Acórdão nº 211/20.2T8STC.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 14 de Julho de 2020

Magistrado ResponsávelALBERTINA PEDROSO
Data da Resolução14 de Julho de 2020
EmissorTribunal da Relação de Évora

Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal[1] *****Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[2]: I - RELATÓRIO 1. M… e N… vieram propor, nos termos dos artigos 1974.º, n.º 1, do Código Civil[3] e 53.° do Regime Jurídico do Processo de Adopção, aprovado pela Lei n.º 143/2015, de 08.09[4], a presente acção tutelar cível pedindo que, realizadas as diligências necessárias e ouvidas as pessoas indispensáveis, seja decretada a adopção da jovem A… pelos Autores, alegando – para além da factualidade provada por documento, adiante reproduzida –, as suas condições económicas e habitacionais, que não têm filhos, vivem em união de facto há mais de 4 anos, e ainda que: «são considerados e respeitados, mostram capacidade e idoneidade no desempenho da função parental, tratam a jovem como sua filha e esta trata-os como pais, desde a data em que a jovem vive com os requerentes a têm tratado e cuidado com amor e carinho, educando-a como se fosse sua filha».

A jovem encontra-se bem integrada nesta família e é nela que tem vindo a moldar as suas estruturas afetivas, sociais e psicológicas e apresenta um excelente desenvolvimento físico, psicológico e emocional.

Mostram-se reunidos todos os pressupostos legais para ser decretada a adoção da jovem, nomeadamente, esta realiza o seu superior interesse, apresenta reais vantagens para a adotanda, funda-se em motivos legítimos e estão criados vínculos semelhantes aos da filiação, nos termos do art. 1974.º do CC, como aliás é reconhecido no relatório de acompanhamento e avaliação do período de pré-adoção elaborado pelo Equipa de Adoção do Centro Distrital de Setúbal do Instituto de Segurança Social, I.P., nos termos dos arts. 8.º aI. i) e 50.º nº 4 do Regime Jurídico do Processo de Adoção, aprovado pela Lei n.º 143/2015 de 08/09 (doc. 8). (…) Os AA. declaram que pretendem que dos apelidos da criança fiquem a constar os seus apelidos de "F…" e "dos S…", nos termos do art.º 1988.º nº 1, do CC (…), passando a chamar-se A…».

  1. Determinada a apensação aos presentes autos do processo de regulação e alteração do exercício das responsabilidades parentais da jovem, o Ministério Público teve vista nos autos, promovendo a realização de diligências com vista à nomeação dos requerentes como curadores provisórios, e à audição dos progenitores para ser colhido o seu consentimento para a adopção.

  2. Em 17.05.2020, foi proferida decisão que indeferiu «liminarmente o pedido de adoção, por ser manifestamente improcedente – artigo 590º do Código de Processo Civil».

  3. Inconformados, os requerentes apresentaram o presente recurso de apelação, terminando com as seguintes conclusões: «I - O presente recurso é interposto da douta sentença proferida pelo Tribunal a quo que indeferiu liminarmente o pedido de adopção, por entender não se encontrarem verificados os pressupostos legais exigidos pelo artigo 1980.° do Código Civil, com o que os recorrentes não se conformam, pois entendem que a Lei em causa deverá ser interpretada de forma diferente; Il - O objecto do recurso é, pois, matéria de Direito; III - A decisão recorrida entende que o n.º 3 do artigo 1980.º do Código Civil não pode ser extensivamente interpretado, "no sentido de integrar a confiança de uma criança no âmbito de processo tutelar cível de regulação das responsabilidades parentais, como é o caso", pelo que, considerando os elementos dos autos, entendeu não estarem cumpridos os requisitos para adopção estabelecidos no n.º 3 do artigo 1980.º do Código Civil; IV - A questão central do presente recurso é, pois, saber se a "confiança" que é pressuposto da atribuição das responsabilidades parentais ao requerente da adopção releva para efeitos de aplicação do n.º 3 do artigo 1980.º do Código Civil, ou seja, se pode ser adoptado quem, à data do requerimento, tenha menos de 18 anos e não se encontre emancipado quando, desde idade não superior a 15 anos, tenha sido confiado aos adoptantes, ou a um deles, no âmbito do exercício das responsabilidades parentais; V - A decisão recorrida fundamenta-se no douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 9 de Março de 2017, in www.dgsi.pt), a que adere, o qual responde negativamente à questão formulada na conclusão anterior, pelos fundamentos constantes das alegações supra, que se dão por reproduzidos, concluindo com decisão que, apesar de injusta, entende ser a única conforme à Lei; VI - Nos presentes autos, o Instituto da Segurança Social, l.P., no relatório que fundamenta a confiança administrativa, transmite que a decisão de confiança administrativa foi baseada na circunstância de ser a requerente quem exerce as responsabilidades parentais; que os requerentes equacionaram a adoção há mais tempo, mas a requerente foi desaconselhada pelas técnicas a quem recorreu e pelo Tribunal, que sugeriram que seria melhor que A... crescesse; que esta menor "deseja muito que seja concretizada a adoção para que o sentimento de pertença à família seja pleno e que seja reconhecido do ponto de vista legal uma situação de facto"; que a concretização da adopção corresponde ao superior interesse da criança; e que a própria Segurança Social tem interpretação diversa do Tribunal da Relação de Évora.

    VIl - A interpretação da Lei efectuada pelo Tribunal a quo, fundamentando-se no referido Acórdão, não é, com o devido respeito, a correcta; VIII - A "confiança" que está em causa na atribuição das responsabilidades parentais é a maior "confiança" que o sistema jurídico pode depositar em alguém; IX - A "confiança" depositada por decisão judicial no âmbito de regulação das responsabilidades parentais prevalece sobre a decisão de confiança administrativa; X - Não é conforme ao Direito interpretar a Lei no sentido de admitir-se a adopção de quem, antes de perfazer 15 anos, tenha sido confiado aos adoptantes por decisão administrativa e não se admitir a adopção de quem, antes de perfazer 15 anos, tenha sido confiado aos adoptantes por decisão judicial; Xl - O artigo 1980.° do Código Civil deve interpretar-se de acordo com o disposto no artigo 9.° do mesmo Código, ou seja, em conformidade com a letra e o espírito da Lei.

    XII - No n.º 1 do artigo 1980.° do Código Civil o legislador não se limitou a dizer que podem ser adoptadas crianças "que tenham sido confiadas ao adoptante"; acrescentou "mediante confiança administrativa ou medida de promoção e proteção de confiança com vista a futura adoção"; ao invés, no n.º 3 o legislador estabelece apenas que pode ser adoptado quem "tenha sido confiado aos adoptantes ... ", suprimindo a expressa menção dos meios mediante os quais tal confiança foi entregue; XIII - Se o legislador tivesse pretendido limitar o conceito de "confiança" constante do n.º 3 do artigo 1980.° do Código Civil às circunstâncias previstas no n.º 1, tê-la-ia consagrado; não o fazendo, presume-se que consagrou a solução mais acertada e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, logo, os meios de entrega da "confiança" constantes dos n.ºs 1 e 3 do Código Civil são distintos, sendo o n.º 3 mais abrangente, pois esta foi a solução consagrada pelo legislador; XIV - Esta é igualmente a interpretação conforme ao pensamento do legislador (n.º 1 do artigo 9.° do Código Civil) e corresponde à interpretação sufragada pela letra da Lei (n.º 2 do artigo 9.° do Código Civil); XV - Constitui princípio orientador do instituto da Adopção que o superior interesse da criança deve prevalecer em todas as decisões a proferir no âmbito do processo de adopção, sendo que in casu é a própria Segurança Social que afirma que a procedência do pedido corresponde ao interesse da menor, competindo ao Tribunal fazê-lo prevalecer; XVI - A tese dos recorrentes é, ainda, sufragada não só pela Segurança Social (cfr. parecer junto), como por Jurisprudência e Doutrina, conforme consta das alegações supra, que se dão por reproduzidas; XVII - O recurso à interpretação extensiva pressupunha que a situação não estivesse compreendida na letra da Lei, mas estivesse compreendida no seu espírito, ou seja, o legislador teria pretendido transmitir uma coisa mas as palavras traíram-no, levando-o a exprimir coisa diversa; a interpretação extensiva pressupõe que o sentido da Lei não cabe dentro da letra desta; ora, pelo contrário, in casu existe conformidade entre a letra e o espírito da Lei; XVIII - Ainda que assim não fosse, hipótese que apenas por cautela de patrocínio referimos, sem conceder, sempre o recurso à interpretação extensiva imporia que a letra da Lei fosse interpretada de acordo com o espírito do legislador, o qual é no sentido de uma situação como a dos autos integrar as situações de admissibilidade de adopção para além dos quinze anos de idade do adoptando; XIX - Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou o artigo 9.° do Código Civil e n.º 3 do artigo 1980.° do Código Civil, pelo que deve a sentença proferida ser revogada, substituindo-se por outra que, considerando estarem verificados os pressupostos legais exigidos pelo artigo 1980.º do Código Civil, determine o prosseguimento dos autos em conformidade».

  4. Pelo Ministério Público foram apresentadas contra-alegações, concluindo que «O Tribunal a quo interpretou correctamente o art. 1980º, nº 3, do Código Civil, não violando qualquer norma legal, sequer o art. 9º do Código Civil, devendo a decisão recorrida ser integralmente mantida».

  5. Observados os vistos, cumpre decidir.

    ***** II. O objecto do recurso.

    Com base nas disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil[5], é pacífico que o objecto do recurso se limita pelas conclusões das respectivas alegações, evidentemente sem prejuízo daquelas questões cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada...

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