Acórdão nº 1088/19.6T8LRA.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 23 de Fevereiro de 2021

Magistrado ResponsávelFONTE RAMOS
Data da Resolução23 de Fevereiro de 2021
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Apelação 1088/19.6T8LRA.C1 Relator: Fonte Ramos Adjuntos: Alberto Ruço Vítor Amaral Sumário do acórdão: 1. A herança ilíquida e indivisa já aceite pelos sucessíveis (não jacente) não tem personalidade judiciária, pelo que terão que ser os herdeiros ou o cabeça-de-casal, se a questão se incluir no âmbito dos seus poderes de administração, a assumir a posição (activa ou passiva) no âmbito de uma acção judicial em que estejam em causa os direitos relativos à herança (art.ºs 2088º, 2089º e 2091 do CC).

2. Tendo sido proposta uma acção onde se identifica como autora a herança indivisa, representada pela respectiva cabeça-de-casal, nada obsta a que se considere, com base numa leitura e interpretação menos rígida e formalista (e centrada nos direitos e interesses a regular), que quem interpõe a acção, nela figurando como autora - ainda que actuando no interesse de todos os herdeiros - é a cabeça-de-casal.

3. Atendendo à filosofia subjacente ao actual Código de Processo Civil - que visa, sempre que possível, a prevalência do fundo sobre a forma, bem como a sanação das irregularidades processuais e dos obstáculos ao normal prosseguimento da instância - não se justificará, em tal situação, a absolvição da instância por falta de personalidade judiciária da herança indivisa que, formalmente, vem indicada como sendo a autora, restando apenas saber se a cabeça-de-casal tem ou não legitimidade para a propositura da acção e, em caso negativo, providenciar pela sanação da sua eventual ilegitimidade com a intervenção dos demais herdeiros (ou verificar se ocorreu intervenção principal espontânea produzindo o mesmo efeito).

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra: I. Em 26.3.2019, a Herança Aberta Indivisa e Ilíquida por óbito de A..., representada pela cabeça-de-casal A..., instaurou a presente acção declarativa comum contra H... e L... (1ºs Réus) e M... e J... (2ºs Réus), pedindo: se reconheça que não foi dado à A. o direito de preferência legalmente estabelecido a seu favor no negócio celebrado entre os Réus, em 12.12.2003, formalizado na escritura que é o documento 4 da petição inicial (p. i.) (1º); e assim, se declare que tem a A. direito de preferir na compra e venda celebrada entre 1ºs e 2ºs Réus formalizada no referido documento e, nessa medida, que tem o direito de haver para si a propriedade do mesmo prédio, substituindo-se aos 2ºs no negócio, sendo portanto a proprietária da metade do prédio identificado em 1. da p. i. inscrita a favor dos Réus (2º).

Caso assim se não entenda, em alternativa: se declare que o prédio identificado em 1. da p. i. é divisível (3º); se reconheça que há mais de 25 anos que o prédio se encontra materialmente dividido entre A. e Réus, de forma pública, pacífica e contínua, exercendo/praticando a A. todos os actos de posse relativos à casa e os Réus os relativos ao logradouro como se proprietários únicos fossem de cada uma dessas parcelas (4ª); julgue que o prédio, por efeito de usucapião, se encontra dividido em dois prédios autónomos, fixando-se a parte de cada um dos consortes nos termos alegados (5ª); em qualquer dos casos, se determine à 2ª Conservatória do Registo Predial (CRP) de Leiria a realização dos actos de registo pertinentes em face do que vier a decidir-se (6ª).

Alegou, em síntese: é dona e legítima possuidora, na proporção de metade, do prédio urbano descrito na 2ª CRP de Leiria, freguesia de ..., sob o n.º ... , e inscrito na União de Freguesias de ... sob o art.º .., composto por uma casa de habitação de rés-do-chão, dependências e logradouros; o prédio em causa, desde tempos imemoriais, que é propriedade da família da cabeça-de-casal da A. e da 1ª Ré; em finais de Fev./2019 tomou conhecimento da escritura de compra e venda, outorgada entre os 1ºs e 2ºs Réus, em 12.12.2003, reproduzida a fls. 10 e seguintes, pela qual a metade dos 1ºs Réus foi vendida aos 2ºs Réus; nem a A., nem os antecessores A... e A... alguma vez receberam qualquer comunicação, nem sequer verbal pela qual os 1ºs Réus lhes comunicassem qualquer intenção de venda do prédio; pretende exercer o direito de preferência que lhe assiste, de harmonia com o disposto no art.º 1410º do Código Civil (CC), tendo efectuado depósito correspondente ao preço e despesas; é dona e legítima possuidora de 1/2 do dito prédio e, não lhe sendo reconhecido o direito de propriedade sobre a outra metade por violação do direito de preferência, não quer permanecer na indivisão do prédio, que atenta a sua natureza, é susceptível de divisão em substância. Os 1ºs Réus contestaram, por excepção e impugnação, invocando, além do mais, a ilegitimidade da A., porquanto, atento o pedido formulado na p. i., o mesmo extravasa os poderes que legalmente são atribuídos à cabeça-de-casal - no n.º 1 do art.º 2091º do CC o legislador estabeleceu um princípio de tipicidade, para as situações em que a representação da herança pode ser levada a cabo exclusivamente pelo cabeça-de-casal, sendo que, fora desses casos, os direitos relativos à herança apenas podem ser exercidos por todos os herdeiros; in casu, a herança não se encontra validamente representada em juízo, não sendo parte legítima na presente acção, atenta a forma como a A. configurou a relação material controvertida.

