Acórdão nº 304/20.6JAFAR-B.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 12 de Janeiro de 2021

Magistrado ResponsávelNUNO GARCIA
Data da Resolução12 de Janeiro de 2021
EmissorTribunal da Relação de Évora

ACORDAM OS JUÍZES QUE INTEGRAM A SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA RELATÓRIO No âmbito do procº 304/20.6JAFAR foi, entre outros, o arguido F… sujeito a primeiro interrogatório judicial e no final do mesmo foi-lhe aplicada a medida de coacção de prisão preventiva

Inconformado com tal decisão, o arguido recorreu tendo terminado a sua motivação de recurso com as seguintes conclusões: “A. O ora Recorrente foi detido em 15 de Setembro de 2020 à ordem dos presentes Autos, e foi presente a 1.º interrogatório judicial de arguido em 16 de Setembro de 2020, tendo sido fixada pelo Tribunal a quo a aplicação da medida de coação de prisão preventiva

  1. O despacho de que ora se recorre decidiu aplicar a medida de coação de prisão preventiva ao ora Recorrente, sustentando, na generalidade a aplicação da medida de coação, na indicação da existência de perigo de perturbação de inquérito, nos termos do disposto na al.b) do artigo 204.º e, ainda, a existência dos perigos de continuação da actividade criminosa e perturbação da ordem e tranquilidade públicas, nos termos do disposto na al.c) do artigo 204.º, todos do Código do Processo Penal

  2. O ora Recorrente foi detido fora do âmbito do flagrante delito, tendo sido inquirido na qualidade de testemunha e posteriormente constituído Arguido, não tendo qualquer participação direta nos fatos objeto do processo em apreço

  3. O ora Recorrente pertence a Órgão de Policia Criminal, designadamente é … do …, capitania do Porto de …, estando adstrito ao cumprimento das sua atividade profissional, entre outros, no Porto de …, concelho de …, no âmbito da sua atividade, o ora Recorrente, como polícia de especialidade, executa manobras de policiamento, fiscalização, vigilância e de investigação, nas áreas de jurisdição da …, tendo estado no local da presumível descarga de produto estupefaciente aproximadamente 5.00 horas antes das duas primeira detenções originadas nos presentes Autos, não mais tendo qualquer contacto com as circunstâncias de lugar dos factos

  4. Inexistem quaisquer indícios que possam catalogar uma hipotética (mas de todo inverosímil!) autoria dos fatos ilícitos de que ocupam os presentes autos pelo aqui Recorrente, designadamente escutas telefónicas, buscas domiciliárias ou outras, apreensões ou qualquer outros elementos que indiciem a pratica dos factos ilícitos pelo ora Recorrente

  5. O principio com consagração constitucional da presunção de inocência e do in dúbio pro reo não é para ser aplicado regradamente apenas na fase de julgamento, em recurso ou pelo TEDH, antes deverá ser aplicado em todas as fases do processo penal desde a aquisição da noticia do crime até à prolação da Sentença, é evidente e manifesto que de boa-fé inexiste qualquer crime que o arguido, ora Recorrente, esteja fortemente indiciado e de que se ocupe os presente Autos, não se estando preenchidos os requisitos legais de que depende a aplicação de medida de coação de prisão preventiva

  6. Inexistindo qualquer elemento indiciário da Autoria, pelo ora Recorrente, da pratica do crime de trafico de estupefacientes ou qualquer outro, aplicar a medida de coação de prisão preventiva a um cidadão socialmente e familiarmente integrado que não tem qualquer antecedentes criminais pela pratica de crime da natureza dos fatos de que se ocupam os presentes Autos ou de qualquer outra, …, por alegado crime de trafico de estupefacientes, apenas com a objetiva indicação de que o ora Recorrente se deslocou à … em …, largas horas antes averiguando ali 3 (três) indivíduos que estariam a colocar uma rede de pesca entre pontões é, com o devido respeito que é muito (!), uma grosseira e gritante violação do principio de inocência, proporcionalidade e adequação que devem nortear a fixação de medidas de coação num Estado de Direito democrático

  7. O ora Recorrente negou a autoria dos factos, na sua totalidade, pugnando pela sua inocência, circunstância que impunha ao Tribunal a quo, a ponderação objetiva e casuística de outros eventuais elementos indiciários elencados pela linha de investigação e a aplicação ponderada de uma medida de coação proporcional e adequada, o que não logrou suceder, na medida em que, como evidente, a formulação da conclusão de que o ora Recorrente atuou em vista facilitar o “desembarque e a fuga de um dos suspeitos a troco de quantias monetárias” é, no mínimo, questionável e uma violação grosseira do principio da inocência e do principio do in dúbio pro reo que não encontra amparo e sustentação em qualquer elemento, per se, apto a justificar a aplicação da medida de coação de prisão preventiva ao ora Recorrente

