Acórdão nº 781/17.2T9EVR.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 10 de Janeiro de 2023

Magistrado ResponsávelBEATRIZ MARQUES BORGES
Data da Resolução10 de Janeiro de 2023
EmissorTribunal da Relação de Évora

Acordam, em conferência, na 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: I. Relatório 1. Da decisão No Processo de Instrução n.º 781/17.2T9TVR da Comarca de Faro Juízo de Instrução Criminal de Faro - Juiz 1, relativo à arguida AA[1], o Tribunal de instrução Criminal decidiu: - Não pronunciar a arguida pela prática de um crime de condução perigosa, previsto e punível pelo artigo 291.º, n.º 1, alínea b) e 69.º, n.º 1, alínea a) ambos do CP e artigo 35.º do CE.

- Pronunciar a arguida, para ser submetida a julgamento em processo comum, perante Tribunal Singular pela prática, como autora material, na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto e punível pelo artigo 148.º, n.ºs 1 e 3 ex vi artigo 144.º, alíneas b) e d) e 69.º, n.º 1 alínea b) do CP.

  1. Do recurso 2.1. Das conclusões da assistente BB Inconformada com a decisão a assistente interpôs recurso extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição): “1ª Pretende a douta sentença recorrida que, apesar de se encontrar preenchido o tipo objectivo do crime de condução perigosa de veículo rodoviário, que não se pode no presente caso estar perante um crime de condução perigosa de veículo rodoviário nos termos que são imputados pela acusação pública à arguida, uma vez que o resultado impõe a agravação prevista no artigo 285º do Código Penal, pelo que entende a douta decisão instrutória que nos encontramos perante uma situação de concurso aparente entre o crime de condução perigosa de veículo rodoviário agravado pelo resultado e o crime de ofensas à integridade física por negligência, previsto e punido pelo artigo 148º, n.ºs 1 e 3, do Código Penal, por referência ao artigo 144º, alíneas b) e d), do Código Penal e 69º, n.º 1, al. b) do mesmo diploma legal.

    2º. Os factos fortemente indiciados, para além de indiciarem a prática do crime de condução perigosa de veículo rodoviário, indiciam, ainda, a prática pela arguida de um crime de ofensa à integridade física por negligência agravada pelo resultado, p. e p. pelos artigos 148º, nºs. 1 e 3, e 144º , alíneas b) e d), ambos do Código Penal.

    1. Com este preceito incriminador pretende-se proteger a integridade física individual, enquanto o artigo 291º do Código Penal visa proteger a integridade física em geral e não apenas a da concreta vítima.

    2. Ora, é consabido que o concurso aparente assenta no pressuposto de que várias leis penais concorrem só em aparência porquanto uma delas há-de excluir as outras.

    3. E essa exclusão ocorre porque entre as normas em apreço há uma relação de especialidade, de subsidiariedade ou de consunção.

      Como ensina o Prof. Eduardo Correia a relação de especialidade “Traduz-se na relação que se estabelece entre dois ou mais preceitos, sempre que na lex especialis se contêm já todos os elementos duma lex generalis, isto é, daquilo que chamamos um tipo fundamental de crime, e, ainda, certos elementos especializadores. Esta relação terá como efeito, evidentemente, a exclusão da lei geral pela aplicação da lei especial: lex specialis derogat legi generali…ponto será que a realiz.ação de um tipo especial de crime esgote a valoração jurídica da situação, sob pena, de outra forma, de se violar o princípio ne bis in idem.

    4. É o que sucede, por exemplo, entre o crime de ofensa à integridade física simples e ofensa à integridade física qualificada, mas não entre a ofensa à integridade física por negligência e a condução perigosa de veículo rodoviário. (cfr Ac. TRL, de 23/05/2006, proc.º n.º 2146/2006-5, disponível em www.dgsi.pt e Acordão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 02/06/2009, proc.º n.º 2141/07.4TAVIS-C1).

    5. Há uma relação de subsidiariedade quando um preceito penal só seja aplicado desde que um outro não tenha aplicação, o que, manifestamente, não é o caso dos dois tipos de crime em causa.

      A relação de consunção ocorre quando entre os valores protegidos pelas normas criminais se verifica por vezes relações de mais e menos: uns contêm-se já nos outros, de tal maneira, que uma norma consome já a protecção que a outra visa.

    6. Também não é o caso dos autos, pois o crime de ofensa à integridade física protege a própria ofensa a esse bem jurídico, enquanto o artigo 291º, o perigo de violação desse bem jurídico.

      9º. Aliás, como refere o douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 2/6/2009, proc.º n.º 2141/07.4TAVIS-C1 “O crime de condução perigosa de veículo rodoviário p. e p. pelo artigo 291º do C.P. é um crime de perigo concreto na medida em que da conduta do agente terá de resultar um perigo real e efectivo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, mas o que tem de ser concreto é o perigo de tal ocorrer, não sendo necessário que se verifique efectivamente a lesão” 10.ª Ocorre, deste modo, ao contrário do decidido pela douta decisão instrutória, uma relação de concurso efectivo entre os dois crimes, como foi entendido na decisão recorrida.

