Acórdão nº 1817/20.5T8CBR-A.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 12 de Julho de 2022

Magistrado ResponsávelHELENA MELO
Data da Resolução12 de Julho de 2022
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

1817/20.5T8CBR-A.C1 Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Coimbra: I – Relatório AA veio interpor recurso da sentença que qualificou como culposa a insolvência da sociedade V..., Lda e que a julgou afetada pela qualificação.

O incidente de qualificação de insolvência teve início por iniciativa da credora BB que apresentou parecer no sentido da qualificação da insolvência como culposa e da afetação da gerente, AA, e da contabilista certificada da devedora, CC. O incidente foi aberto com caráter pleno.

A credora invocou, em síntese, que a sócia gerente da insolvente registou a seu favor a marca composta do nome «V..., Lda» e sua formação gráfica, utilizada na impressão e imagem da publicação do semanário «V..., Lda», publicação que configurava a única atividade da insolvente, tendo efetuado este registo pouco tempo antes da apresentação à insolvência e em prejuízo dos credores.

Mais invocou que as contas apresentadas não merecem qualquer credibilidade, e que as mesmas demonstram que houve violação do dever de apresentação à insolvência, concluindo pela verificação das previsões do art. 186.º, n.ºs 1, 2, als. a), b), d), f), g) e h), e 3, al. a), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

A Sra. Administradora da insolvência emitiu parecer no sentido da qualificação da insolvência como fortuita. Justificou o seu parecer invocando que, de acordo com a gerente da insolvente, a marca não teria qualquer valor financeiro, mas apenas sentimental, e que de todo o modo esta se dispôs a ceder a marca para efeitos de apreensão a favor da massa insolvente.

Mais referiu ter obtido esclarecimentos por parte da contabilista da sociedade quanto à razão de ser das irregularidades cometidas, concluindo que, apesar de não terem sido adotados os procedimentos mais rigorosos de acordo com as regras da contabilidade, esse facto não determinou a existência dos requisitos atinentes à qualificação da insolvência.

Tendo tido vista nos autos, o Ministério Público pronunciou-se pela qualificação da insolvência como culposa, por considerar que se verificam as hipóteses previstas no art. 186.º, n.º 2, als. a), d), e h), e no n.º 3, al. a), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, e defendeu dever ser afetada pela qualificação a gerente da devedora, AA.

Sumariamente, alegou que, pouco antes do início do processo de insolvência, a gerente da sociedade fez desaparecer a marca “V..., Lda” do património da sociedade, dispondo da mesma em proveito próprio, que a devedora incumpriu substancialmente a obrigação de manter contabilidade organizada e, por fim, que manteve dívidas fiscais e contributivas por mais de três meses, o que implica a presunção inilidível do conhecimento da situação de insolvência.

Citadas as requeridas AA e CC, apenas a requerida AA deduziu oposição ao incidente.

Invocou, no essencial, que o registo da marca nada teve a ver com edição do jornal ou com a insolvente, sendo que ambos existiam há décadas sem esse registo, que o registo não implicou qualquer prejuízo para a massa, visto o seu valor ser nulo, e ocorreu em momento em que não se colocava a hipótese de apresentação à insolvência.

Defendeu ainda que sempre cumpriu todas as suas obrigações no que diz respeito à exigência de manter a contabilidade organizada e que não se verificou o incumprimento do dever de apresentação à insolvência, defendendo, a final, a qualificação da insolvência como fortuita.

A credora BB respondeu à oposição, mantendo o alegado no seu parecer.

Foi proferido despacho saneador e selecionada a matéria que constitui a base instrutória.

Realizada audiência foi proferida sentença com o seguinte dispositivo: “Pelo exposto, decide-se:

  1. Qualificar a insolvência de V..., Lda. como culposa; b) Julgar afetadas pela qualificação a gerente AA e a técnica oficial de contas CC; c) Declarar AA e CC inibidas para o exercício do comércio pelo período de 2 (dois) anos, e inibidas, por igual período, para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa; d) Determinar a perda de quaisquer direitos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelas requeridas AA e CC, e condená-las na restituição de quaisquer bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos; e) Condenar as requeridas AA e CC a indemnizar os credores da insolvente até ao montante máximo dos créditos que não forem satisfeitos na insolvência, na proporção em que a sua conduta culposa contribuiu para a insolvência, e em montante concreto que se vier a fixado em liquidação de sentença.” A requerida AA não se conformou e interpôs o presente recurso de apelação, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões: 1. A decisão, posta em crise, é recorrível, por estarem em causa Direitos, Liberdades e Garantias ou direitos de natureza análoga (Vide neste sentido o Acórdão nº 280/2015 e o Acórdão n.º 328/2012 ambos do Tribunal Constitucional).

    1. Analisados os factos provados, verificamos que os mesmos não preenchem os requisitos para a qualificação da insolvência como culposa.

