Acórdão nº 97/04.4IDCBR.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 25 de Março de 2009

Magistrado ResponsávelJORGE GONÇALVES
Data da Resolução25 de Março de 2009
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

61 I – RELATÓRIO 1.

Nos autos de processo comum com intervenção do tribunal singular registados sob o n.º97/04.4IDCBR, a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Condeixa-a-Nova, os arguidos L..., A... e “X... – Comércio de Veículos, S.A.”, todos melhor identificados nos autos, foram acusados pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal na forma continuada, p. e p. pelos artigos 6.º, 7.º, 24.º, n.º1, 2 e 5, do Decreto-Lei n.º 20-A/90, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 394/93, de 24 de Novembro, actualmente enquadrado no artigo 105.º, n.º1 e 5, da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, 26.º e 30.º, n.º2, do Código Penal.

Realizada a audiência e julgamento, decidiu-se: - condenar o arguido L..., pela prática, em co-autoria, de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, p. e p. pelos artigos 105.º, n.º1 e 5, do RGIT, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, e 30.º, n.º1 e 2 do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão; - condenar o arguido A..., pela prática, em co-autoria, de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, p. e p. pelos artigos 105.º, n.º1 e 5, do RGIT, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, e 30.º, n.º1 e 2 do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão; - condenar a arguida “X... – Comércio de Veículos, S.A.”, pela prática, em autoria material, de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, p. e p. pelos artigos 105.º, n.º1 e 5, do RGIT, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, e 30.º, n.º1 e 2 do Código Penal, na pena de 500 (quinhentos) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros), o que perfaz a multa de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros); - suspender pelo período de 1 ano e 6 meses a execução da pena de prisão imposta ao arguido L..., na condição de o mesmo pagar a prestação devida ao fisco e respectivos acréscimos legais no mesmo prazo; - suspender pelo período de 2 anos a execução da pena de prisão imposta ao arguido A..., na condição de o mesmo no prazo de dois anos pagar a prestação devida ao fisco e respectivos acréscimos legais.

  1. Inconformados, recorreram os arguidos L... e A..., formulando, nas respectivas motivações, as seguintes conclusões (transcrição): 2.1.

    Recurso de L...: Face ao exposto, não pode o Recorrente ser condenado pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, devendo ser absolvido. Ponderada toda a prova verifica-se que o Recorrente não pode considerar-se agente daquele crime, tendo existido erro na apreciação da matéria de facto e de direito. Assim:

    1. Inexistem no presente processo elementos de facto que possibilitem a condenação do Recorrente. Além disso, a prova gravada em audiência de julgamento suporta uma conclusão diferente daquela atingida pelo tribunal a quo.

    2. A decisão recorrida considera que a apropriação é um elemento implícito do crime de abuso de confiança fiscal previsto no artigo 105.° do RGIT. Interpretação reiterada pelo recente acórdão do STJ, de 9 de Abril de 2008, bem como pelo acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 15 de Fevereiro de 2007 (relator - Trigo Mesquita) e pelo Tribunal Constitucional, no acórdão 54/2004. Em momento algum resulta que o Recorrente se apropriou de quantias relativas a IV A.

    3. Quanto ao Recorrente nunca se demonstrou qualquer intenção de apropriação daquelas quantias. Tal não se verifica nem na acusação proferida pelo Ministério Público, nem na sentença recorrida. O que se provou foi precisamente a existência de um crédito do Recorrente sobre a pessoa colectiva sociedade arguida, de montante superior em dobro ao montante alegadamente apropriado.

    4. Não se poderá, pois, afirmar a existência de dolo-do-tipo relativamente a este elemento. Não se alegando, imputando e comprovando estes elementos objectivos e subjectivos do ilícito-típico, a decisão recorrida, ao condenar o ora Recorrente, viola o princípio da legalidade, plasmado no artigo 1.° do Código Penal (CP) e no artigo 2.° do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT) em conjugação com o disposto no artigo 105.° deste mesmo diploma.

    5. Naquelas peças apenas se refere que, desde início de 2001, decidiram os arguidos pessoas singulares deixar de entregar nos cofres do Estado o IVA, que pretendiam assim integrar e passar a usar tal dinheiro no normal giro económico da sociedade arguida.

    6. Num outro prisma, a acusação refere sempre a actuação do ora Recorrente enquanto administrador da sociedade arguida. Assim, apenas a pessoa colectiva poderia ser responsabilizada criminalmente.

    7. Em situações como a do caso concreto, o abuso de confiança fiscal é um só: o da pessoa colectiva. O elemento da apropriação, dadas as suas características pessoalíssimas, não pode ser dividido e separado pelos vários intervenientes. Seguindo a tese da acusação e da sentença, então, na medida em que estes actuaram como administradores, de facto e de direito, eles estão actuar enquanto personificando verdadeiramente a própria pessoa colectiva. Caso contrário viola-se o princípio que proíbe a dupla valoração do mesmo facto. É um dos vícios de que padece a sentença recorrida.

