Acórdão nº 1380/19.0T8CTB.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 05 de Novembro de 2019

Magistrado ResponsávelALBERTO RUÇO
Data da Resolução05 de Novembro de 2019
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)
  1. Relatório a) O presente recurso vem interposto do despacho liminar através do qual o tribunal recorrido se declarou materialmente incompetente para conhecer do mérito da causa.

    O despacho tem este teor: «M(…), Lda., propôs contra a ASAE – Autoridade de Segurança Alimentar e Económica o presente procedimento cautelar comum peticionando que seja determinada, sem contraditório prévio, “suspensão da eficácia da medida restritiva de retirada de produtos, com o consequente desbloqueamento dos artigos ora apreendidos, até decisão final que reconheça que produtos comercializados pela Requerente são artigos tratados e, como tal, não dependentes de qualquer licenciamento ou autorização de venda conforme o disposto no Regulamento (UE) n.º 528/2012, de 22 de maio de 2012”.

    Alegou, em síntese, que no âmbito de uma ação inspetiva levada a cabo pela requerida na farmácia A (…), sita em (...) da apreensão, como medida cautelar e preventiva, dos produtos elencados no artigo 3.º da petição inicial, por considerar os mesmos biocidas, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 48.º-A do RGCO e com base no despacho n.º 01/MR/2019, proferido pelo Sr. Inspetor Geral (…) Mais alegou que no referido despacho se determinou a retirada mediata do mercado nacional de todos biocidas não autorizados ou com pedido de autorização junta da Direção Geral de Saúde.

    Defende, por um lado a requerente que a punição embora imputável á arguida no âmbito daqueles autos de contraordenação, poderá reverte contra a requerente enquanto responsável pela distribuição dos produtos e colocação daqueles no mercado.

    Por outro lado, defende a requerente que a ASAE fez uma incorreta interpretação do Regulamento (UE) n.º 528/2012, de 22 de maio de 2012 - Relativo aos Produtos Biocidas (doravante RPB), mormente dos Art. 17.º n.º 1 e Art. 53.º n.º 1, elo que tanto o ato de apreensão provisória dos produtos, como a medida restritiva de retirada imediata do mercado de produtos biocidas imposta pelo despacho n.º 01/MR/2019 carecem de fundamento legal porquanto tais produtos tratam-se, ao invés de produtos tratados, explanando fundadamente os argumentos em que assenta tal entendimento.

    No que concerne à competência deste tribunal, escudando-se no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte proferido no âmbito do proc. n.º 02909/10.4BEPRT sustenta a requerente que a presente ação cautelar visa a suspensão da eficácia de atos que são administrativos uma vez que estamos perante atos de apreensão levados a cabo pela ASAE, ordenando-se a suspensão da medida restritiva de retirada de produtos, com o consequente desbloqueamento dos artigos apreendidos.

    Porque tais atos administrativos foram desenvolvidos no âmbito de procedimento contraordenacional, a competência jurisdicional para apreciar da sua legalidade mostra-se conferida aos tribunais comuns e não aos tribunais administrativos.

    Vejamos.

    Consabido é que a função jurisdicional se encontra confiada aos Tribunais, como órgãos de soberania, que a exercem em nome do povo (cfr. artigo 110.º, n.º 1, e 202.º, n.º 1, ambos da Constituição da República Portuguesa).

    A competência do tribunal é um pressuposto processual essencial para que o juiz possa proferir decisão de mérito sobre o fundamento da causa que lhe é apresentada, exercendo o seu dever de administração da justiça, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 156.º do Código de Processo Civil.

    A competência ex ratione materiae consiste – nas palavras de Manuel de Andrade (in Noções Elementares de Processo Civil, 1976, pág. 94) – na repartição do poder jurisdicional “pelas diversas ordens de tribunais dispostas horizontalmente, isto é, num mesmo plano, não havendo entre elas uma relação de supra-ordenação e subordinação”, de acordo com a matéria da relação jurídica de direito substantivo que lhes cumpre apreciar e julgar.

    Dispõe o artigo 64.º do Código de Processo Civil, em concretização do princípio da plenitude da jurisdição comum – constitucionalmente reconhecido no artigo 211.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa e legalmente consagrado no artigo 18.º da LOFTJ –, que são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.

    Por força do disposto no artigo 212.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.

    Por força da legal delimitação negativa, a regra da competência dos tribunais da ordem judicial segue o princípio da residualidade, ou seja, os tribunais judiciais, constituindo os tribunais regra dentro da organização judiciária, gozam de competência não discriminada, gozando os demais, ou seja, os tribunais administrativos, competência em relação às matérias que lhes são especialmente cometidas.

