Acórdão nº 9/20.8GAMTL-A.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 14 de Julho de 2020

Magistrado ResponsávelFÁTIMA BERNARDES
Data da Resolução14 de Julho de 2020
EmissorTribunal da Relação de Évora

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: 1 - RELATÓRIO 1.1. Nos autos de Inquérito n.º 9/20.8GAMTL, que correm termos nos Serviços do Ministério Público junto do Tribunal Judicial da Comarca de Beja, por despacho proferido pela Sr.ª JIC, de 02/03/2020, foi indeferido o requerimento do Ministério Público de obtenção de dados de localização celular.

1.2. Inconformado com o assim decidido, o Ministério Público interpôs recurso, apresentando a correspondente motivação, da qual extraiu as seguintes conclusões: «A. O Ministério Público, acolhendo a sugestão trazida aos autos pela GNR, e com vista a viabilizar a recolha de prova da prática do crime de furto qualificado, p. e p. pelo 203º, n.º 1, 204º, n.º 1, alínea a), n.º 2, alínea e), do Código Penal, apresentou os autos ao Mmo. Juiz de Instrução promovendo se ordenasse às operadoras telefónicas nacionais (MEO, Vodafone e Optimus) a junção a estes autos dos dados de tráfego, nomeadamente, todos os números de cartões, de IMEI que activaram as células BTS, incluindo chamadas e mensagens recebidas e efectuadas, hora e duração das comunicações e os denominados eventos de rede, nos termos do nosso despacho de fls. 46 a 49, o qual se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

  1. Fundamentou o seu pedido no disposto nos artigos 11.º alínea c) e 17.º da Lei 109/2009 de 15 de Setembro (Lei do Cibercrime).

  2. O Mmº. Juiz de Instrução indeferiu a pretensão do Ministério Público, por despacho do seguinte teor: “No requerimento que antecede, o Ministério Público veio expor e requerer o seguinte: «Os presentes autos tiveram origem no auto de notícia de fls. 3, onde se reportam factos susceptíveis de integrar o crime de furto qualificado, previsto e punido pelos arts. 203.º e 204.º n.º 2 alínea e) do Código Penal.

Concretizando: - Nestes autos investigam-se factos suscetíveis de consubstanciar, em abstrato, a prática de um crime de furto qualificado, ocorrido numa habitação, em (…), entre as (…) do dia (…) e as (…) do dia (…).

- Dos autos resulta indiciado que desconhecidos, acederam ao interior da residência e dai recolheram e fizeram seus: (…); Atenta a matéria carreada para os autos, as diligências realizadas não levaram à obtenção de elementos que, por si só, nos permitam identificar os autores do crime investigado nos presentes autos, porquanto: - Dos factos não existem testemunhas; - As inspeções lofoscópicas ao local do furto resultaram negativas; Considerando que a investigação tem por objeto um crime de elevada gravidade que assume preocupação comunitária; É de presumir, com elevada probabilidade, que os autores possam ter atuado utilizando telemóveis para comunicar entre si, momentos antes e depois dos factos que deram origem aos presentes autos.

Atenta a escassez de meios de prova, é absolutamente fundamental solicitar aos três Operadores Móveis - MEO, VODAFONE e NOS: - Listagens em suporte digital de dados de tráfego que contenham todos os números de cartões e de IMEI que ativaram as células BTS abaixo identificadas, incluindo chamadas e mensagens recebidas e efetuadas, hora e duração das comunicações e os denominados eventos de rede, correspondentes ao local abaixo assinalados e respetivos períodos temporais.» Após o Digno Magistrado do Ministério Público descreveu as células BTS em causa em número total de 15 (quinze) e invocou o preceituado nos arts.º 11 alínea c) e 17.º da Lei do Cibercrime (sic).

Cumpre apreciar e decidir.

Conforme é entendimento jurisprudencial maioritário: «Solicitar a operadoras de telemóveis todos os dados de tráfego dos cartões SIM que operaram num determinado período de tempo em 19 antenas, mas não estando concretizados alvos determináveis e atingindo a diligência pretendida um universo ilimitado e indiferenciado de cidadãos que não se integram no conceito jurídico-penal de suspeitos é proibido por lei e não respeita os princípios constitucionais da proporcionalidade e da adequação» - conf. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22.06.2016, citado no site da pgdl, sendo nosso o destaque a negrito.

Não é permitido, em inquérito, solicitar às operadoras de comunicações que forneçam todos os números de telefone que num determinado período de tempo, se conectaram a uma determinada antena, sem que, previamente, se determinem previamente os suspeitos o que, em caso de desconhecimento da respetiva identificação, pressupõe a existência de dados factuais tendentes à sua individualização, não sendo admissível que sejam consideradas suspeitas de determinada ação criminosa, todas as pessoas que se encontrassem naquele local e tempo

- vide Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 03.05.2016, citado no site da pgdl, sendo nosso o destaque a negrito.

