Acórdão nº 2262/13.4TAFAR.E2 de Tribunal da Relação de Évora, 14 de Julho de 2020

Magistrado ResponsávelFERNANDA PALMA
Data da Resolução14 de Julho de 2020
EmissorTribunal da Relação de Évora

Acordam, em conferência, os Juízes que constituem a secção criminal do Tribunal da Relação de Évora Nos autos de Instrução que com o nº 2262/13.4TAFAR correm seus termos no Juízo de Competência Genérica de Vila Rela de Santo António, J2, da Comarca de Faro, realizada que foi a instrução, com produção de prova documental e testemunhal, bem como com declarações do assistente, datada de 25-03-2019, foi proferida a seguinte decisão instrutória: “Declaro encerrada a instrução

O tribunal é competente

Nos presentes autos, findo o inquérito o Mº Pº proferiu despacho de arquivamento em relação aos factos denunciados pelo assistente JMPA, o qual, não se conformando com o despacho de arquivamento, veio requerer a abertura de instrução, pugnando pela pronúncia de IVTF, imputando-lhe a prática dos crimes de violação de regras urbanísticas, p. e p. pelo art. 278º-A do Código Penal, de usurpação de coisa imóvel, p. e p. pelo art. 215º do Código Penal, de dano, p. e p. pelo art. 212º, nº 1 do Código Penal e de fotografias ilícitas, p. e p. pelo art. 199º, nºs 1 e 2 do mesmo diploma legal

O requerimento de abertura de instrução foi rejeitado por despacho de fls. 1265 e ss., com fundamento na omissão de descrição de factos integradores de todos os elementos do tipo, tendo por Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Évora sido revogada a decisão e determinada a admissão da instrução, a qual foi admitida (fls. 1313 e ss.)

Em sede de instrução, foi produzida prova por declarações do assistente, prova documental e testemunhal. Realizou-se, de acordo com as formalidades legais, o debate instrutório

Inexistem nulidades que obstem ao conhecimento do mérito da causa e de que cumpra conhecer

Cumpre, no entanto, apreciar questão prévia da ilegitimidade do assistente no que respeita ao crime de violação de regras urbanísticas que imputa à arguida no RAI

Os presentes autos iniciaram-se com a denúncia apresentada por JMPA

Por despacho de fls. 475, proferido em sede de inquérito, foi o mesmo admitido a intervir nos autos na qualidade de assistente

Findo o inquérito e na sequência de despacho de arquivamento, veio o assistente requerer a abertura de instrução, imputando, como supra referido, a IF a prática dos crimes de violação de regras urbanísticas, p. e p. pelo art. 278º-A do Código Penal, de usurpação de coisa imóvel, p. e p. pelo art. 215º do Código Penal, de dano, p. e p. pelo art. 212º, nº 1 do Código Penal e de fotografias ilícitas, p. e p. pelo art. 199º, nºs 1 e 2 do mesmo diploma legal

Pese embora JA tenha sido admitido a intervir nos autos na qualidade de assistente, tal admissão ocorreu em momento anterior ao despacho final do inquérito e, consequentemente, à apresentação do RAI

No que respeita aos crimes que o assistente imputa à arguida no RAI, desde logo não há dúvidas de que assiste legitimidade ao assistente para lhe imputar e poder vir a obter a pronúncia da mesma pela prática dos crimes de usurpação de coisa imóvel, dano e fotografias ilícitas, porquanto se trata de crimes de natureza semi-pública (arts. 215º, nº 3, 212º, nº 3 e 199º, nº 2 e 198º do Código Penal), em que de acordo com a versão do queixoso o mesmo é a vítima/ofendido da prática desses ilícitos criminais

Já, porém, no que respeita ao crime de violação de regras urbanísticas, verifica-se que se trata de crime de natureza pública

Quanto a crimes desta natureza, desde logo se refira que para dar início ao procedimento criminal pela prática dos mesmos, basta ao Mº Pº tomar conhecimento da notícia do crime, pelo que qualquer pessoa pode dar a conhecer ao Mº Pº tal ocorrência (ou eventual ocorrência)

Já, no entanto, contrariamente ao que sucede quanto aos crimes de natureza semi-pública, nos crimes públicos nem sempre assiste legitimidade às pessoas que dão a conhecer ao Mº Pº a notícia do crime para que, desacompanhadas deste, possam prosseguir criminalmente contra a pessoa denunciada

Com efeito, apenas pode prosseguir criminalmente desacompanhado do Mº Pº (é dizer, apenas pode requerer a abertura de instrução em relação a factos objeto de arquivamento pelo Mº Pº ou deduzir acusação particular nos casos de crimes dessa natureza – arts. 285º e 287º, nº 1, al. b) do CPP) o assistente e apenas nas situações em que a sua admissão nessa qualidade é possível, o que se verifica, como já vimos, nas situações em que o procedimento criminal depende de queixa ou acusação particular (art. 68º, nº 1, al. b) do CPP) e também em certas situações de vítimas menores ou incapazes (art. 68º, nº 1, al. d) do CPP), em certos tipos de crime expressamente previstos (art. 68º, nº 1, al. e) do CPP) e, finalmente, quando é o ofendido, ou seja, quando é o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação (art. 86º, nº 1, al. a) do CPP). Por fim, as situações plasmadas em legislação especial

