Acórdão nº 2/10.9YEADV.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 16 de Maio de 2017

Magistrado ResponsávelJOÃO AMARO
Data da Resolução16 de Maio de 2017
EmissorTribunal da Relação de Évora

Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: I - RELATÓRIO Nos autos de Processo Comum (Tribunal Singular) nº 2/10.9YEADV, da Comarca de Beja (Beja - Instância Local - Secção Criminal - Juiz 1), após audiência de discussão e julgamento, foi decidido nos seguintes termos: “Pelas razões de facto e de direito supra expostas, decido julgar a pronúncia improcedente, por não provada, e, em consequência, absolver as arguidas A e M da prática de um crime de intervenção e tratamento médico com violação das leges artis, p. e p. pelo artigo 150º, nº 2, do Código Penal.

Sem custas quanto à parte criminal”.

* O Ministério Público interpôs recurso da referida decisão absolutória, apresentando as seguintes (transcritas) conclusões: “1ª - Vem o recurso interposto da sentença proferida no âmbito do Processo Comum Singular nº 2/10.9YEADV, que absolveu as arguidas A. e M. da prática, em autoria material, de 1 (um) crime de Intervenções e Tratamentos Médico-Cirúrgicos, p. e p. pelo art. 150º, nº 2, do Cód. Penal, com fundamento na ausência de prova do seu tipo subjetivo.

  1. - Invoca-se a existência do vício da contradição insanável da fundamentação de facto, entre a fundamentação de facto e de direito e entre a fundamentação (global) e a decisão de absolvição; o incorreto julgamento da matéria de facto quanto ao elemento subjetivo do crime imputado, bem como a suficiência dos factos provados pata preencher o tipo do art. 137º do Cód. Penal (Homicídio Negligente) e a correspondente punição das arguidas.

  2. - A contradição entre o facto provado em 14) e o não provado sob a letra E) é evidente e ostensiva, que só pode filiar-se em descuido na composição do texto, sem que tenha havido o cuidado de proceder à sua leitura final saneadora e harmonizadora.

  3. - Quanto à contradição entre a fundamentação e a decisão, basta salientar que se as duas médicas, ao não valorizarem o quadro clínico de MF; ao não decidirem, de acordo com o quadro clínico revelado pela EDA e a boa prática médica aconselha, o seu internamento no serviço de cirurgia, e ao lhe darem alta clínica sem que o seu estado de saúde o aconselhasse, violaram as leges artis e criaram um perigo para a vida e para a integridade física da doente, é inexorável a conclusão de que não podem ter agido sem dolo eventual, por pretensa insuficiência probatória do elemento volitivo do tipo subjetivo de crime em causa (como o Mmº Juiz a quo concluiu).

  4. - É impossível que, in casu, não se detete aqui um dolo eventual das arguidas, na medida em que estas sabiam que não estavam a atuar como deviam e sabiam também que dessa atuação poderiam decorrer vários perigos para a vida, corpo ou para a saúde da doente, mas nada fizeram, conformando-se com essa possibilidade.

  5. - Ao não atentar nesta impossibilidade, evidente para nós e para o homem médio, o Mmº Juiz a quo incorreu numa contradição insanável ao nível da fundamentação de facto e de direito quanto ao elemento subjetivo do tipo incriminador, vício que inquinou todo o seu raciocínio, argumentação, e, consequentemente, a própria decisão de absolvição.

  6. - Para a hipótese do invocado vício [contradição insanável entre a própria fundamentação e entre esta e a decisão] não colher, não pode deixar de se invocar também aquilo que consideramos ser o incorreto julgamento que foi feito da matéria de facto fixada quanto ao elemento subjetivo do crime imputado às arguidas.

  7. - Para além de a própria sentença assumir que a vontade dolosa de violar as leges artis e de criar perigo para a vida ou grave perigo para o corpo ou saúde da doente não existiu, mas apenas uma conduta meramente negligente do ponto de vista subjetivo, parece claro que o juízo determinante da absolvição das arguidas não se ajusta, de todo em todo, aos dados da experiência comum, à normalidade do acontecer, à previsibilidade inerente à vida comunitária, tal como o homem médio a antecipa.

  8. - Em face da prova produzida (parecer médico, declarações das arguidas e depoimentos dos médicos inquiridos), conjugada com as regras da experiência comum, impunha-se que o tribunal a quo decidisse diferentemente quanto aos factos que considerou não provados em A) e B).

    Por isso, considera-se estar provado que as arguidas, ao violarem as leges artis nos termos fixados na sentença (maxime 27 dos factos provados), admitiram como possível que daí pudesse resultar uma situação de sério perigo para a vida ou integridade física de MF, abstendo-se de adotar os atos médicos adequados a removê-lo e que agiram sempre de forma livre e consciente, bem sabendo a sua conduta proibida e punível por Lei.

