furto ocorreu na noite de 28 para 29 de Agosto de 2019, ou seja de quarta-feira para quinta-feira, hiato temporal em que, por regra, são em número muito diminuto (perto do inexistente) as pessoas que circulam nas imediações dessas instalações industriais ou até na localidade ….

  16. Dadas essas circunstâncias temporais e geográficas, a obtenção de dados de localização celular permitirá, com um nível bastante de certeza, a identificação dos suspeitos, porquanto serão certamente os únicos indivíduos que revelarão um padrão de movimentação entre os locais relevantes da investigação no referido hiato temporal, sendo facilmente discerníveis dos demais afetados pela diligência, pelo seu peculiar comportamento telefónico/celular.

  17. A conjugação dos dados identificativos já obtidos nos autos, com aqueles que previsivelmente poderão vir a ser obtidos com os dados de localização celular, permitirá assim, com uma probabilidade muito elevada, uma identificação positiva dos agentes do crime, razão pela qual é forçoso concluir que os mesmos correspondem à noção de suspeitos identificáveis, podendo assim ser visados pela diligência pretendida pelo Recorrente.

  18. Inexistem quaisquer outras diligências probatórias com aptidão para a descoberta da verdade material, razão pela qual o indeferimento da obtenção de dados de localização celular equivale a uma condenação da investigação ao término imediato, com prolação...

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