    7. Certamente por mero lapso, a douta decisão recorrida refere que o crime de ofensas corporais pelo qual pronuncia a arguida tem uma moldura penal superior ao crime de condução perigosa de veículo motorizado (preconizando ser a moldura penal para o mesmo de três anos, quando o artigo 148º, n.º 3, do Código Penal prevê uma moldura penal até dois anos), mas sem razão, pois este sempre seria agravado em um terço pelo resultado, e, daí, com uma moldura penal mais elevada.

    8. Resulta dos autos a destruição do motociclo do ofendido/assistente, bem como a sua marca, pelo que é fácil aferir o seu valor patrimonial, pelo que, nos termos do artigo 202º do Código Penal, verifica-se um perigo para bens alheios de valor patrimonial elevado, pelo que, também por esta via se encontra fortemente indiciado, o crime de condução perigosa de veículo motorizado.

      Nestes termos e nos mais de direito, com o mui douto suprimento de V. Exas., deve o presente recurso ser considerado procedente por provado, e, em consequência, ser a arguida pronunciada, também pelo crime de condução perigosa p. e p. pelo artigo 291º do Código Penal, (…)”.

      2.2. Das contra-alegações da arguida Motivou a arguida defendendo o acerto da decisão recorrida, concluindo nos seguintes termos (transcrição): “(…) bem andou o Tribunal a quo em decidir como decidiu, isto é ao não pronunciar a arguida AA pelo crime de condução perigosa (pelo qual fora, aliás, injustamente acusada), não merecendo, assim, neste segmento, o despacho ora sindicado pela assistente qualquer reparo ou alteração.” 2.3. Das contra-alegações do Ministério Público Respondeu o Ministério Público defendendo o acerto da decisão recorrida, concluindo nos seguintes termos (transcrição): “1. O crime de condução perigosa de veículo rodoviário agravado pelo resultado tutela, além da segurança das comunicações, os bens jurídicos individuais vida e integridade física, postos em perigo pela conduta do agente, se ocorrer uma lesão destes últimos como resultado daquela conduta.

  2. O artigo 294.º aplica-se a todos os crimes previstos nos artigos 287.º a 291.º e, ao remeter para o artigo 285.º estende a aplicação da agravação pelo resultado a todos os casos em que a conduta do agente cause a morte ou a lesão grave da integridade de outra pessoa, sendo o agente punido com a pena que ao caso caberia, agravada de um terço nos seus limites mínimo e máximo.

  3. A moldura abstrata aplicável ao tipo de ilícito previsto no art.º 148.º n.º 3 - pena de prisão até 2 anos – é inferior à prevista no tipo de ilícito previsto no art.º 291.º n.º 1 [e também 3] agravada pelo resultado nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 294.º n.º 3 e 285.º, todos do Código Penal, razão pela qual é este último o tipo fundamental [lex consumens] que consome a proteção que o tipo de crime de ofensa à integridade física grave, por negligência, [lex consunta] já visa e que deixa de ser aplicada sob pena de clara violação do princípio ne bis in idem uma vez que não se indiciou suficientemente que outro bem jurídico tenha sido ameaçado pelo perigo aposto pela arguida para além daquele onde esse mesmo perigo se concretizou.

  4. Por outro lado, o Tribunal a quo não integrou corretamente os factos que deu como suficientemente indiciados dado que, do seu ponto 16. retira-se que a arguida criou, com dolo eventual, o perigo referido no n.º 1 daquele art.º 291.º do Código Penal, mas o Tribunal a quo no raciocínio que fez escreveu na decisão recorrida que, “a subsumir-se no crime de condução perigosa sempre o perigo criado fora de modo negligente, pelo que a pena seria de 2 anos agravada de um terço – cf. art. 291.º, n.º 3 e 285.º, do CP.”.

  5. Assim, deverá a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra onde o Tribunal a quo integre corretamente os factos que deu como suficientemente indiciados, designadamente, decidindo que, para além do crime de ofensa à integridade física grave, por negligência, os factos pelos quais a arguida foi pronunciada também integram um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punido, pelo art.º 291.º n.º 1, al. b), agravado pelo resultado nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 294.º n.º 3 e 285.º, todos do Código Penal.

  6. Acresce que o Tribunal a quo incorreu ainda em manifesto lapso aquando do raciocínio que fez sobre as normas punitivas a aplicar em sede de concurso aparente entre os crimes de condução perigosa de veículo rodoviário e de ofensa à integridade física grave por negligência quando fez constar que “ou seja, a pena seria inferior à prevista no art. 148.º, n.º 3, do Código Penal, relativo ao crime de ofensa à integridade física grave por negligência que contempla o máximo de 3 anos de prisão”.

  7. Este lapso viciou inelutavelmente o raciocínio do Tribunal a quo dado que, caso representasse que o crime de ofensa à integridade física grave, por negligência, é punido com pena de prisão até 2 anos - inferior àquela pelo qual é punido o crime de condução perigosa de veículo...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT