Acórdão nº 60/09.9T3GDL.E2 de Tribunal da Relação de Évora, 26 de Setembro de 2017

Magistrado ResponsávelANA BARATA BRITO
Data da Resolução26 de Setembro de 2017
EmissorTribunal da Relação de Évora

Acordam em conferência na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: 1.

No processo de instrução nº 60/09.9T3GDL, da Comarca de Setúbal, em decisão instrutória, foi decidido não pronunciar as arguidas B…, Lda., BN e EA da prática de um crime de burla qualificada dos arts. 217.º, nº 1, e 218.º, nº 2, al a), e de um crime de apropriação ilegítima do art. 209º, todos do CP.

Findo o inquérito, o Ministério Público proferira despacho de arquivamento e, inconformadas com esta posição, as assistentes T…, S.A. e M…., S.A. requereram a abertura de instrução.

Da decisão de não pronúncia (proferida na sequência de acórdão anterior da Relação que revogou decisão) interpuseram recurso as assistentes, concluindo: “§1. O presente Recurso vem interposto da decisão do Tribunal a quo que determinou a não pronúncia das Arguidas EA e BN e da Denunciada B.Lda.

§2. Trata-se de uma decisão cravada de vícios, de contradições e de uma totalmente incompreensível fundamentação.

§3. Desde logo, note-se que o artigo 307.º, n.º 1, do Código de Processo Penal não prevê que, em caso de prévio despacho de arquivamento (que, consequentemente e ao contrário do que acontece com o despacho de acusação ou o requerimento para abertura da Instrução apresentado pelo assistente, não pode fundar o objecto do processo em eventual fase de julgamento), o juiz de Instrução satisfaça o seu dever de fundamentação (cf. artigo 97.º, n.º 5, do Código de Processo Penal e 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa) com base exclusivamente na apreciação e conclusões do Ministério Público.

§4. Com efeito, tal despacho de arquivamento não pode ter em consideração o conteúdo do Requerimento para Abertura da Instrução nem o resultado das diligências instrutórias de prova, o que, necessariamente obriga o juiz de Instrução a ir mais além do que foi feito pelo Ministério Público.

§5. Ao limitar-se a remeter para a fundamentação do Ministério Público, a decisão a quo está ferida de nulidade, que desde já se argui para todos os efeitos legais (cf. artigos 97.º, n.º 5, 379.º, n.º 1, alínea c), e n.º 2, e 410.º, n.º 3 do Código de Processo Penal).

§6. A decisão a quo padece ainda de insanável contradição entre a factualidade considerada a título indiciário, a factualidade considerada não indiciariamente provada, entre estas e a fundamentação, entre a fundamentação em si mesma, e entre todos estes e a conclusão de não pronúncia.

§7. Com efeito, o Tribunal a quo julgou indiciariamente provados os seguintes factos: (…) §8. Analisando o comportamento das Arguidas e Denunciada à luz da experiência comum de uma pessoa média, conclui-se que representando o erro em que se encontravam as Recorrentes e percebendo que dele poderiam tirar proveito próprio, as Arguidas e a Denunciada, para além de cuidaram de manter a aparência de normalidade da interacção para que as Recorrentes efectuassem as referidas transferências bancárias, chegaram mesmo a pressionar as Recorrentes para a realização das transferências.

§9. Perante aquela insistência das Arguidas e da Denunciada — motivadas naturalmente pelo objectivo de evitar que as Recorrentes se apercebessem do erro em que incorriam —, as Recorrentes acabaram por fazer as transferências dos montantes para a B…Lda no dia 13 de Fevereiro de 2009.

§10. É patente que as Arguidas e Denunciada tiveram tempo suficiente para avisar as Recorrentes do erro em que estas se encontravam e para evitar que o mesmo se materializasse, mas nada fizeram nesse sentido; bem pelo contrário, determinaram a sua efectivação.

§11. Os comportamentos omissivos e concludentes das Arguidas e Denunciada foram conduzidos pela consciência que estas tinham da situação de erro em que as Recorrentes se encontravam e pelo controlo que, deste modo, puderam exercer sobre esse erro.

§12. Aliás, da própria fundamentação da decisão a quo (por cópia do despacho do Ministério Público) resulta que: «[a]nalisados os factos entendo que a B…Lda não tinha na altura direito a receber a quantia em causa: as faturas emitidas e cujo pagamento se pretendia foram-no pela B & Associados e a arguida tinha de saber isso».

§13. E que: «[a] arguida [EA], enquanto gerente que foi de ambas as sociedades, tinha que conhecer a faturação dirigida às queixosas e assim ter consciência de que o pagamento não era dirigido à B….Lda».

§14. Ora, perante estes factos julgados indiciariamente provados e a parte da fundamentação agora exposta, não se percebe como é que o Tribunal a quo pode concluir que: a) «[p]osto isto, se não alcança como poderão as mesmas assistentes invocar ter a arguida EA procurado criar a convicção que estariam a comunicar com outra empresa»; b) «se não pode deixar de rejeitar – terem aquelas – sem mais- sido movidas pelo interesse de fazer seus os montantes que as assistentes pretendessem pagar; ou – menos ainda! – que tenham as arguidas procurado inculcar nas assistentes a certeza de que estava a comunicar com a empresa correcta»; e c) «tem-se como inadmissível a conclusão de que terão sido as arguidas a levar as assistentes a proceder às transferências em causa; e se não vislumbra – sequer remotamente – a que “pressão exercida” (sic) se referem as assistentes quando invocam tal circunstância para justificar o seu equívoco!».

