Acórdão nº 54/19.6T8PNH.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 17 de Novembro de 2020

Magistrado ResponsávelVÍTOR AMARAL
Data da Resolução17 de Novembro de 2020
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra: I – Relatório A (…), com os sinais dos autos, intentou ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra J (…), também com os sinais dos autos, pedindo que:

  1. Se declare que todos os prédios rústicos, urbanos, veículos, alfaias agrícolas e bens descritos nos art.ºs 16.º, 18.º, 19.º e 20.º da petição inicial são compropriedade de A. e R. em partes iguais; ou, caso assim não se entenda, b) Se declare que foi constituída uma sociedade entre A. e R., desde 2008 até 2017, cujo património são os bens descritos naqueles art.ºs 16.º e 18.º a 20.º, num valor total de € 68.790,00; c) Condenando-se o R. no pagamento à A. do valor de metade do património da sociedade, cujo montante se cifra em € 34.395,00; ou ainda d) Se declare que o R. enriqueceu à custa da A. em, pelo menos, o valor de € 34.395,00; e) Condenando-se tal R. no pagamento à A. do valor de € 34.395,00.

    Mais requereu que, com base na sentença a proferir, seja ordenado o cancelamento do registo feito exclusivamente a favor do R. ou de qualquer outro que eventualmente venha a fazer-se e que incida sobre os prédios urbanos e rústicos descritos no art.º 16.º da petição.

    Para tanto, alegou, em síntese, que: - tendo a A. vivido em união de facto com o R. desde agosto de 2008 até janeiro de 2018, do qual se encontra separada desde então – união de que nasceram duas filhas –, nesse tempo de vida em comum juntos contribuíram para a economia doméstica e para a aquisição de património (móvel e imóvel), o qual, apesar de registado a favor do R. e na posse dele, pertence a ambos; - juntos adquiriram esse património, considerando-se ambos proprietários de todos os bens e comportando-se como tal, sendo, porém, que após a separação a A. quis fazer partilhas, ao que o R. não correspondeu; - A. e R. compartilhavam as responsabilidades financeiras familiares em comunhão de vida, sendo que a A. sempre trabalhou, contribuindo para o acervo financeiro da união, para além de assegurar as lides domésticas comuns; - com a separação ficou dissolvida a união e, em consequência, a sociedade, implicando a divisão dos seus bens e tendo em conta que a contribuição de cada sócio ocorreu em partes iguais, razão pela qual também a divisão deve ser em partes iguais (a A. declarada comproprietária na proporção de metade de cada um dos imóveis, veículos e alfaias identificados), ou ser condenado o R. no pagamento à A. do valor de metade do património da sociedade (€ 34.395,00), ou, assim não se entendendo, ser reconhecido que o R. enriqueceu à custa da A., pelo menos no valor de € 34.395,00, equivalente a metade do património angariado por ambos no âmbito da união.

    Contestou e reconveio o R.: - defendendo-se por impugnação, negando, nomeadamente, que a A. tivesse contribuído para a aquisição do património a que alude, o qual é pertença do R., assim concluindo pela improcedência da ação; - quanto ao pedido reconvencional, invocou que, no período de vivência em comum, emprestou à A. diversas quantias em dinheiro, destinadas à aquisição de bens próprios dela, de que a mesma beneficiava de forma exclusiva e que fez integrar no seu património pessoal, tendo-se aquela obrigado a uma restituição faseada, ao longo do tempo da união, o que não fez, apesar das solicitações do Reconvinte; - por isso, a Reconvinda é devedora da quantia de € 13.991,59, sendo que, caso se entenda que os contratos de mútuo do valor de € 8.000,00 e € 3.491,59 padecem de vício de forma, deverá proceder à sua repetição sem acréscimo de quaisquer juros.

    Concluiu, por isso, pela condenação da Reconvinda a pagar-lhe aquela quantia de € 13.991,59, acrescida de juros de mora, à taxa supletiva legal, desde a notificação da reconvenção e até efetivo pagamento.

    A A./Reconvinda replicou, concluindo pela total improcedência da reconvenção e por dever declarar-se que o R. lhe deve o montante de € 30.000,00 – a título de rendas de casa, pelos dez anos em que residiu em casa da A. –, com condenação em conformidade, a que acrescem juros desde a citação até pagamento efetivo e integral, ou então ser efetuada compensação de créditos entre ambos.

    Realizada audiência prévia, foi admitida a reconvenção, considerando-se, porém, inadmissível a ampliação do pedido em sede de réplica, e foi proferido despacho saneador, dispensando-se a fixação do objeto do litígio e dos temas de prova.

    Foi realizada a audiência final, seguida da prolação de sentença ([1]), que, decidindo de facto e de direito, julgou totalmente improcedente a reconvenção e parcialmente procedente a ação, com o seguinte dispositivo: «

  2. Condena-se o réu (…) a pagar à autora (…) a quantia de € 23.095,00 (vinte e três mil e noventa e cinco euros).

  3. Julga-se totalmente improcedente o pedido reconvencional deduzido pelo Réu e, em consequência, absolve-se a Autora dos pedidos formulados.

