Acórdão nº 641/08.8TBPSR-A.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 22 de Outubro de 2020

Magistrado ResponsávelMÁRIO COELHO
Data da Resolução22 de Outubro de 2020
EmissorTribunal da Relação de Évora

Sumário: (…) Acordam os Juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora: No Juízo de Competência Genérica de Ponte de Sôr, (…) deduziu embargos de executado à execução que lhe foi movida por (…) – Instituição Financeira de Crédito, S.A., alegando quer a falsidade da assinatura aposta à livrança em execução, quer a nulidade da relação contratual subjacente, por violação dos regimes jurídicos relativos ao crédito ao consumo e às cláusulas contratuais gerais.

A contestação da embargada sustenta a regularidade do título executivo, a válida comunicação das cláusulas do contrato e o abuso de direito por parte do embargante.

Após julgamento, a sentença julgou os embargos improcedentes.

Inconformado, o embargante recorre e remata com 82 conclusões prolixas, não efectivando uma autêntica síntese das suas alegações, como lhe era imposto pelo artigo 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

Entendendo-se, porém, que o Relator deve usar com parcimónia os poderes que lhe são conferidos pelo artigo 639.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, apenas se justificando o convite a completar, esclarecer ou sintetizar as conclusões, quando não for possível, de todo, a rápida e fácil compreensão das questões suscitadas e a sua fundamentação essencial, efectuaremos a seguinte resenha das questões ali enunciadas: · nulidade da sentença, por violação das exigências relativas à fundamentação da matéria de facto, ou a baixa do processo para nova fundamentação dessa matéria – conclusões A) a I); · impugnação da matéria de facto – conclusões J) a NNN); · no aspecto jurídico, nulidade do contrato de mútuo, por falta de entrega do respectivo duplicado, cujo ónus de prova assistia ao embargado – conclusões OOO) a QQQ); · violação dos deveres de informação e comunicação inerentes às cláusulas contratuais gerais – conclusões RRR) a BBBB); · inexistência de abuso de direito – conclusão CCCC).

A resposta sustenta a manutenção do julgado.

Dispensados vistos, cumpre-nos decidir.

Da nulidade da sentença, por violação das exigências relativas à fundamentação da matéria de facto, ou a baixa do processo para nova fundamentação dessa matéria Entende o Recorrente que a sentença recorrida não discriminou o iter cognoscitivo e valorativo que percorreu para extrair as conclusões de facto a que chegou, para além que a matéria provada não foi exposta numa ordem sequencial e cronológica, repetindo-se o mesmo facto ao longo da matéria provada e não provada, embora com algumas nuances.

Analisando esta alegação, diremos que a sentença só será nula por falta de fundamentação quando seja de todo omissa relativamente à fundamentação de facto ou de direito e ainda quando esta seja insuficiente em tais termos que não permitam ao destinatário da decisão judicial a percepção das suas razões de facto e de direito.

[1] No caso, a fundamentação quanto à matéria de facto consta da sentença, tendo esta declarado quais os factos que considerava provados e quais os não provados, procedendo depois a uma análise crítica das provas e especificando os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção, procurando dar cumprimento às exigências impostas pelo artigo 607.º, n.º 4, do Código de Processo Civil.

Ao contrário do que defende o Recorrente, a lei não exige uma fundamentação discriminada facto a facto, mas tão só que o juiz se pronuncie em relação a cada facto, declarando-o provado ou não provado. A análise crítica das provas e a especificação dos fundamentos decisivos na convicção acerca da matéria de facto poderá efectuar-se por referência a conjuntos ou blocos de factos, desde que a partir da fundamentação seja possível compreender, com suficiente clareza, quais as provas que estiveram na base da decisão.

[2] Aliás, em processos com inúmeros factos alegados – por vezes, várias centenas – uma exigência de fundamentação discriminada facto a facto redundaria apenas em repetição ad nauseum, e ainda em incompreensão e agravamento do risco de contradição, mostrando-se absolutamente inútil para demonstrar uma análise crítica da prova.

É preciso notar que cada facto está interligado com os demais, insere-se numa sequência cronológica e não pode ser analisado separadamente da realidade que o envolve. Por outro lado, os meios de prova produzidos referem-se, na maior parte das vezes, não apenas a um facto, mas a um conjunto de factos, e esse de meio de prova tem de ser analisado na sua globalidade e não seccionado em determinadas partes. Uma testemunha, por exemplo, raramente deporá apenas a um facto, frequentemente assistiu a um certo conjunto de factos, mais ou menos longo e todos eles com um certo encadeamento lógico, e é em relação a todo o seu depoimento que se fará a análise crítica da prova.