Os 2ºs Réus deduziram a mesma defesa por excepção.

Na base da referida defesa concluíram os Réus pela sua absolvição da instância atenta a ilegitimidade da A..

Notificada para exercer o contraditório quanto à matéria de excepção, a A. veio dizer, nomeadamente, que a procuração junta com a p. i. (fls. 22) encontra-se subscrita apenas pela cabeça-de-casal da A., mas há acordo entre todos os interessados na mesma herança no que respeita ao pedido e causa de pedir, o que expressamente fizeram constar de procuração com ratificação do processado junta a fls. 62, qualidade de interessados que se extrai da escritura de habilitação de herdeiros de fls. 59 e seguinte, pelo que fica regularizado o processado no que respeita à legitimidade da A., representada por todos os interessados, improcedendo a excepção invocada.

Na sequência do despacho de 30.4.2020[1] a A. requereu que se considerasse suprida a excepção que pudesse conduzir à absolvição da instância por falta de personalidade judiciária da Autora, e assim, regularizado o processado, prosseguindo o processo os seus normais trâmites (requerimento de 06.5.2020).

[2] Apenas se pronunciaram os 2ºs Réus, dizendo, em síntese, que «a) (…) os herdeiros são já conhecidos e já a aceitaram expressa ou tacitamente. b) A herança em causa nos autos (…) não tem hoje, em caso algum (e não sendo jacente) nem personalidade judiciária nem legitimidade para as acções. / c) Neste caso, legitimidade tem, na hipótese dos herdeiros serem já conhecidos, todos eles, e por isso devem, todos eles, intervir nas acções, quer estas se destinem à defesa de bens da herança (portanto estando ainda indivisa) quer com a finalidade de proceder à sua divisão quer com a finalidade de liquidá-la. / d) Por isso, e dado que quem se apresentou na acção foi a herança já tacitamente aceite (art.º 2050º do CC) parece claro que tal herança não tem interesse em intervir na acção, sendo em consequência parte ilegítima; e não tendo personalidade jurídica também não tem personalidade judiciária. / e) Todavia parece que, tendo todos os interessados, conjuntamente, agora de forma expressa, ratificado o processado, já são eles verdadeiramente os legítimos interessados, partes na acção, podendo, a nosso ver, a acção ser aproveitada nessa parte (…) e se reconheça que, adquirindo os RR, por usucapião, o fraccionamento do imóvel, implícita (ou expressamente?) também se deva reconhecer que foram os mesmos os actos de posse praticados pela Adelinda (…) relativamente à herança (imóvel) dela.» [requerimento de 26.5.2020; sublinhados nossos] Seguidamente, por saneador-sentença de 24.7.2020, a Mm.ª Juíza a quo julgou procedente a excepção de «falta de personalidade da “Herança líquida e Indivisa aberta por óbito de ...”» absolvendo «os Réus da instância» e «aquela da instância reconvencional».

Inconformada, a A. interpôs a presente apelação, formulando as seguintes conclusões: ...

Não houve resposta.

Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa apreciar e decidir, sobretudo, se a herança ilíquida e indivisa tem ou não personalidade judiciária, verificando as consequências emergentes da eventual falta desse pressuposto (designadamente, se deve conduzir à absolvição da instância) e se existe ou não algum obstáculo legal à admissão da requerida ratificação do processado conjugada com a junção da mencionada procuração ou, de qualquer modo, se era admissível, e relevante, a intervenção (principal) dos demais herdeiros.

  1. 1. A matéria fáctica e processual a considerar é a que resulta do relatório que antecede.

    2. Importa apreciar e decidir com a necessária concisão.

    Cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir activamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adoptando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável (art.º 6º, n.º 1 do CPC).

    O juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais susceptíveis de sanação...

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