    I. A presunção de que a indiciação do ora Recorrente quanto à participação no crime em apreço, sem que resulte de indícios sustentáveis, credíveis e inequívocos à luz da experiencia comum, que sustentem o juízo constante do despacho recorrido, é apto a violar as regras que presidem à livre apreciação da prova, na medida em que os elementos ali constantes não nos permitem sustentar a presunção de culpabilidade do ora Recorrido, tal-qualmente se mostra quase forçosamente sustentado no despacho recorrido pelo fato do ora Recorrido exercer a funções de …

  8. A formulação assente no despacho recorrido do preenchimento do perigo de continuação de atividade criminosa, salvo o devido respeito que é muito (!), não passa de nada e coisa nenhuma, concretizando apenas formulas genéricas sem sustentação aos elementos probatórios dados a conhecer ao Recorrente, na medida em que o ora Recorrente não tem qualquer antecedente criminal por crime da mesma natureza do ilícito de que se ocupa os presentes Autos e de qualquer outro, ora o facto de se considerar (o que nós não concebemos!) que “resulta das regras da experiência e da normalidade da vida que a prática do crime em causa, pela facilidade que origina na obtenção de lucro, tendência a sua prática reiterada no tempo”, carece de sustentação factual o preenchimento daquele requisito aos elementos probatórios concretamente recolhidos

  9. A sustentação do preenchimento do perigo de continuação da atividade criminosa com a mera indicação genérica de que a pratica deste tipo de crime origina a ”facilidade de lucros” a servir, per se, para se considerar preenchido aquele requisito, serviria para sustentar o preenchimento de continuação de atividade criminosa em qualquer outro processo cujo objeto fosse o ilícito por trafico de droga

    L. Na ausência de indícios, de factualidade e de meios de prova que sustentem a existência dos perigos ora enumerados no despacho recorrido, designadamente o perigo de continuação da atividade criminosa, então o juízo de existência destes perigos referidos no despacho recorrido para a aplicação da medida de coação de prisão preventiva não estão fundamentados pelas circunstâncias de facto, pela personalidade do arguido , o que viola o artigo 193.º n.º1 e o artigo 204.º c) do Código de Processo Penal

  10. Sendo a aplicação da medida de coação de prisão preventiva a ultima ratio, cuja aplicação carece do preenchimento dos requisitos vertidos nas alíneas a), b) ou c) do artigo 204.º do Código do Processo Penal, não nos restam dúvidas de que inexiste nas motivações do despacho de que ora se recorre fundamentação bastante para a aplicação da medida de coação da prisão preventiva em detrimento de qualquer outra medida de coação eventualmente aplicada ao ora Recorrido, sendo, consequentemente desadequada das exigências cautelares que o caso requer, a desconsideração da suficiência e adequação de medida de coação não privativa da liberdade do ora recorrente

  11. A consideração de que o ora Recorrente é … para, per se, sustentar o “perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas”, na medida, sem mais de que “era particularmente expectável não só bom comportamento criminal, como o contributo activo para o bom cumprimento da lei pela sociedade”, é no mínimo uma conclusão questionável à luz dos inexistentes indícios recolhidos na investigação e que sustentem a autoria pelo ora Recorrente dos fatos ilícitos de que se ocupam os presentes Autos

  12. Concretiza uma preocupante e não menos grosseira violação do princípio da igualdade, a mera consideração de que o facto do ora Recorrente exercer, aliás, sublinhe-se (!), há mais de 20 anos as funções de …, seja apto a sopesar, por si e sem mais, a tese de que se encontra preenchido o “perigo de perturbação da ordem e tranquilidade pública”, sendo que o ora Recorrente dispõe de uma vida social, familiar e laboral estável, vivendo recatadamente com a sua esposa e com o seu filho de 19 anos de idade, mostrando-se um bom homem de família, bom pai e bom esposo

  13. A perturbação da ordem e tranquilidade pública é, por cumulo das aberrações o nosso sistema jurídico, na sua aceção adjetiva, permitir a libertação de condenados para baixar a população prisional e, desta forma, reduzir a propagação, por contágio, da situação epidemiológica provocada pelo coronavírus Sars-Cov-2, agente causador da doença Covid-19, e autorizar prisão preventiva de inocente(s), não condenado(s), aliás, sublinhe-se (!), nem tão-pouco acusado(s) da prática de qualquer crime, ademais quando a perturbação da ordem e da tranquilidade públicas deve ser entendido como reportando-se ao previsível comportamento do arguido e não ao crime por ele indiciariamente cometido e à reacção que o mesmo pudesse gerar na comunidade

  14. Perante a ausência de indício da pratica pelo Recorrente dos ilícitos de que se ocupam os Autos, a aplicação de medida de coação não privativa da liberdade, ainda que cumulável com outra que proibisse o contacto com os demais arguidos, testemunhas e participação, por qualquer forma, da investigação, mostra-se adequada para obviar aos assinalados perigos, desde logo tendo em conta o modus operandi vertido nos Autos, pelo que se conclui a ausência...

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