A propósito, Francisco Ferreira de Almeida[3] ensina o seguinte: «A estatuição do citado n.º 4 do art. 607.º (1.º segmento) é, contudo, meramente indicadora ou programática, não obrigando o tribunal a descrever de modo exaustivo o iter lógico-racional da apreciação da prova submetida ao respectivo escrutínio; basta que enuncie, de modo claro e inteligível, os meios e elementos de prova de que se socorreu para a análise crítica dos factos e a razão da sua eficácia em termos de resultado probatório. Trata-se de externar, de modo compreensível, o itinerário cognoscitivo e valorativo percorrido pelo tribunal na apreciação da realidade ou irrealidade dos factos submetidos ao seu escrutínio. Deve, assim, o tribunal enunciar os meios probatórios que hajam sido determinantes para a emissão do juízo decisório, bem como pronunciar-se: - relativamente aos factos provados, sobre a relevância deste ou daquele depoimento (de parte ou testemunhal), designadamente quanto ao seu grau de isenção, credibilidade, coerência e objectividade; - quanto aos factos não provados, indicar as razões pelas quais tais meios não permitiram formar uma convicção minimamente segura quanto à sua ocorrência ou convencer quanto a uma diferente perspectiva da sua realidade ou verosimilhança […]. Não impõe, contudo, a lei que a fundamentação das conclusões fácticas decisórias seja indicada separadamente por cada um dos factos, isolada e autonomamente considerado (podendo sê-lo por conjuntos ou blocos de factos sobre os quais a testemunha se haja pronunciado).» Se eventualmente existirá desacerto da decisão quanto à matéria de facto, tal traduz-se em mero erro de julgamento, em relação ao qual a parte dispõe da possibilidade de impugnação, podendo a Relação proceder à modificação da matéria de facto, nos termos que são permitidos pelos artigos 640.º e 662.º do Código de Processo Civil.

Notando, ainda, que não se justifica a baixa do processo à primeira instância para nova fundamentação – o erro de julgamento não equivale à ausência de fundamentação – e que a exposição cronológica dos factos não é uma exigência legal (embora uma boa estrutura expositiva seja extremamente útil para a compreensão dos factos e subsequente aplicação do direito), resta julgar improcedentes as conclusões als. A) a I) do instrumento recursivo.

Da impugnação da matéria de facto Garantindo o sistema processual civil um duplo grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto, como previsto no artigo 640.º do Código de Processo Civil, continua a vigorar o princípio da livre apreciação da prova por parte do juiz – artigo 607.º, n.º 5, do mesmo diploma, ao dispor que “o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.” Deste modo, a reapreciação da prova passa pela averiguação do modo de formação dessa “prudente convicção”, devendo aferir-se da razoabilidade da convicção formulada pelo juiz da 1.ª instância, face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, sem prejuízo do poder conferido à Relação de formular uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova.

[4] Por outro lado, o artigo 662.º do Código de Processo Civil permite à Relação alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.

Trata-se de uma evolução em relação ao artigo 712.º da anterior lei processual civil, consagrando uma efectiva autonomia decisória dos Tribunais da Relação na reapreciação da matéria de facto, competindo-lhes formar a sua própria convicção, podendo, ainda, renovar os meios de prova e mesmo produzir novos meios de prova, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada em primeira instância.

Deste modo, na reapreciação da matéria de facto o Tribunal da Relação deve lançar mão de todos os meios probatórios à sua disposição e usar de presunções judiciais para obter congruência entre a verdade judicial e a verdade histórica, não incorrendo em excesso de pronúncia se, ao alterar a decisão da matéria de facto relativamente a alguns pontos, retirar dessa modificação as consequências devidas que se repercutem noutra matéria de facto, sendo irrelevante ter sido esta ou não objecto de impugnação nas alegações de recurso.

[5] Ponderando que se mostram reunidos os pressupostos exigidos pelo art. 640.º, n.º 1, do Código de Processo Civil para a apreciação da impugnação fáctica (estão especificados os concretos pontos de facto que se consideram incorrectamente julgados, bem como os concretos meios probatórios que, na opinião da Recorrente, impõem decisão diversa, e ainda a decisão que, no seu entender, deve ser proferida acerca das questões de facto impugnadas), e ainda que este ónus a cargo do recorrente “não pode ser exponenciado a um nível tal que praticamente determine a reprodução, ainda que sintética, nas conclusões do recurso, de tudo quanto a esse respeito já tenha sido alegado; nem o cumprimento desse ónus pode redundar na adopção de entendimentos formais do processo por parte dos Tribunais da Relação e, que, na prática, se traduzem na recusa de reapreciação da matéria de facto, maxime da audição...

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