    (…) d) Absolve-se o Réu do demais peticionado.» (destaques retirados).

    Inconformado com o assim decidido, veio o R. interpor recurso, apresentando alegação, culminada com as seguintes (…) Este foi admitido como apelação, com efeito meramente devolutivo e subida imediata, tendo sido ordenada a remessa do processo a este Tribunal ad quem, onde foi mantido tal regime recursivo.

    Nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir.

    II – Âmbito do Recurso Sendo o objeto do recurso delimitado pelas respetivas conclusões, pressuposto o objeto do processo delimitado em sede de articulados – como é consabido, são as conclusões da parte recorrente que definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso ([2]), nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil em vigor (doravante, NCPCiv.), o aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06 –, importa saber:

  4. Se, a ser admissível a impugnação da decisão da matéria de facto, ocorre erro de julgamento nesse âmbito, devendo alterar-se as respostas impugnadas; b) Se, por força dessa alteração fáctica, ou por razões de ordem jurídica, deve alterar-se a decisão de direito, em termos de improcedência da ação (absolvição do R./Recorrente quanto ao pagamento da quantia pecuniária em que foi condenado, por não se verificarem os pressupostos do instituto do enriquecimento sem causa, aplicado à cessação da vida em comum, após longa união de facto).

    III – Fundamentação

    1. Impugnação da decisão de facto 1. - O R./Apelante não se conforma com a decisão da matéria de facto, recaindo a sua discordância sobre o juízo positivo do Tribunal recorrido quanto aos pontos 14, 19, 21 e 22 da factualidade dada por provada (a dever ser julgada como não provada) e, por outro lado, relativamente ao juízo negativo acerca da al.ª P) dos factos dados como não provados (cuja factualidade deveria ser julgada provada) – cfr. conclusões recursivas 4.ª e 5.ª.

    A contraparte, por seu lado, pugna pela inexistência de qualquer erro de julgamento de facto e, desde logo, pela rejeição da impugnação da decisão de facto, por invocada falta de transcrição dos excertos considerados relevantes da prova gravada.

    Ora, começando por esta última parte, dir-se-á que a transcrição dos excertos considerados relevantes da prova gravada não é obrigatória, tratando-se, apenas, de uma faculdade, que a parte recorrente pode, livremente, exercer ou não, sem que o respetivo não exercício, assim, lhe determine qualquer desvantagem ou prejuízo.

    Com efeito, o que é obrigatório, neste âmbito, sob pena de rejeição do recurso na parte respetiva, é a indicação, pelo recorrente, com exatidão das passagens da gravação em que se funda o recurso, “sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes” [cfr. art.º 640.º, n.º 2, al.ª a), do NCPCiv.].

    Assim sendo, claro se torna que a transcrição de excertos da gravação é meramente facultativa.

    E, da leitura das conclusões do Apelante também se torna evidente que foi cumprido o disposto no art.º 640.º, n.º 1, al.ªs a) a c), do NCPCiv., termos e que motivos não existem para rejeição liminar da impugnação da decisão da matéria de facto, da qual, por isso, deve conhecer este Tribunal ad quem, o que se fará de imediato.

    1. - Os impugnados pontos 14, 19, 21 e 22 têm o seguinte teor: «14. No período compreendido entre 2008 e 2018, A. e R. em conjunto e com o rendimento conseguido fruto do trabalho dos dois e da sua vida conjunta, compraram os seguintes prédios: (…) ([3]).

      (…) 19. Todos os bens referidos foram comprados enquanto A. e R. viveram em união de facto e com o dinheiro que ambos ganhavam na agricultura onde ambos trabalhavam, em conjunto, totalizando os bens imóveis o valor de € 46.190,00.

      (…) 21. O dinheiro que sobrava após o pagamento das despesas ou era depositado na conta titulada apenas pelo R. ou guardado em casa.

    2. Foi com o fruto do trabalho e do dinheiro ganho por A. e R., e depositado nessa conta, ou guardado em casa, que compraram os prédios, os veículos e alfaias descritos nos pontos 14, 16 e 17 sendo todas as aquisições realizadas com dinheiro de ambos.».

      Já a mencionada al.ª P) apresenta a seguinte redação: «p) Os bens mencionados nos pontos 14, 16 e 17 dos factos provados foram adquiridos com uma parte de dinheiro de que o réu já dispunha quando começou a viver na casa da A. na outra, fruto do seu trabalho, prestado apenas por si no exercício da atividade agrícola e pecuária e outra que, primeiro os seus pais, e depois a sua mãe, lhe foram dando ao longo do tempo.».

      A questão de facto a esclarecer prende-se, assim, essencialmente, com saber se os ditos bens adquiridos (imóveis, mas também, como invocado, alguns móveis, tais como “veículos e alfaias”) foram comprados com “o dinheiro que ambos ganhavam na agricultura onde ambos trabalhavam, em conjunto” ou, ao invés, com dinheiro exclusivamente angariado pelo R. (por já dispor de parte dele aquando do início da união, por ter ganho outra parte fruto do seu exclusivo trabalho agrícola e pecuário e ainda por...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT