Acórdão nº 8/06.2IDCTB.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 28 de Abril de 2009

Data28 Abril 2009
ÓrgãoCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

I.

Relatório [1] Nos presentes autos com o NUIPC 08/06.2IDCTB do 3º Juízo do Tribunal Judicial de Castelo Branco, por sentença de 04/11/2008 foram J..., casado, industrial de madeiras, residente no Largo …, e a sociedade J... Lda, com sede no Largo …, condenados nos seguintes termos: i. O arguido J... foi condenado pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, p. e p. pelos artº 30º, nº2, 79º do Código Penal (CP) e 105º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de €6,00 (seis euros), perfazendo a quantia total de €1.200,00 (mil e duzentos euros); ii. A sociedade arguida J... Lda, responsável pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, p. e p. pelos artºs. 7º, 30º, nº2, 79º do CP e 105º do RGIT, na pena de 350 (trezentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de €10,00 (dez euros), num total de €3.500,00 (três mil e quinhentos euros).

[2] Inconformados com essa decisão, vieram os arguidos interpor recurso, extraindo da motivação as seguintes conclusões: 1 — Vem o presente recurso interposto da sentença proferida nos presentes autos que condenou os arguidos pela prática, em autoria e em concurso efectivo, de um crime de abuso de confiança fiscal, sob a forma continuada, p. e p. pelo artigo 105°, n° 1 e 5 do RGIT em conjugação com o artigo 30°, n° 2 do Código Penal, o primeiro na qualidade de gerente e o segundo nos termos do artigo 7°, n°s 1 e 3 do RGIT.

2 — O presente recurso não versa sobre matéria de facto, mas apenas matéria de direito, concretamente, sobre as questões da violação dos princípios constitucionais ne bis in idem e do princípio do caso julgado na interpretação e aplicação feitas dos artigos 30°, n° 2 e 79° do Código Penal pela sentença recorrida.

3 — Os factos pelos quais os arguidos vieram condenados nos presentes autos, reportam-se à não entrega das prestações de IVA referentes aos 1 °, 2°, 3° e 4° trimestres de 2003, aos 1°, 2°, 3° e 4° trimestres de 2004 e aos meses de Janeiro a Agosto e Outubro de 2005 (Cfr, pontos 2.1.3. e 2.1.4. da matéria de facto dada como provada).

4 -- Conforme se deu como provado no ponto 2.1.13. da matéria de facto, os arguidos foram julgados e condenados pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p, pelo artigo 105° n° 1 do RGIT e 30° n" 2 do CP, pela não entrega do IVA liquidado pela sociedade J... Lda., no 1 °, 2 ° 3º e 4° trimestres do ano de 2002, no processo n° 70/03.0 IDCTB, que correu termos no 1º Juízo do Tribunal Judicial de Castelo Branco. ".

5 — A não entrega do IVA liquidado pela arguida J... Lda. verificou-se, quer no ano de 2002 (objecto do processo supra referido, no qual aos arguidos vieram condenados), quer nos anos de 2003, 2004 e 2005, objecto dos presentes autos, no qual os mesmos vieram igualmente condenados.

6 — Considerando o ponto 2.1.12. da matéria de facto dada como provada na sentença de que se recorre e os pontos 9, 13 e 14 da matéria dada como provada na sentença proferida no processo n° 70/03.0 IDCTB, está-se nos presentes autos perante o mesmo crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, nos termos do artigo 30°, n° 2 do Código Penal.

7 — Ou seja, a não entrega do IVA liquidado pela sociedade J..., Lda. não cessou no 4° trimestre de 2002, tendo-se prolongado até ao mês de Outubro de 2005, sempre de forma homogénea e reiterada, motivada por uma mesma solicitação exterior que diminuiu consideravelmente a culpa do agente — o contexto de dificuldade económica atravessado pela sociedade em virtude do incêndio de duas matas de muito elevado valor ("sessenta mil contos", ou seja, 300.000,00 €) que obstou à extracção da respectiva madeira, bem como ao acidente com um dos veículos pesados da mesma, que importou um prejuízo de "quinze mil contos ", ou seja, 75.000,00 €.

8 — Porque ao crime continuado é aplicável uma pena única correspondente à conduta mais grave que integra a continuação, nos termos do artigo 79° do Código Penal, estando em causa um só e mesmo crime continuado de abuso de confiança fiscal, que teve início com a não entrega do IVA de 2002, pelo qual os arguidos já foram julgados e condenados, não poderiam ter sido submetidos a julgamento e muito menos condenados numa outra pena pelo mesmo crime.

9 — A sentença recorrida ao condenar os arguidos violou os princípios constitucionais ne bis in idem, consagrado no artigo 29°, n° 5 da Constituição da República Portuguesa, nos termos do qual "ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime" e do caso julgado decorrente da decisão proferida no processo n°70/03.0 IDCTB, do I ° Juízo do Tribunal Judicial de Castelo Branco.

10 — Objecta a sentença recorrida que se trate do mesmo crime continuado porquanto os factos integradores da continuação, objecto dos presentes autos, são diferentes, pelo menos numa perspectiva temporal, dos considerados no processo n° 70/03.0 IDCTB.

11 — Como se refere no sumário do Douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/3/2006 (Processo n° 05P4403), o que o n° 5 do artigo 29° da CRP "proíbe é, no fundo, que um mesmo e concreto objecto do processo possa fundar um segundo processo penal" e citando, a obra de EDUARDO CORREIA "Unidade e Pluralidade de Infracções/ Caso Julgado e Poderes de Cognição do Juiz", conclui que "Nada impede, por conseguinte, considerar existente, para efeitos de determinação da identidade do objecto, uma relação de continuação entre certos factos e outros já julgados, pois que dessa sorte apenas se verificam os limites da unidade jurídica que deveria ter sido conhecida e que, como tal, se deve dizer apreciada e contida na primeira sentença ".

12 — A sentença recorrida viola ainda o caso julgado proferido no processo n° 70/03.0 1DCTB, princípio que decorre a nível constitucional do Princípio do Estado de Direito previsto no artigo 2° da Constituição da República Portuguesa bem como do artigo 205°, n° 2 que estabelece que ''As decisões dos Tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer autoridades." e, a contrario, do artigo 282°, n° 3 do diploma fundamental.

13 — No sentido de que, se perante a matéria de facto dada como provada se concluir que existe um crime continuado, se verifica a excepção de caso julgado e os arguidos não podem ser condenados por factos posteriores integradores do mesmo crime continuado, vejam-se os Doutos Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 19/5/2004 (Processo n° 909/08), de 14/1/2004 (Processo n° 3501/03), de 28/10/2008 (Processo n° 3/04.6 TATCS), de 28/05/2008 (Recurso Penal n°14/03.9 IDAVR.C1), do Tribunal da Relação do Porto de 25/5/2005 (Processo n° 0511389) e do Supremo Tribunal de Justiça de 15/3/2006 (Processo n° 05P4403), todos disponíveis em www.dgsi.pt.

14 — Refere elucidativamente o referido Acórdão do TRC de 14/1/2004 (Processo n° 3501/03), que "o objecto do processo penal será, assim, o acontecimento histórico, o assunto ou pedaço da vida vertido na acusação e imputado, como crime, a um determinado sujeito,.. ", que "no crime continuado o efeito consuntivo do caso julgado abrange todos os factos que, ainda que não constituam total sobreposição, hão-de considerar-se englobados no "recorte da vida " anteriormente julgado, enquanto unidade de sentido. " e que "todos os factos praticados pelo arguido até à decisão final que directamente se relacionem com o pedaço da vida apreciado e que corra ele formam a aludida unidade de sentido, ainda que efectivamente não tenham sido conhecidos ou tomados em consideração pelo Tribunal, não podem ser posteriormente apreciados”.

15 — À objecção de que "pode na verdade suceder que o arguido, por total desconhecimento pelas instâncias de investigação e julgamento, tenha sido julgado apenas por uma ínfima parte dos factos integradores da continuação criminosa e só a posteriori se venham a descobrir novos factos que ainda que englobados nessa continuação sejam mais graves do que aquelas que foram objecto de acusação e julgamento. ", responde-se com esse mesmo Acórdão que "tal objecção nem se verifica no caso em apreço, Com efeito toda a actividade dos arguidos, descritas em ambas as acusações, era ou podia ser do inteiro conhecimento das instâncias judiciárias — porque dirigida ao Estado em cujas Repartições de Finanças eram entregues regularmente as declarações de IVA (...) E entre o bloco de factos da primeira acusação e o bloco de factos descrito na segunda nada de relevante aconteceu que não fosse a continuação e desenvolvimento "normal" e sucessiva de um estado de coisas que já vinha de trás — a não entrega dos impostos no vencimento sucessivo e periódico dessa obrigação... ".

16 — É claríssimo o recente Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28/10/2008 (Processo n° 3/04.6 TATCS), quando refere que "... se algumas actividades que fazem parte da continuação criminosa foram já objecto de sentença definitiva, ter-se-à de considerar consumido o direito de acusação relativamente a quaisquer outras que pertençam a esse mesmo crime continuado, ainda que elas de facto tivessem permanecido estranhas ao conhecimento do juiz.... ".

17 — Concluindo lapidarmente que "As actividades aqui imputadas aos arguidos como aquelas a que se referiu o 1º processo são seguidas no tempo e formam a aludida unidade de sentido com os apreciados na sentença de absolvição proferida no 1º processo. Ainda que não haja inteira coincidência (actual, constituem unia única unidade de sentido com os factos apreciados no primeiro processo, fazendo assim parte integrante do mesmo "recorte de vida" essencial que fez parte do objecto do processo e logo do âmbito cognitivo do tribunal. Pelo que, nesta perspectiva, não sofre dúvida que os novos factos ora trazidos a juízo se encontram dentro do "mesmo crime" e portanto precludida a prossecução dos autos para julgamento dos mesmos, pelo efeito do caso julgado. Diferente entendimento, como...

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