Acórdão nº 141/18.8GBADV.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 18 de Fevereiro de 2020

Magistrado ResponsávelCARLOS BERGUETE COELHO
Data da Resolução18 de Fevereiro de 2020
EmissorTribunal da Relação de Évora

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora 1.

RELATÓRIO Nos autos em referência, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido MG, imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos arts. 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal (CP).

Veio o arguido requerer a abertura da instrução, a qual foi admitida no Juízo de Competência Genérica de Almodôvar do Tribunal Judicial da Comarca de Beja.

Na sequência, foi proferido o seguinte despacho: Melhor compulsados os autos verifica-se que na acusação pública de fls. 61 a 63 o arguido MG vem imputado da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos arts. 153.°, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alínea a) do Cód. Penal (cfr. fls. 61 a 63).

Porém, por requerimento datado de 16.01.2019 e junto aos autos a fls. 31, o ofendido CG declarou não desejar procedimento criminal contra o então ainda suspeito, agora arguido.

Apreciando.

Na fase de instrução, o Juiz de Instrução é a autoridade judiciária funcionalmente competente para aferir da verificação dos pressupostos processuais, designadamente, para apreciar e homologar a desistência de queixa, conforme decorre do disposto nos arts. 51.º, n.º 2 do Cód. Proc. Penal.

Sucede que em nosso entendimento - e salvo o devido respeito, que é muito, por posição contrária - o crime de ameaça.

mesmo agravado.

reveste natureza processual semi-pública e, por conseguinte, o respetivo procedimento criminal depende da apresentação de queixa pelo ofendido, considerando-se como tal o titular do interesse que a lei quis especialmente proteger com a incriminação, no prazo de 6 meses contado sobre a data da aquisição do conhecimento do facto e da identidade do seu autor, apenas se iniciando e se mantendo se e enquanto o ofendido assim o desejar (cfr. arts. 113.º, n.º 1, 115.º, 116.º, 153.º, n.ºs 1 e 2, 155.º, n.º 1, alínea a), e 212.º, n.ºs 1 e 3, do Cód. Penal e arts. 48.º e 49.º do Cód. Proc. Penal).

Dispõe, com efeito, o art. 153.º, n.º 1, do Cód. Penal, sob a epígrafe «Ameaça», que comete o crime de ameaça «[q]uem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação».

O procedimento criminal quanto a tal ilícito depende de queixa. Assim estatui o n.º 2 daquele mesmo normativo legal.

O crime de ameaça é abstratamente punido com pena de prisão de 1 mês até 1 ano ou pena de multa de 10 até 120 dias (cfr. arts. 41.º, n.º 1, 47.º, n.º 1, e 153.º, n.º 1, do Cód. Penal).

Sucede que a nossa lei penal prevê a possibilidade de a moldura da pena abstrata correspondente ao crime de ameaça ser agravada, caso ocorram algumas das circunstâncias aludidas nas alíneas a) a e) do n.º 1 do art. 155.º do Cód. Penal ou nos n.ºs 3 e 4 do art. 86.º da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro.

A este propósito a doutrina e a jurisprudência têm-se degladiado sobre a natureza e o alcance do art. 155.º do Cód. Penal, maxime, sobre se as circunstâncias aí previstas são qualificativas do tipo de crime de ameaça previsto no art. 153.º do mesmo Código e, portanto, instituidoras de um tipo qualificado em relação a este (ou seja, uma incriminação autónoma do crime de ameaça), ou meramente agravantes da moldura penal.

Como é bom de ver, esta discussão não assume relevância puramente teórica e a posição que a este acolha não é inócua, considerando desde logo as implicações que daí advêm, nomeadamente, ao nível da procedibilidade criminal.

Ora, analisada a redação conferida ao art. 155.º do Cód. Penal pela Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro, e, ulteriormente, pela Lei n.º 83/2015, de 5 de agosto, afigura-se-nos clara a intenção do nosso legislador de proceder a uma melhor sistematização de um conjunto de circunstâncias que apenas relevarão como agravantes da moldura penal e não como qualificativas do tipo de crime de ameaça, do tipo de crime de coação, do tipo de crime de perseguição, do tipo de crime de casamento forçado e do tipo de crime de atos preparatórios de casamento forçado, não instituindo, pois, incriminações autónomas ou independentes face a esses crimes.

Frise-se, nesta esteira, que dos trabalhos preparatórios das revisões de 2007 e de 2015 do Código Penal não se extrai qualquer elemento que permita concluir que, com a atual redação do art. 155.º daquele diploma, se tenha pretendido instituir cinco novos tipos penais qualificados. Na verdade, de tais trabalhos preparatórios decorre que tal questão não foi sequer ponderada pelo legislador, o que é sintomático da ausência de vontade de alterar a natureza processual dos crimes em questão.

Mas, para tal entendimento convergem igualmente os elementos interpretativos literal e sistemático, posto que o legislador epigrafou o art. 155.º do Cód. Penal de «Agravação», à semelhança do que fez nos arts. 177.º, 197.º, 229.º-A e 343.º do mesmo diploma, sendo que quanto a nenhum desses casos se tem entendido tratar-se de tipos penais qualificados.

Também importa o elemento histórico, pois o crime de ameaça sempre revestiu natureza processual semi-pública no ordenamento jurídico português, e as correspondentes circunstâncias modificativas sempre incidiram apenas sobre a respetiva moldura penal abstrata, sendo por isso agravantes, e não qualificativas.

Aliás, a conjugação destes aspetos é decisiva: anteriormente à entrada em vigor da Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro, a única circunstância agravante do crime de ameaça encontrava-se prevista no n.º 2 do art. 153.º do Cód. Penal, que transitou para a atual alínea a) do n.º 1 do art. 155.º daquele mesmo Código, sendo que aquela - sublinhe-se - dependia, justamente, de procedimento criminal. Nenhuma destrinça era feita, no que concerne à procedibilidade, entre ameaça simples e agravado.

Por outro lado, já no art. 155.º daquele diploma, então epigrafado «Coacção grave», previam-se circunstâncias qualificativas do tipo de crime de coacção.

Ora, com a Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro, foi profundamente alterado o art. 155.º do Cód. Penal, que passou ter a epígrafe «Agravação», o que é inequivocamente revelador de que o legislador encarou e encara as circunstâncias aí previstas como meras agravantes dos tipos de crime de ameaça e de coação - e, especificamente quanto a este último, já não como circunstâncias qualificativas. A isto conduzem, de resto, as presunções legais de que, no texto da lei, o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (cfr. art. 9.º, n.º 3, do Cód. Civil).

Perante isto, o art. 155.º do Cód. Penal representa em relação ao crime de ameaça previsto no art. 153.º do mesmo diploma um conjunto de disposições legais nas quais se preveem...

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