  9. - Sempre que o resultado que o tipo pretende acautelar, isto é, a lesão da vida ou a ofensa do corpo ou da saúde de alguém se concretiza em dano (como sucedeu no caso ao ocorrer o evento morte), a hipótese legal do art. 150º, nº 2, do Cód. Penal, deixa de estar preenchida, por se mostrar excedida. Já não há mero perigo para aqueles bens jurídicos, mas a verificação de um estádio mais avançado da sua ofensa, que é justamente o da sua lesão (consumada - a morte, neste caso).

  10. - Da omissão negligente por parte das arguidas dessas condutas - adequadas à verificação do real quadro patológico da vítima, desse modo permitindo o recurso às necessárias medidas de socorro -, resultaram, como consequência direta, necessária e adequada, as lesões descritas no relatório de autópsia, que originaram um quadro de sepsis por pancreatite, que determinou, direta e necessariamente, a morte da infeliz vítima.

    Assim, porque verificados todos os pressupostos legais, a conduta das arguidas é subsumível ao crime de Homicídio Negligente do art. 137º, nº 1, do Cód. Penal, pelo qual devem ser condenadas.

  11. - Afigura-se-nos que a sentença recorrida não interpretou nem aplicou corretamente as normas dos arts. 14º e 150º, nº 2, do Cód. Penal, e 127º do Cód. Proc. Penal, violando-as, padecendo também de evidentes contradições insanáveis e de um errado julgamento da matéria de facto e de direito, o que determinará, se não for possível decidir da causa nos termos propugnados (condenação das arguidas pelo crime de Homicídio Negligente, p. e p. pelo art. 137º, nº 1, do Cód. Penal), o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos dos arts. 426º e 427º do Cód. Proc. Penal”.

    * O assistente (e demandante) P (por si, e em representação da sua filha menor R) e AL (demandante e filha maior do assistente) apresentaram resposta ao recurso interposto pelo Ministério Público, entendendo (sem formulação de conclusões) que o mesmo merece inteiro provimento (sendo de notar que, por despacho judicial proferido nos autos em 09-11-2015, foi determinada a remessa das partes para os tribunais civis, ao abrigo do disposto no artigo 82º, nº 3, do C. P. Penal).

    A arguida M respondeu também ao recurso, opinando que ele é de improceder (mas não formulando conclusões extraídas da resposta apresentada).

    Finalmente, a arguida A apresentou resposta ao recurso, concluindo nos seguintes termos (em transcrição): “1. O MP violou o dever de lealdade processual ao pretender introduzir na discussão dos factos a questão do crime de homicídio negligente, ao arrepio das regras processuais e mesmo depois de ter decidido pelo arquivamento do processo quanto a esse crime.

    1. Além de violar esse dever, o MP não tem interesse em agir no que toca ao crime de homicídio negligente, precisamente porque já tomou posição no processo, decidindo então pelo arquivamento do inquérito e pela acusação por crime diferente.

    2. Assim sendo, a lei não permite que a questão do crime de homicídio seja objeto de recurso, por falta de interesse em agir do Recorrente, pelo que as alegações deverão ser dada por não escritas.

    3. De todo o modo, no que ao crime de intervenções médico-cirúrgicas concerne, as alegações do Recorrente também não devem merecer acolhimento.

    4. Desde logo, porque inexiste qualquer contradição entre matéria provada e não provada.

    5. Em seguida, porque a conclusão que o Mmº Juiz a quo retirou dos factos não é nem ilógica nem ofende as regras de experiência comum, estando claramente explicitada.

    6. Em terceiro, porque ficou provado que não é possível afirmar que a morte da doente não teria ocorrido se as arguidas tivessem respeitado as legis artis.

    7. Como refere a Relação de Évora, “além da violação de um dever objetivo de cuidado, é ponto assente, como bem expõe Hans Welzel (in Derecho Penal Alemán, 11ª ed., trad. esp., Santiago do Chile, Editorial Jurídica do Chile, 1970, pág. 194), que tem que comprovar-se que o resultado se produziu em virtude de uma omissão de cuidado (...); de outro modo, deve absolver-se” - Acórdão da Relação de Évora de 05/02/2013.

    8. Já seria, por seu lado, ilógico e violador das regras de experiência comum, concluir que a violação das legis artis implica necessariamente um dolo quanto à criação de perigo para a vida e quanto à própria violação dessas legis artis.

    9. Defender essa tese é omitir por completo a razão de ser da exigência do dolo na prática do crime de intervenções médico-cirúrgicas e a não punição dos mesmos factos quando praticados com negligência.

    10. Em face do exposto e nos termos da lei, deverá o presente Recurso ser considerado improcedente, assim se fazendo Justiça”.

    Neste Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, pronunciando-se no sentido da improcedência do recurso e da manutenção do decidido na sentença revidenda.

    Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do C. P. Penal, só a arguida M apresentou resposta, manifestando inteira concordância com o teor do parecer emitido, neste Tribunal da Relação, pelo Exmº Procurador-Geral Adjunto.

    Efetuado o exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foi o processo à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

    II - FUNDAMENTAÇÃO 1 - Delimitação do objeto do recurso.

    No caso destes autos, face à motivação apresentada (e conclusões dela extraídas), e em breve síntese, são as seguintes as questões a conhecer...

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