    2. Ainda que se verificasse a situação prevista na última parte da alínea h) do nº 2 do artigo 186º do CIRE, a Recorrente nunca poderia ser responsabilizada por factos que são apenas e só imputáveis à contabilista certificada da insolvente.

    3. Os pressupostos da qualificação de insolvência estão expressamente consagrados no artigo 186º do CIRE. São eles: uma atuação dos administradores de direito ou de facto da sociedade; a ilicitude desta conduta, que será violadora dos deveres inerentes à função do administrador; que a mesma seja praticada com dolo ou culpa grave; a existência de nexo de causalidade entre a conduta ilícita e a criação ou agravamento da situação de insolvência; e que tenha sido praticada nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.

    4. A sentença recorrida fundamenta a qualificação da insolvência exclusivamente na existência de irregularidades na contabilidade da insolvente e refere ainda, quanto aos efeitos concretos dessa qualificação, que se desconhece qualquer prejuízo concreto decorrente das irregularidades detetadas na contabilidade da insolvente.

    5. Está em causa uma sociedade familiar, com génese reportada ao ano de 1966, que foi passando de geração em geração, tendo a recorrente assumido a gerência da sociedade apenas em 14.03.2006, por conta do falecimento do seu pai.

    6. A Recorrente, além da gerência, sempre foi Professora do Ensino Especial, profissão que apenas abandonou quando se reformou.

    7. A própria sentença, ao referir que se desconhece qualquer prejuízo decorrente das irregularidades, afasta, desde logo, a criação da situação de insolvência e/ou o seu agravamento e a qualificação da insolvência como culposa, pois não se provou que as irregularidades detetadas tenham contribuído para a situação de insolvência ou agravado a mesma.

    8. A Recorrente não violou os deveres de cuidado e lealdade previstos nos Código das Sociedades Comerciais, cumprindo com zelo a sua função de gerente, não falhando com nenhum dos deveres que lhe incumbiam, assim se afastando o dolo e a culpa, contratando um técnico especializado para tratar da contabilidade da sociedade.

    9. Não decorre da prova que a Recorrente tivesse alguma vez falhado com as suas obrigações, estando em causa, apenas e tão só, irregularidades ao nível da contabilidade, que a Recorrente não conhecia e não ordenou.

    10. A Recorrente não tinha os conhecimentos necessários para se aperceber de qualquer irregularidade nos documentos contabilísticos da sociedade.

    11. A contabilista certificada assumiu ter lançado toda a contabilidade apenas em Dezembro de 2019 por falta de tempo e ter sido alvo de um ataque informático em janeiro de 2020 que lhe apagou as bases de dados, facto não imputável à Recorrente.

    12. Um dos fundamentos da sentença recorrida é a existência de duas dívidas fiscais que não estavam refletidas na contabilidade - uma dívida de IRS, respeitante a retenções na fonte, reclamada em processo executivo instaurado em 08.11.2000 pela AT e uma dívida de IVA respeitante aos anos de 1995, 1966 e 1997, apurada através de métodos indiretos, que foi alvo de processo de impugnação iniciado em 18.11.2002 e ainda pendente à data da declaração de insolvência.

    13. As dívidas fiscais não refletidas na contabilidade são anteriores à gerência da Recorrente. Sendo dívidas tão antigas, e olhando ao argumento constante da sentença a quo as mesmas teriam de estar refletidas na contabilidade desde, pelo menos, a data de instauração dos processos. Ou seja, deveriam constar dos elementos contabilísticos desde 2000 e 2002, data em que o facto gerador nasceu.

    14. Nestas datas não era a Recorrente a gerente da sociedade. E quando assume a gerência não sabia das dívidas em causa e ainda que as viesse a conhecer não estava a sociedade obrigada ao seu provisionamento contabilístico (se existisse parecer no sentido da sua improcedência), além de que – diga-se uma vez mais – não foi essa falta de provisionamento contabilístico das dívidas fiscais que contribui ou agravou a insolvência.

    15. A sociedade concorreu a apoios e prestou serviços ao Município durante anos, e para que os mesmos lhe fossem concedidos era necessário a junção da certidão de não dívida à Autoridade Tributária.

      Estas certidões foram sempre emitidas, gerando a convicção num homem médio e diligente de que não existiam dividas fiscais! 17. Será, por isso, forçoso concluir pela inexistência de culpa da Recorrente na ausência destas dívidas na contabilidade, partindo do entendimento constante da sentença de que estas duas dívidas deveriam já constar dos elementos contabilísticos desde 2000 e 2002, tal significa que o “comportamento censurável”, foi cometido em 2000 e 2002, estando assim ultrapassado o prazo de 3 anos previsto na norma legal em causa.

    16. Assim se conclui que não se mostram verificados os requisitos da...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT