Acórdão nº 2364/18.0T9CBR.C2 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 12 de Outubro de 2022
Magistrado Responsável | PEDRO LIMA |
Data da Resolução | 12 de Outubro de 2022 |
Emissor | Court of Appeal of Coimbra (Portugal) |
Acordam, em conferência, os juízes da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra: I – Relatório 1.
No Juízo Local de Competência Genérica de Penacova, do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, foi a .../.../2022 e em processo comum com intervenção de juiz singular, proferida sentença em cujos termos foram entre outras/os condenadas as arguidas
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AA, nascida a .../.../1973, natural de ..., ..., casada, filha de BB e de CC, residente na Rua ..., ..., e B) DD, nascida a .../.../1968, natural de ..., ..., solteira, filha de EE e de FF, residente na Calçada ..., ..., A primeira, como autora de um crime de difamação, com publicidade, p. e p. pelos art. 180.º, n.º 1, e 183.º, n.º 1, al. a), do Código Penal (CP), na pena de cem dias de multa à taxa diária de 5,50 € – e a mais disso, na procedência do pedido de indemnização civil formulado pela assistente/demandante GG, a pagar a esta, a título de compensação por danos não patrimoniais, a quantia de 400,00 €, acrescida de juros desde a data da prolação da sentença até pagamento; e A segunda, como autora de um crime de difamação, com publicidade, p. e p. pelos art. 180.º, n.º 1, e 183.º, n.º 1, al. a), do CP, e, em concurso, de um crime de ofensa a pessoa colectiva, com publicidade, p. e p. pelos art. 187.º, n.º 1 e 2, al. a), e 183.º, n.º 1, al. a), do CP, nas penas, respectivamente, de setenta dias e de sessenta dias de multa, à taxa diária em ambos os casos de 6,00 €, em cúmulo jurídico dessas penas sendo-lhe imposta a única de noventa dias de multa, à mesma taxa – e a mais disso, na procedência do pedido de indemnização civil formulado pela assistente/demandante GG, a pagar a esta, a título de compensação por danos não patrimoniais, a quantia de 150,00 €, acrescida de juros desde a data da prolação da sentença até pagamento. 2.
Ambas as arguidas interpuseram contra essa sentença recurso, a primeira em matéria de direito, a segunda em matéria de facto e de direito, ambas pedindo a respectiva absolvição e dos correspondentes recursos cada uma extraindo a final as conclusões seguintes:
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Do recurso da arguida AA «I – Não há norma legal ou regra de legis artis que consagre, ou dê cabimento, de forma expressa e/ou incontroversa, que a prática castrativa de gatitos recém nascidos, como os praticados e publicitados por elas [assistentes], é conduta lícita, legal ou sequer eticamente admissível na nossa sociedade e comunidades.
II – Não será preciso ter-se uma inteligência acima da média, nem pródiga imaginação para se perceber e alcançar que a mutilação dos órgãos genitais em seres vivos acabados de nascer, provocada por terceiro que exerce um poder tamanho que sem possibilidade de alguma oposição eficaz, de um ser – mesmo não humano, mas ainda assim da milenar proximidade íntima do Homem.
Ora, III – Para os comuns mortais, leigos em Direito e em Medicina Veterinária, como é o caso da ora e aqui arguida recorrente, pode ser – e será – chocante (considerado), aviltante, indigno, ultrajante, imoral e, até, criminoso (no sentido vulgar e popular de “algo mau, negativo”, como foi o caso da assistente, aqui recorrida, e/ou, quiçá, rigoroso da palavra).
IV – Dando azo, essa conduta assim voluntária e conscientemente publicitada pelas próprias, em rede social, convocando/provocando comentários “gosto/não gosto”, a uma expectável e natural (e porque não, talvez, desejada ou até propositadamente assim provocada, porque, pelos vistos, altamente rentável), crítica social, no meio de quem, como a ora e aqui arguida, tem mais forte e incontida empatia e sensibilidade para a protecção dos animais, em especial domésticos, e em particular, as suas crias indefesas.
Acresce, porém, V – A assistente Ordem dos Médicos Veterinários não vem asseverar tal procedimento nas idades compreendidas na publicação ora aqui em crise, como quer fazer crer a aqui assistente recorrida.
Para além de que, VI – Mais não é que uma condenável tentativa de silenciar tudo e todos quantos duvidam ou desaprovam este procedimento concreto, que aparentemente foi unilateral, inopinado, e sem respaldo de entidade pública, e sem base regulada ou cabimento nas legis artis da profissão.
VII – Persegue-se e pretende-se ver julgadas e condenadas essas pessoas, sem que previamente, as assistentes (e os próprios Tribunais) tenham, respectivamente, demonstrado, e/ou chegado à conclusão segura que a dita castração de gatitos recém-nascidos é legal, ou lícita, cabível por aceite pela maioria da classe, ou que não caiem na previsão das normas penais de protecção destes animais.
Desta forma, VIII – É patente a violenta facada (para manter o “contexto instrumental”) na liberdade de expressão (e livre exercício do direito de crítica), direito e princípio constitucional fundamental consagrado no artigo 37.º da Constituição da República Portuguesa (CR).