    8. Era o co-arguido quem contactava os clientes, celebrava os concretos negócios de venda dos veículos automóveis, contactava os fornecedores dos mesmos e procedia à sua compra, designadamente no estrangeiro, e recebia e efectuava pagamentos, respectivamente a clientes e fornecedores; I) Não é verdadeiro que a pessoa colectiva em causa facturava muito bem, designadamente no que respeita ao recebimento de clientes. Assim como não corresponde à verdade que o Recorrente tenha decidido, acordado ou concordado em não pagar o IVA que ao Estado pertencia. O que resulta claro é que os negócios celebrados pelo co-arguido, à revelia do Recorrente, deixaram a sociedade em situação insustentável.

    9. O que é amplamente comprovado atentas as declarações do Recorrente e da testemunha F...: - parte significativa das vendas não era cobrada aos clientes mas reflectida em facturas e os bens entregues; - os clientes eram conhecidos do co-arguido; -uns não pagavam, outros desapareciam, outros não apareciam mais ... o meu controle era nulo, ou quase nulo; - o Recorrente injectou avultado capital próprio no património da empresa nunca tendo sido ressarcido; o Recorrente sempre manifestou preocupação em regularizar a situação fiscal, tendo inclusive negociado pagamentos com o Serviço de Finanças; - a actuação do co-arguido no seio da pessoa colectiva criou uma situação insustentável, pelo que não havia dinheiro e, muitas vezes, nem sequer existia recebimento do IVA liquidado em facturas, o que não permite a afirmação de apropriação por parte do Recorrente.

    10. No facto 38, em prejuízo da tese da apropriação, que no facto 38 o Tribunal a quo considera provado que o Recorrente emprestou à sociedade arguida cerca de € 625.329,31. A sociedade Auto Turbo A…, Lda., com sede em Angola, empresa a quem a sociedade arguida vendeu veículos automóveis, tinha um débito para com a mesma no valor de € 325.000,00. O co-arguido tinha interesses directos, comerciais e financeiros nesta sociedade.

    11. Esta foi uma das situações que impediu o pagamento dos impostos devidos a título de IVA. Daqui se inferindo que, por parte do Recorrente, pura e simplesmente, não existia qualquer domínio sobre os factos, sobre a decisão de pagar ou não pagar os impostos.

    12. Não poderá, pois, o Recorrente ser condenado pela prática do crime imputado. Não se verifica qualquer apropriação nem os elementos subjectivos do crime de abuso de confiança fiscal. Violou, pois, a sentença recorrida, o princípio da legalidade e o disposto no artigo 105.° do RGIT.

    13. Comparando a factualidade subjacente à acusação proferida pelo Ministério Público e a da sentença recorrida, infere-se que esta viola o princípio da vinculação temática, enquadrado no princípio da acusação. A acusação do Ministério Público não foca muitos dos aspectos que foram posteriormente considerados pelo tribunal a quo, nomeadamente nos factos dados como provados, pelo que este extravasou claramente o domínio cognitivo até onde poderia - no âmbito do princípio da investigação - legitimamente ir. Assim, é a própria estrutura acusatória do processo penal português, integrada pelo princípio da investigação, que é posta em crise. Desta forma, a interpretação do tribunal a quo, que extravasa o objecto do processo fixado pela acusação, viola o disposto no n.º 5 do artigo 32.° da CRP, O) Não resulta de qualquer peça processual a intenção que revele que o Recorrente quis integrar no seu património, ou no da sociedade os montantes relativos ao IVA.

    14. A apropriação não pode nunca ser equiparada à não entrega. São dois elementos distintos. A decisão recorrida acolhe este entendimento: "Não o entregando nos cofres do Estado os arguidos apropriaram-se do mesmo, tal como, aliás, resulta dos factos provados" (tis. 45 da sentença). Esta é uma presunção proibida em Direito Penal pelo princípio da legalidade.

    15. O Recorrente deve ser responsabilizado tributariamente, Porém, não se apropriou, nem o fez em benefício da pessoa colectiva, de qualquer quantia relativa a impostos, Na grande maioria das situações, o IVA que aparece em facturas não foi sequer pago. Nem o preço dos bens.

    16. A decisão recorrida deve ainda ser anulada na medida em que nada refere quanto à culpa do agente. Tal elemento do conceito material de crime apenas aparece referido quanto à figura do crime continuado, o que viola o disposto nos artigos 1.°, 14.° do CP e 105.° do RGIT. Não há crime sem culpa. Assim, não estando esta referida, não praticou o Recorrente qualquer crime de abuso de confiança fiscal.

    17. O artigo 105.° do RGIT é inconstitucional se interpretado, como sucedeu no presente processo, no sentido de que acolhe um elemento implícito: a apropriação. Assim, não pode o Recorrente ser condenado com base em norma inconstitucional, pelo...

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