§15. Não se vislumbra como é que o Tribunal a quo julgou como indiciariamente não provados os factos A. A H., que apontam para um cenário que é expressamente contrariado pelos factos indiciariamente provados elencados.

§16. Neste sentido, a contradição insanável que resulta da conjugação de todos os elementos supra expostos e que se reflecte na fundamentação e na decisão a quo de não pronúncia, bem patente do seu texto, não pode deixar de ser declarada por este Venerando Tribunal, com todos os efeitos legais.

§17. Para além do ora exposto, entendem as Recorrentes que o Tribunal a quo errou grosseiramente ao julgar indiciariamente não provados os factos A. a H. da decisão a quo.

§18. Com efeito, e desde logo, quer a factualidade indiciada, quer as diligências instrutórias realizadas, permitem concluir pela suficiência de indícios da prática dos crimes imputados às Arguidas e à Denunciada.

§19. No que respeita à apreciação dos elementos subjectivos de vontade pressupostos nas considerações sobre a factualidade não indiciada, a mesma será sindicável quando, por referência aos padrões de comportamento estabelecidos pelas regras comuns de experiência, da leitura do complexo fáctico-indiciário seja possível concluir que, colocados na posição desse homem médio, certa vontade ou intenção tivesse tido lugar.

§20. Ora, após a execução da transferência bancária para a Denunciada B…Lda, e a percepção do respectivo erro pelas Recorrentes no dia 25 de Fevereiro de 2009, as Recorrentes interpelaram, por diversas vezes, as Arguidas e Denunciada a fim de recuperar o valor transferido, sem obterem qualquer resposta satisfatória por parte das Arguidas e Denunciada, que, em regra, limitaram-se a não responder e sem que o dinheiro lhes fosse devolvido até à presente data.

§21. Esta situação demonstra e confirma a posteriori aquilo que, num juízo de prognose, efectuado ex ante, sempre seria possível concluir sobre a intenção das Arguidas e da Denunciada.

§22.Acresce que, no que respeita à factualidade não indiciada por referência ao tipo legal do crime de burla qualificada, importa realçar que em todas as formulações de factos supostamente não indiciados, se encontra pressuposta uma conduta declarativa activa por parte das Arguidas e da Denunciada e não, como melhor se adequa ao caso dos autos, uma conduta não declarativa, quer seja por actos concludentes, quer seja por omissão.

§23. O desvalor da acção do comportamento de aproveitamento do estado de erro das Recorrentes, em benefício próprio ou de terceiro, tem equivalente dignidade penal ao que tivesse sido criado pelas próprias Arguidas e Denunciada, e, cumpridos todos os pressupostos, é um comportamento punível pelo direito.

§24. A representação e a consciência, por parte das Arguidas e da Denunciada, do erro das Recorrentes implicaram que estas passassem a ter o domínio do facto, pelo que se deve considerar que existe uma suficiência dos indícios de correlação entre os actos concludentes das Arguidas e da Denunciada, o seu comportamento omissivo e o resultado proibido pela norma penal — i.e. o prejuízo patrimonial das Recorrentes.

§25. No que respeita ao benefício económico obtido pela Arguida EA, é certo que a aferição deste benefício releva, em primeira linha, para o cometimento do crime de apropriação ilegítima em caso de acessão ou de coisa achada.

§26. Em todo o caso, esse enriquecimento verificou-se pois que, num espaço de pouco mais de um mês, a Arguida EA transferiu um total de € 43.500 (quarenta e três mil e quinhentos euros) da B…Lda para a sua esfera patrimonial directa, e € 82.500 (oitenta e dois mil e quinhentos euros), indirectamente, através da empresa Allways L.., de que era sócia largamente maioritária. Assim, a Arguida EA apropriou-se, directa e indirectamente, de pelo menos € 126.000 (cento e vinte e seis mil euros) dos montantes transferidos pelas Recorrentes.

§27. E, realce-se que, antes das transferências erradamente efectuadas pelas Recorrentes, o saldo bancário da conta da Denunciada B…Lda se cifrava em € 119,59 (fls. 842).

§28. Pelo exposto, resulta claramente indiciada nos autos a seguinte factualidade: a) As Arguidas e Denunciada agiram movidas pelo interesse de fazer seus os montantes que as Recorrentes pretendiam pagar; b) As Arguidas e Denunciada procuraram tirar partido do erro das Recorrentes, omitindo qualquer comportamento que pudesse esclarecer tal erro, e alimentaram-no por forma a fortalecer a convicção das Recorrentes de que estavam a lidar com a empresa com quem pretendiam lidar; c) Ao não avisarem as Recorrentes sobre o erro relativo à identidade da sociedade credora, bem como ao solicitarem, por mais de uma vez, a data prevista para o pagamento dos valores das...

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