    Ora, concretizando a referida disposição constitucional, a lei ordinária prevê, no n.º 1 do artigo 1.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), que “os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.” Da conjugação deste artigo 1.º, n.º 1, do ETAF com o já citado artigo 212.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, decorre, de forma inequívoca, que se assume, como critério de delimitação da jurisdição administrativa, o da natureza administrativa das pretensões ou relações jurídicas que sejam submetidas à apreciação e julgamento dos tribunais.

    Densificando tal preceito, dispõe o artigo 4.º, n.º 1, alínea l) do ETAF que lhes compete a apreciação de litígios emergentes da prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos em matéria de saúde pública, ambiente, urbanismo, ordenamento do território, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas e desde que não constituam ilícito penal ou contraordenacional.

    Na verdade, como é também consabido, a competência jurisdicional em matéria contraordenacional está subtraída aos tribunais administrativos e conferida aos tribunais comuns.

    É maioritário, senão unânime, o entendimento de que a competência para apreciar da validade de medidas cautelares tomadas no âmbito de um procedimento contraordenacional, mormente de apreensão, ou motivadas pela constatação de plúrimas atuações que preenchem o tipo objetivo de um ilícito contraordenacional, designadamente de retirada do mercado, compete aos tribunais comuns porquanto são estes os tribunais competentes para “Julgar os recursos das decisões das autoridades administrativas em processos de contraordenação, salvo os recursos expressamente atribuídos a juízos de competência especializada ou a tribunal de competência territorial alargada” (artigo 130.º, n.º 2, al. d) da LOFTJ).

    Se nos afigura manifesto que o ato de apreensão configura uma medida cautelar adotada no âmbito de um procedimento contraordenacional nos termos do disposto no artigo 48.º-A do RCGO, tem-se igualmente entendido, posição que acolhemos, que pese embora a medida cautelar de retirada do mercado proferida pelo Sr. Diretor Geral da ASAE, que constitui um verdadeiro ato administrativo, preceda a decisão de aplicação de uma coima no âmbito de um concreto procedimento contraordenacional, não deixa por isso de configurar uma medida antecipatória e preventiva dos seus efeitos, tendo, pois, na sua génese a prática de um ou vários atos que configuram um ilícito contraordenacional (veja-se, em sentido idêntico e com inúmeras referências jurisprudenciais, o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 18.03.2011, proc. n.º 02909/10.4BEPRT, disponível em www.dgsi.pt).

    Aliás, face à notificação que a requerida fez à requerente, dúvidas não há de que a medida cautelar de retirada do mercado dos produtos em apreço, considerados por aquela entidade coobiocidas, foi adotada ao abrigo do poder público fiscalizador concedido por lei à requerida e no âmbito de alegadas infrações configuradas por lei como ilícitos contraordenacionais.

    Como tal, esta última circunstância não altera as regras de competência para a apreciação da sua legalidade porque existe lei expressa a atribuir essa competência aos tribunais comuns.

    Aqui chegados não poderá deixar de se questionar a competência material no âmbito dos Tribunais comuns.

    Começando pela competência material do presente Juízo Local Cível, estatui desde logo o artigo 65.º do Código de Processo Civil que “As leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotados de competência especializada”.

    Em consonância com tal disposição, nos termos do disposto no artigo 81.º, n.º 1 e 3, alíneas b) e d) do mesmo diploma, “os tribunais de comarca desdobram-se em juízos, a criar por decreto-lei, que podem ser de competência especializada, de competência genérica e de proximidade” constituindo os juízos locais cíveis e os juízos locais criminais juízos de competência especializada Ou seja, não ressaltam desde logo dúvidas de que a competência material do presente Juízo se cinge a matéria cível.

    Por seu turno, dispõe o artigo 117.º da LOFTJ que “Compete aos juízos centrais cíveis:

    1. A preparação e julgamento das ações declarativas cíveis de processo comum de valor superior a (euro) 50 000,00; b) Exercer, no âmbito das ações executivas de natureza cível de valor superior a (euro) 50 000,00, as competências previstas no Código do Processo Civil, em circunscrições não abrangidas pela competência de juízo ou tribunal; c) Preparar e julgar os procedimentos cautelares a que correspondam ações da sua competência; d) Exercer as demais competências conferidas por lei”.

      Dispondo, em consonância com tal preceito o artigo 130.º, n.º 1 do mesmo diploma que “Os juízos locais...

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