A falta de suspeito ou suspeitos determinados contra quem dirigir as escutas telefónicas, os pedidos de obtenção de dados de tráfego ou os pedidos de localização celular, é obstáculo intransponível á realização deste tipo de meios de obtenção de prova. II - Recolher informações de pessoas inocentes, na esperança de, de entre estas, se «apanhar» algum suspeito, é desproporcional aos fins visados, sendo, pois, uma compressão inconstitucional e ilícita do direito á privacidade e á inviolabilidade das comunicações» - vide, Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 19.05.2015, disponível na base de dados da DGSI, sendo nosso o destaque a negrito e a jurisprudência ali igualmente citada: Ac. da Rel. de Évora de 10/18/2011, proc. n.º 19/11.6GGEVR-A.E1; Ac. da Rel. de Évora de 06/26/2012, proc. n.º 342/11.0JAFAR.E1 e Ac. Rel. de Coimbra de 05/22/2013, proc. n.º 141/12.1GBTCS-A.C1, todos in www.dgsi.pt.

Ora, aderindo, in casu, a tal entendimento, importa dizer, igualmente, que o resultado acima aludido, que adviria do acolhimento da promoção que o presente despacho desatende, não pode deixar de ser considerado, no mínimo, como excessivo por confronto com os fins visados, que não podem ser obtidos a todo o custo e com sacrifício injustificado dos direitos de terceiros, representando a decisão que o consentisse uma clara violação do princípio da proporcionalidade, o que a feriria de ilegalidade. Além de que subsistem sérias dúvidas de que a diligências pretendidas vissem a lograr a obtenção dos resultados pretendidos, mormente, a identificação dos agentes dos crimes.

Pelo exposto, sem necessidade de outras considerações, por escusadas, indefiro o pelo Ministério Público requerido.

Notifique.

Devolvam-se os autos ao Ministério Público.” D. É desde despacho e que o Ministério Público recorre, por considerar ser o mesmo ilegal, por ser nulo e consubstanciar uma errada interpretação dos artigos 3.º 9.º e 11.º alínea c) da Lei 109/2009 de 15 de Setembro.

E. O despacho de indeferimento proferido pelo Mmº. Juiz de Instrução não analisa qualquer questão nem de facto nem de direito, não invoca qualquer normativo legal para o indeferimento, limita-se, singelamente, a transcrever jurisprudência, pelo que nem tão pouco se compreende qual o motivo da rejeição do requerimento.

F. Mas mais, num pedido exatamente idêntico, com o mesmo enquadramento legal, e relativamente ao mesmo tipo de crime, o mesmo Mmº. Juiz de Instrução, no mesmo Tribunal, decidiu em sentido contrário no âmbito do despacho que proferiu no inquérito 556/19.4PBBJA (fls. 57 e seguintes) e, apenas uns dias antes do despacho proferido nestes autos.

G. Daí que, mais uma vez, não se compreenda o sentido da decisão aqui proferida, até porque o despacho ora em crise não a explica.

H. Resulta assim evidente que o despacho de que se recorre é nulo, nos termos do art.º 32.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, e do art.º 97.º n.º 5 do C.P.P.

I. Será por o Mmo. Juiz entender que não há suspeitos nos autos? Não sabemos.

J. Mas se assim for, na consideração de que, nos termos do disposto no artigo 189º, n.º 2 do CPP, os elementos solicitados pelo MP só poderiam ser fornecidos quanto às pessoas mencionadas no n.º 4 do artigo 187º, do CPP, relevando, no caso dos autos a apreciação da alínea a), na parte em que se refere ao suspeito, uma vez que não existem arguidos constituídos nos autos.

K. Não poderíamos concordar com tal interpretação, por introduzir um grau de exigência na definição de suspeito que extravasa a definição legal, pressupõe uma exigência de concretização de características do suspeito que não se encontra legalmente prevista e cujos contornos não são definidos, e se traduz, na prática, num entrave ao exercício da acção penal pelo Ministério Público.

L. Nos termos do artigo 1º alínea e) do CPP, é suspeito “toda a pessoa relativamente à qual exista indício de que cometeu ou se prepara para cometer um crime, ou que nele participou ou se prepara para participar.” M. Ora, a lei não exige que o suspeito seja pessoa identificada.

N. O conceito legal de suspeito basta-se com a existência de uma pessoa, responsável pelos seus actos, sobre a qual exista indício de que cometeu ou se prepara para cometer um crime ou nele participar. Centrando-nos na questão da definição do agente (e não do facto em si), isto permite, desde logo, afastar as demais pessoas relativamente às quais não seja possível imputar os factos a qualquer dos títulos previstos no artigo 26º a 28º do Código Penal. Por exemplo, à luz destas normas legais não se permite o fornecimento dos elementos pretendidos tendo em vista identificar as pessoas que se encontravam num local do crime, que se sabe não o terem praticado, mas que porventura o possam ter visto e possam ser testemunhas dos factos.

O. Ora o que se pretende no caso dos autos são indubitavelmente dados relativos aos suspeitos da prática do crime, visando, através deles, a sua identificação.

P. É que a diligência solicitada, como é sugerida pela GNR apenas nos dará os números de telefone que activaram as células naquela noite, de quem tenha estado naquele local ermo onde se situa a habitação.

Q. Em termos de probabilidade, parece-nos evidente...

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