Daqui resulta, portanto, que estando em causa um crime de natureza pública, apenas pode haver intervenção como assistente por parte do titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, é dizer, o titular do bem jurídico protegido com a norma ou então estando em causa um dos crimes tipificados na al. e) do nº 1 do art. 68º do CPP ou em legislação especial

Desde logo o crime de violação de regras urbanísticas não se insere entre os tipos de crime previstos nessa alínea e) do nº 1 do art. 68º do CPP ou em legislação especial, pelo que resta analisar se o assistente é, no que respeita ao crime de violação de regras urbanísticas, o titular do bem jurídico protegido com a incriminação

A respeito do art. 278º-A, refere António Fernando Cruz Novo, in “ A violação de regras urbanísticas” (tese de mestrado), que este preceito visa sancionar os particulares que levem a efeito operações urbanísticas em solo não urbanizável ou em bens e imóveis protegidos por lei especial ou regulamentar. Citando CARMO DIAS, refere que “podemos dizer que se protege o uso racional do solo”. Este, o solo, é assim, o bem jurídico protegido. No mesmo sentido Paulo Pinto de Albuquerque, Cometário do Código Penal, anot ao art. 278º-A, segundo o qual “o bem jurídico é a preservação da natureza, na sua vertente de solo. A proteção penal é feita mesmo contra a vontade do proprietário do imóvel, como resulta claro da sua inserção sistemática deste novo tipo penal no título IV do livro II (Dos crimes contra a vida em sociedade), entre os tipos de danos contra a natureza e o tipo da poluição”

Esta posição não é, no entanto, unânime na doutrina. João Miguel Ferreira Rodrigues, por seu lado, in “Reflexões Teórico-práticas sobre os novos crimes urbanísticos”, sustenta que a “legalidade urbanística” como o conjunto de normas vigentes reguladoras do ordenamento do território é a formulação mais fiel ao que terá sido a intenção do legislador ordinário e constitucional, resultando claro que, no artigo 278.º-A, o bem jurídico é a legalidade urbanística

Sendo embora desde logo as interpretações dos autores acerca do bem jurídico protegido, teremos, no entanto, de concluir que, estejamos perante uma ou outra das interpretações, desde logo o preceito não protege de qualquer forma qualquer bem jurídico do assistente, antes estando em causa um bem jurídico supra individual. Assim, ainda que o assistente pudesse ficar prejudicado com a violação da norma penal, não são os seus interesses aqueles que a norma penal especialmente visou acautelar. A esse respeito veja-se o Ac do TRP, de 12/01/2011, in www.dgsi.pt, segundo o qual “para efeitos de assegurar a legitimidade da intervenção nos autos como assistente, não é ofendido qualquer pessoa prejudicada com a prática do crime, mas somente o titular do interesse que constitui objecto jurídico imediato do crime. No caso de crime público em que o interesse tutelado seja exclusivamente público, a regra é de que ninguém poderá constituir-se assistente”. É o que sucede in casu, em que estamos perante um crime público que tutela um interesse exclusivamente público. Face ao bem jurídico protegido neste tipo de crime, não se pode concluir que JA seja o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação

Consequentemente, não lhe assiste legitimidade para intervir nos autos na qualidade de assistente quanto a este tipo de crime

É certo que o mesmo foi admitido, de forma genérica (sem referência a qualquer ilícito criminal), a intervir nos autos na qualidade de assistente. Porém, tendo o despacho de admissão sido proferido no âmbito do inquérito, sem que se apreciasse especificamente a sua legitimidade quanto a este concreto tipo de crime (já vimos que foram denunciados pelo mesmo vários crimes de natureza semi-pública em que é queixoso), não se mostra vedado o conhecimento desta questão, ou seja, da ausência de legitimidade de JMPA intervir nos autos na qualidade de assistente relativamente ao crime de violação de regras urbanísticas e, consequentemente para em instrução obter a pronúncia da arguida pela prática deste crime. Neste sentido, entre outros, o Acórdão do TRL, de 20/06/2007, de acordo com a qual “ A decisão que admite o assistente a intervir como tal nos autos não faz caso julgado formal, mas sim caso julgado rebus sic stantibus, podendo a questão da legitimidade ser decidida diferentemente em momento posterior do processo. A legitimidade para intervir como assistente, em inquérito, afere-se pela denúncia, enquanto a legitimidade a apreciar subsequentemente prende-se com a natureza dos crimes a que se refere a acusação, o requerimento de abertura de instrução ou a decisão recorrida, em caso de recurso

Assim sendo, não assiste legitimidade a JMPA para intervir nos autos na qualidade de assistente relativamente ao crime de violação de regras urbanísticas, p. e p. pelo art. 278º-A do Código Penal e, consequentemente, para prosseguir criminalmente contra a mesma desacompanhado do Mº Pº e obter a sua pronúncia em sede de instrução

Face ao exposto, verificando-se a exceção de ilegitimidade de JMPA relativamente...

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