IX – As expressões concretas que a assistente imputa à ora e aqui arguida recorrente, não são penalmente relevantes, representando, outrossim e apenas, um juízo de valor negativo quanto ao procedimento “clínico” levado a cabo pela recorrente, não se lhe referindo, pessoalmente, a ela.
X – É por demais patente e evidente que estas expressões, de terminologia comum, normal, regular, de onde se denota apenas o tom de uma (legítima) indignação, não integram qualquer tipo de difamação contra pessoa.
XI – A ora e aqui arguida recorrente, no que tange à sua liberdade de expressão e direito de crítica, jamais ultrapassou a fronteira do socialmente permitido.
XII – Não pode ser com base na aparente ou figurada (hiper) susceptibilidade ou “sensibilidade” da assistente ora e aqui recorrida e daquilo que ela diz entender que a atinge, mas aquilo que razoavelmente, isto é, segundo a sã opinião da generalidade das pessoas de bem, deve considerar-se ofensivo daqueles valores individuais e sociais – e, seguro é, que nenhuma das expressões imputadas à ora e aqui arguida, podem ser consideradas ofensivas, na óptica e opinião de um bom pai de família.
Por outro lado, XIII – Há que considerar ainda o facto de a ora e aqui arguida recorrente ser uma mulher do Norte, zona bastante rica em expressões regionais um pouco mais abrasivas, mas não ofensivas, que no restante território nacional.
XIV – É também reconhecida uma forma de estar mais vulcânica entre os habitantes do Norte.
XV – Pode muito bem acontecer que os conteúdos visados pelas críticas e comentários da grande maioria das arguidas, afinal até sejam pertinentes e acertados e por isso nunca difamatórios.
Aliás, XVI – O próprio Bastonário da Ordem dos Veterinários, cfr. documento junto […], explicou à Revista Sábado que (sic) “fazer esterilização antes das seis semanas, não é aconselhável e, apesar de haver várias teorias, pode vários riscos, como obstruções uretrais ou o desenvolvimento incompleto de órgãos”.
Em suma, XVII – Criticou-se a “obra”, não o “autor”.
XVIII – Tendo em conta a justaposição dos direitos em confronto [direito à crítica como corolário do princípio constitucional da liberdade de expressão e opinião (exercida, ademais, em efectivo exercício de defesa dos direitos dos animais, legalmente protegidos)] versus direito à honra e reputação, é-se de opinião que aquele direito constitucional, por essencial a uma sociedade verdadeiramente plural e democrática, deve sempre prevalecer.
Convém não olvidar, XIX – Como se sublinha no Acórdão da Relação do Porto, de 19/12/2007, proferido no âmbito do Proc. nº 0745811 (in www.dgsi.pt), “quando uma palavra tem uma pluralidade de sentidos, não temos de acolher o significado atribuído pelo visado tão-só por se ter considerado ofendido, sendo que isso terá de resultar inequivocamente dos factos”.
Ora, XX – O crime de difamação supõe a imputação de factos ou a formulação de juízos sobre uma pessoa, não a formulação de juízos sobre factos, actuações, obras, prestações ou realizações, isto é, esses juízos não configuram, nem podem configurar como elementos constitutivos deste tipo de crime.
XXI – “Não se pode pretender que as conversas discordantes tenham todas um discurso sereno, com adjectivação civilizada e detentoras de uma argumentação racional, pois isso seria privar do direito de manifestar o seu desagrado aos menos dotados do ponto de vista retórico, das boas maneiras, até da capacidade de raciocínio, recorrendo-se aos tribunais para punir tais excessos e ficando a discordância confinada ao grupo de pessoas polidas”, in acórdão do Tribunal da Relação do Porto, P. 16391/15.6T9PTR.P1 (em www.dgsi.pt) XXII – O direito à honra e ao bom nome não protege os seus titulares de toda e qualquer ofensa, pois “o direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere susceptibilidades do visado”.
v.g., entre outros, Ac. Tribunal da Relação do Porto de 12.06.2002, proc. n.º 332/02, Ac. Tribunal da Relação de Guimarães de 10.12.2006, proc. n.º 2281/06 –1 e Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 14.09.2016, proc. n.º 243/15.2GASPS.C1.
XXIII – As referidas expressões situam-se no terreno da crítica por parte da arguida e no uso do princípio da liberdade de expressão, donde está excluída a ilicitude, se não ao abrigo do disposto no n.º 2 do art. 180.º do CP, ao abrigo do disposto no n.º 2 do art. 31.º do mesmo compêndio normativo.
Ora, XXIV – A liberdade de expressão constitui um dos pilares essenciais do Estado de Direito Democrático e redunda na mais cabal exigência da dignidade da pessoa humana. Só através de uma “esfera de discurso público desinibida, robusta e aberta, poderá cada cidadão desenvolver livremente a sua personalidade, adoptar as escolhas (informadas) que melhor sirvam os seus interesses”.
Em suma, XXV – A pluralidade de personalidades e de idiossincrasias exigem que o direito proteja também os discursos mais vivos, aberrantes e ofensivos. No limite, as ideias que chocam ou provocam a colectividade, incentivam os demais a ripostar e a entrar no debate público, contribuindo para um maior esclarecimento de todos.
XXVI – A ora e aqui arguida...
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